"Há uma sensação enorme de alívio, porque estes refugiados fugiram de uma situação de guerra e de perigo iminente. Sente-se isso, especialmente por parte das mães que têm um cuidado permanente com os filhos e que lhes tentam ao máximo transmitir uma sensação de normalidade que não existe", descreve Miguel Sá, psicólogo na academia de futebol Cristiano Ronaldo do Sporting Clube de Portugal (SCP) e voluntário na Missão Ucrânia.

A iniciativa Missão Ucrânia partiu de Lisboa rumo a Cracóvia, na Polónia, no domingo, com alimentos e medicamentos, devendo regressar este sábado à capital portuguesa com quase 400 refugiados ucranianos.

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Miguel Sá viaja numa carrinha monovolume com sete refugiados, todos mulheres e crianças. A viagem de 3.500 quilómetros com destino a Portugal é um desafio."As pessoas estão extremamente cansadas. Algumas estiveram 22 horas à espera para passar a fronteira", acrescenta. "A primeira grande grande preocupação destas pessoas era fugir, depois foi passar a fronteira e agora o objetivo é chegar a Portugal", relata.

fPor mais que as pessoas sejam fortes e resilientes, nunca estão preparadas para uma mudança tão abrupta e violenta com esta

A barreira linguística é um pormenor. "Utilizamos muito as plataformas de tradução online, como o Google Translator. Alguns, os mais jovens, sobretudo, comunicam em inglês, mas numa inglês muito limitado. Temos tido uma ajuda inestimável de voluntários ucranianos que vieram connosco e que residem em Portugal. Eles também têm feito a tradução", adianta. "Mesmo durante a viagem, há tempo para aulas de português. Há muitas dúvidas sobre para onde vão. Procuramos dar enquadramento. São aulas improvisadas", admite.

Segundo psicólogo, esta situação de dúvida e incerteza é muito violenta. "Estas pessoas perderam tudo e tiveram de deixar familiares para trás. Por isso faço este apelo: Não deixemos estas pessoas desamparadas", frisa. "As entidades em Portugal têm de estar atentas a isto. Por mais que as pessoas sejam fortes e resilientes, nunca estão preparadas para uma mudança tão abrupta e violenta com esta", assevera. "Não basta recebê-los, é preciso acolhê-los e tomar conta deles", reitera.

"Temos mães com filhos muito pequenos e estas pessoas têm de ser apoiadas. Estas pessoas não podem sentir-se desamparadas. O Governo tem de tomar cuidados", alerta. "A maior parte das mulheres deixou os maridos para trás", frisa.

E as emoções como se gerem?

"Só a pergunta já me emociona", refere Miguel Sá. "Tudo me emociona neste momento. Nós não entendemos a violência que estas pessoas estão a passar. Por mais empáticos que sejamos, não conseguimos sequer imaginar. Estas pessoas trazem a vida em duas ou três malas. Tudo o resto ficou lá", diz.

"O que mais me emocionou foi talvez o sentimento de união e comunidade entre todos. Este é o lado mais bonito da humanidade. Em momentos de dúvida e de violência, não há escuridão que apague este sentimento de união e de partilha que nos liga uns aos outros", afirma Miguel Sá que sublinha: "Tenho deixar um forte agradecimento à organização da Missão Ucrânia. São inexcedíveis".

Veja as fotos da Missão Ucrânia

A caravana da Missão Ucrânia, composta por 25 viaturas de nove lugares e cinco autocarros, ocorre no âmbito de uma ação solidária que surgiu de uma conversa entre amigos no 'WhatsApp' chocados com os acontecimentos na Ucrânia, à qual se foram juntando vários empresários e particulares. A missão mobiliza 70 voluntários, incluindo motoristas, médicos, enfermeiros e tradutores.

"Enquanto profissional, estou a desenvolver-me muito e a ganhar muitas competências", diz Iury Leal, também psicólogo na academia de futebol Cristiano Ronaldo do Sporting Clube de Portugal (SCP), e voluntário na Missão Ucrânia. "Está a ser a experiência da minha vida", destaca.

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Ao SAPO Lifetyle, este profissional de saúde mental conta que o sentimento geral dos refugiados é de angústia, mas também de alguma esperança e agradecimento em relação à comunidade internacional. "É por isso que friso que esta resiliência tem de ser acompanhada de respostas eficazes por parte dos países que os acolhem", defende.

"Mas estas pessoas têm a ideia de voltar à Ucrânia. Têm fé que de vão voltar às suas comunidades. Acreditam que esta situação vai passar e isso é bom. Mas temos de gerir as expectativas e não mentir", admite. "A psicologia neste momento faz-se na base da empatia e da escuta ativa. Escutamos com os olhos. Percebemos como se sentem pela empatia e pelo olhar das pessoas", refere.

"Ainda não consegui gerir as minhas próprias emoções", conta. "Quando estávamos na zona de espera antes de embarcar nos autocarros, estava a brincar uma criança de dois anos e meio e vieram-me muitas imagens à cabeça. O que vai ser desta geração? Esta criança não tem culpa de nada. Estávamos a ir para o autocarro e ele deu-me um chocolate. Eu não quis, mas ele insistiu. Aquela criança só tinha aquele chocolate e queria que eu ficasse com o chocolate", recorda. "Não aguentei. Tive de ir para trás do autocarro chorar", admite.

Missão Ucrânia
Miguel Sá e Iury Leal, psicólogos do SCP

24 dias de incerteza

A Missão Ucrânia teve o apoio da embaixada portuguesa em Kiev e da comunidade ucraniana em Portugal, quer na logística, quer na referenciação de refugiados.

A missão integra cerca de 20 ucranianos que vivem em Portugal e que seguiram para ajudar na comunicação com as famílias, que têm receio do tráfico de pessoas.

A Rússia lançou á 24 dias, a 24 de fevereiro, uma ofensiva militar na Ucrânia que já causou pelo menos 780 mortos e 1.252 feridos, incluindo algumas dezenas de crianças, e provocou a fuga de cerca de 5,2 milhões de pessoas, entre as quais mais de 3,1 milhões para os países vizinhos, segundo os mais recentes dados da ONU.

A invasão russa foi condenada pela generalidade da comunidade internacional, que respondeu com o envio de armamento para a Ucrânia e o reforço de sanções económicas e políticas a Moscovo.