A obesidade é uma doença para a qual não existem fármacos comparticipados. Esta discriminação faz sentido do ponto de vista médico?

Não, a ausência de comparticipação do tratamento farmacológico da obesidade não faz sentido por vários motivos. Em primeiro lugar, porque a obesidade é a doença “mãe” de várias outras patologias que representam um custo significativo em saúde e para as quais há comparticipação das suas terapêuticas. A obesidade está associada a um maior risco de doenças metabólicas, como a diabetes tipo 2, as doenças cardiovasculares (como o acidente vascular cerebral e síndrome coronário), pelo menos 13 tipos de cancro, a síndrome de apneia obstrutiva do sono, a doença renal crónica, a doença hepática não alcoólica e diversas outras doenças que completam um painel de 200 patologias. Por exemplo, as pessoas com obesidade têm um risco cerca de 80 vezes superior de virem a ter também diabetes. Portanto, tratar a obesidade significa reduzir a incidência destas complicações. 

Em segundo lugar, no nosso país, há comparticipação para a cirurgia bariátrica e metabólica, uma opção de tratamento para casos de obesidade grave e/ou com complicações e à qual o acesso é limitado e demorado. Não faz sentido haver comparticipação para o tratamento da doença em fase avançada, mas não numa fase mais precoce, o que evitaria tratamentos mais invasivos. 

 Ao combater esta pandemia estaríamos a matar vários coelhos de uma vez só

Combater a obesidade deveria ser uma prioridade política?

Sim, porque ao combater esta pandemia estaríamos a “matar vários coelhos de uma vez só”, combatendo várias doenças simultaneamente. A redução da prevalência da obesidade significaria uma redução de custos diretos e indiretos relacionados com as suas complicações crónicas, entre elas, a diabetes, a doença renal crónica e a doença cardiovascular, que têm um peso muito significativo nos custos públicos. 

Priorizar o combate à obesidade através de duas frentes, o tratamento e a prevenção, representaria uma estratégia política extremamente eficaz a longo-prazo no que respeita à melhoria dos indicadores de saúde da população, da qualidade de vida, da produtividade e, garantidamente, levaria a uma uma redução drástica de custos no SNS. 

De que forma é que a obesidade interage com a diabetes, hipertensão e outras doenças como cancro?

A obesidade é um dos mais importantes fatores de risco para estas doenças. A redução do peso é um dos pilares do tratamento da diabetes e da hipertensão. A obesidade é uma doença do tecido adiposo que em excesso leva a insulinorresistência e ao aumento dos níveis endógenos de insulina, o hiperinsulinismo. Este é um dos mecanismos que desencadeia a diabetes tipo 2, que pode levar a hipertensão, especulando-se ainda que está na origem do aumento de risco de certos tipos de cancro.

A obesidade é uma doença muito prevalente em Portugal. Quais são as previsões para os próximos anos?

Segundo os dados recentemente divulgados pela Federação Mundial de Obesidade, estima-se que, em 2035, 51% da população mundial, ou quatro mil milhões de pessoas, terá excesso de peso ou obesidade se a prevenção e o tratamento não forem priorizados. Em Portugal, já existem 2 milhões de adultos com obesidade, e quando a estes somamos os indivíduos com excesso peso trata-se de 2/3 dos portugueses. As previsões estimam um aumento significativo e muito preocupante nos próximos anos.

A obesidade é uma doença crónica e a necessidade de acompanhamento continuado mantém-se durante a manutenção do peso
Carolina Neves, médica endocrinologista
Carolina Neves, médica endocrinologista

Que tratamentos existem para tratar a obesidade? 

Atualmente, dispomos de 3 tipos de intervenção para tratar a obesidade. A primeira, que deve associar-se a qualquer outro tratamento, é a intervenção comportamental, que envolve mudanças no estilo de vida, na dieta alimentar e na atividade física. De acordo com critérios clínicos bem definidos, esta intervenção pode ser associada ao tratamento farmacológico. Dispomos de fármacos que são seguros e eficazes na redução do peso, através de mecanismos que interferem no apetite, na compulsão alimentar, na absorção das gorduras e em outros mecanismos fisiopatológicos da obesidade. Apesar de estas terapêuticas, com evidência científica dos seus benefícios, serem contempladas nas “guidelines” mais recentes do tratamento de obesidade, não são comparticipadas em Portugal. Por fim, nas situações mais avançadas, as cirurgias bariátricas e metabólicas são ferramentas comprovadamente eficazes e que atingem as reduções de peso mais significativas. 

É fundamental salientar que qualquer abordagem de tratamento da obesidade requer acompanhamento continuado por uma equipa multidisciplinar de especialistas e que a intervenção não termina após a redução do peso. A obesidade é uma doença crónica e a necessidade de acompanhamento continuado mantém-se durante a manutenção do peso. 

Qual é a importância das mudanças no estilo de vida na gestão da doença?

As mudanças de estilo de vida são a arma da linha da frente na prevenção da obesidade. Melhorar condições de vida, como o acesso a alimentos saudáveis, reforçar a literacia em saúde e nutrição, incentivar a atividade física e criar espaços sustentáveis para a prática comunitária de exercício, melhorar os horários e as condições laborais e ainda educar sobre a importância da qualidade e quantidade do sono são algumas mudanças que teriam impacto.

É uma doença multifatorial com uma componente genética significativa, além de fatores psicológicos, ambientais e hormonais

O Dia Mundial da Obesidade deste ano tem como mote “Mudar Perspetivas: Vamos falar sobre Obesidade”. Que perspetivas devemos alterar?

Deveremos mudar perspetivas sobre as causas da obesidade, sensibilizar para a sua complexidade, pois não é apenas uma doença comportamental, é uma doença multifatorial com uma componente genética significativa, além de fatores psicológicos, ambientais e hormonais. É necessário combater o estigma, a culpabilização da pessoa com obesidade, tanto por parte dos outros, como da pessoa com obesidade e dos profissionais de saúde. O estigma e a discriminação têm sido fatores que inibem a procura e o acesso a tratamentos e abordagens eficazes e multidisciplinares. Esta é uma doença com uma forte componente emocional, muitas vezes associada a depressão e ansiedade, pelo que a abordagem empática de uma equipa treinada na linguagem adequada e tecnicamente preparada pode fazer toda a diferença.

Sobre esse estigma no que diz respeito às pessoas com obesidade, qual a importância de diferenciarmos a questão estética, da questão da saúde e do direito a ter o corpo que se quer ter?

Esta é uma questão pouco abordada: Onde está o limite entre o peso que causa desagrado e insatisfação estética e o peso que prejudica a saúde mental do individuo? Existem orientações clínicas para esse diagnóstico que os especialistas devem aplicar. E é preciso separar criteriosamente estes grupos. As pessoas efetivamente doentes, com obesidade e excesso de peso, não podem ser categorizadas como “não merecedoras” de um tratamento para a sua doença, como se fosse uma futilidade, apenas porque para outros poderá ser utilizado como tratamento estético. 

Infelizmente, o estigma leva a que os dois grupos caiam na mesma caixa. É esta linha que foi ultrapassada e que tem prejudicado o acesso de quem realmente necessita e beneficia dos tratamentos atualmente disponíveis.