Num discurso pessoal, por vezes humorístico, a pediatra Joana Martins conta-nos como é o dia a dia de uma profissional de saúde em plena pandemia do vírus SARS-CoV-2. Este é o décimo quarto episódio da série "Diário da trincheira: vida no covidário":

Se tivesse de apontar a minha posição no espectro cataclísmico-hippie, estaria obviamente mais perto do pólo cataclísmico. Não fui daquelas pessoas que encarou a pandemia COVID-19 como se encara o copo meio cheio. Para mim o copo estava praticamente vazio. Por muitos vídeos de pinguins a passear nas ruas da Cidade do Cabo, ou cabras selvagens a comer as sebes cuidadosamente plantadas em vilas pitorescas do Reino Unido, estava muito longe do pensamento otimista que esta pandemia serviria para curar a terra de todos os seus males.

Ao início lia com alguma incredulidade os textos que falavam se esta seria a nossa oportunidade de repensar o essencial. Mas para mim o essencial sempre foi a vida humana, por isso, era-me absolutamente igual ao litro se os ursos pardos tomavam banho nas piscinas das casas, se as pessoas queriam armazenar papel higiénico, álcool gel ou desatar a fazer pão.

Estamos errados quando trabalhamos de sol a sol para ter dinheiro para comprar aquilo que não precisamos

Mas as semanas foram passando e, para quem continuou a sair de casa para ir trabalhar todos os dias, foi crescendo esta sensação de que, como sociedade, estamos errados.

Estamos errados quando consumimos mais do que precisamos, pelo pico de dopamina que as pequenas compras, o pequeno coleccionismo, nos desencadeia. Estamos errados quando toda a nossa vida gira em torno de objetivos que não compreendemos ou que aceitamos como nossos quando, na prática, não o são. Estamos errados quando trabalhamos de sol a sol para ter dinheiro para comprar aquilo que não precisamos.

Tanta gente nas últimas semanas trabalhou em teletrabalho. Não digo que seja fácil, sobretudo com os miúdos em casa. Mas assim que as escolas reabrirem, porque não continuar a dar a oportunidade aos trabalhadores de, quando possível, continuar a trabalhar remotamente? Precisarão mesmo de voltar à cultura de presentismo, das longas horas para ver quem trabalha mais? Porque é que as empresas não reformulam os seus escritórios e passam a ter menos despesas fixas com o aluguer e consumo dos espaços de que, de facto, não precisam?

E porque é que os horários não se flexibilizam? Porque é que esta não poderá ser a regra em vez de ser a excepção? Já vimos que é possível funcionar noutros moldes. Em menos tempo que nada conseguimos modificar radicalmente a nossa forma de estar em sociedade. Porque não manter as coisas boas? As reuniões no ZOOM são necessariamente mais curtas e se calhar mais produtivas do que as reuniões presenciais.

As superfícies comerciais fecharam. Alguém sentiu a falta delas TODOS os dias? A toda a hora? Então porque não se repensam os horários? Porque não fechar mais cedo? E porque não fechar um dia a dois dias por semana para descanso dos trabalhadores?

Já pensaram que, como sociedade envelhecida que somos, devíamos proteger melhor a pequena infância?

E porque é que os centros comerciais têm de ter parques infantis para as crianças? Não seria mais lógico as crianças brincarem ao ar livre sempre? Ou o mau tempo é assim uma constante tão grande do nosso país? Porque é que, como pediatra, um dos conselhos que dou sempre é não levar um recém-nascido a passear a um centro comercial?

As urgências de pediatria de todo o país tiveram uma abrupta redução nas admissões, fruto do encerramento das creches, jardins-de-infância e escolas. Já pensaram que, como sociedade envelhecida que somos, devíamos proteger melhor a pequena infância? Porque é que nos debatemos todos os invernos com tantas e tantas crianças doentes, sobretudo aquelas com menos de dois anos de idade, com bronquiolite atrás de bronquiolite, quando na verdade, se os pais tivessem horários flexíveis, poderiam alternar cuidados e mantê-las saudáveis em casa? Sabiam que um dos critérios de internamento de uma criança com bronquiolite aguda é a incapacidade dos pais prestarem cuidados? E não falamos de incapacidade cognitiva ou económica. Falamos mesmo de falência da capacidade de resposta porque os pais têm de trabalhar.

Que sociedade é esta que pode parar por causa de uma pandemia mas que não protege a primeira infância e disponibiliza apenas 30 dias por ano de apoio remunerado (não a 100%) por doença dos filhos? Se vos disser que, no primeiro ano de vida, são expectáveis até 12 episódios de infeção viral ligeira nas crianças, acham suficiente?

Esta pandemia não afeta todos por igual: afeta os mais velhos e os mais pobres. A maioria serão velhos E pobres. Se, como sociedade, nos mobilizámos e fomos capazes de travar o contágio, poupando assim a vida a tanta gente, porque não repensamos a nossa estratégia pelo princípio da solidariedade humana e não tentamos uma transformação?

Por nós mesmos, pelos nossos filhos.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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