Quando o Sars-CoV-2 surgiu num mercado de marisco na China, a sua forma de transmissão era incerta. As primeiras comunicações da OMS e restantes autoridades de saúde, afirmavam que a transmissão do vírus se efetuava essencialmente por gotículas, assim como por superfícies contaminadas. A clareza sobre a forma de transmissão do agente causador da doença não é um pormenor, é o que nos permite adequar as medidas de proteção e melhor proteger a população.
O assumir das gotículas como meio de transmissão, fez com que a qualidade do ar interior fosse negligenciada por demasiado tempo. Só no último terço da pandemia é que a OMS declarou que a transmissão se efetuava por via área. O que significa que o agente é extremamente eficaz em contagiar outra pessoa dentro de espaços fechados.
Desde muito cedo que surgiam evidências deste modo de transmissão, como os casos bem conhecidos de transmissão em coros de igreja ou em cruzeiros. Vários peritos avisavam sobre esta possibilidade, chamando atenção para a necessidade de cuidados redobrados em espaços fechados.
Para agentes que se transmitem por gotículas, que são maiores e sofrem a ação da gravidade mais rapidamente, adotamos as seguintes medidas:
• Etiqueta respiratória, desinfeção de superfícies, redução de contactos diretos como apertos de mão, utilização de máscara dentro da área de ação estimada das gotículas (1 a 2 metros), barreiras físicas como protetores de plástico ou acrílico. Por fim, não menos importante, há menos diferença entre ambientes exteriores ou interiores, uma vez que o mecanismo gravitacional funciona da mesma forma, e contamina as superfícies.
Por outro lado, se estivermos a falar sobre agentes que se transmitem por via aérea, as principais medidas que precisamos de adotar já serão:
• Melhorar a ventilação dos espaços interiores, reduzir a sobrelotação dos espaços interiores, seja com teletrabalho, ou melhorar a frequência dos transportes públicos, diminuir a frequência da presença nos espaços interiores, utilização de máscara em espaços fechados e de preferência com elevado poder de filtração.
É agora fácil perceber que estivemos demasiado tempo focados nas primeiras medidas, enquanto as segundas foram negligenciadas. Quando finalmente houve confirmação que a transmissão era efetuada por via aérea, não efetuamos a transição de forma conveniente. Ficamos como que presos, sem avançar decisivamente para as medidas adequadas à luz da nova informação.
Analisando cada uma das medidas necessárias, é fácil concluir que se algumas das necessárias para uma efetiva proteção contra a transmissão por via aérea são mais caras, a opção por uma máscara de alta filtração em ambientes fechados é bastante custo-efetiva. Deveria ter sido a nossa prioridade, à semelhança do que foi adotado pela Áustria.
Claro que incentivar à maior lavagem das mãos não é algo negativo. Pelo contrário, é uma mensagem que deve ser sempre transmitida e incentivada. Mas ao não termos feito a transição rapidamente e de forma completa para a transmissão por via aérea, caímos no erro de desincentivar as atividades ao ar livre, quando devíamos precisamente ter feito o oposto. Focados numa medida quase ritual de desinfeção das superfícies, ignoramos como uma simples máscara de alta filtração teria feito realmente a diferença.
Não devemos esquecer que o vírus era novo, pelo que não foi de estranhar o desconhecimento sobre as formas de transmissão. O problema, que esteve muito longe de ser um exclusivo nacional, foi não termos feito a transição mais rapidamente, para as medidas mais adequadas de controlo de infeção.
Há várias hipóteses que explicam esta dificuldade. Desde a logística, especialmente no início da pandemia, existia uma carência total de equipamentos de proteção individual, à psicologia, sabemos que é difícil alterar perceções e ideias, especialmente quando as novas são mais complexas. Também não é de descurar um certo elitismo científico, pois a ciência dos aerossóis é mais recente e sem o capital científico das restantes. Por fim, temos os motivos políticos. As precauções contra gotículas são essencialmente medidas individuais, enquanto as contra a transmissão por via aérea são essencialmente coletivas. O paradigma neoliberal dominante, com o foco na responsabilidade e liberdade individual, e sem intervenção do estado, criou os incentivos para que os governos se escusassem da responsabilidade de intervir e investir em medidas de proteção coletivas, como a melhoria da ventilação dos edifícios públicos ou na rede de transportes públicos.
Aprendemos muito com a pandemia. Tomámos boas e más medidas, assim como também tomámos medidas que foram irrelevantes. Precisamos de sistematizar as aprendizagens. Virámos a página da pandemia, mas temos a obrigação de a revisitar, com um olhar distante e objetivo, para uma profunda análise do que fizemos de correto e errado. O governo deveria de tomar a iniciativa e nomear um grupo independente para o efeito, que produzisse um relatório que fosse além da área da saúde, mas que incluísse também a educação, setor social e economia. Em alternativa, porque não a sociedade civil organizar-se e trabalhar neste projeto? Temos esta obrigação para com as gerações futuras.