Qual o impacto da pandemia na redução da realização das cirurgias torácicas em Portugal? Existem dados? Se não, qual a realidade no Hospital de Santa Marta?

Não houve um impacto significativo no número de Cirurgias Torácicas realizadas no país, considerando que tivemos uma redução de apenas 12% a nível Nacional.

No hospital de Santa Marta houve até um ligeiro aumento face ao ano anterior (de 483 em 2019 para 492 em 2020). O que parece estar em contracorrente com outras áreas da Medicina. Este incremento, ainda que bastante suave, é justificado pelo facto da especificidade assistencial do Hospital de Santa Marta (dedicado ao tratamento da patologia cardiovascular e respiratória) promover a criação de condições para que doentes com infeção ativa pelo SARS-CoV-2, não fossem tratados no HSM, mas sim encaminhados para outras unidades hospitalares.

Isto porque, o Hospital de Santa Marta trata as patologias responsáveis por cerca de 55% da mortalidade nos países da OCDE, tendo sido necessário criar e aplicar protocolos, para manter tanto quanto fosse possível, a regular atividade assistencial.

Mas por que motivo assistimos a uma redução de atividade noutros hospitais?

Em ano de pandemia, os hospitais mais expostos ao COVID-19 tiveram uma quebra no número de cirurgias, fruto da alocação dos seus recursos humanos às áreas COVID, mas também devido aos planos de contingência que determinaram que não houvesse impacto nos cuidados intensivos e ventiladores de bloco operatórios com doentes não urgentes, não emergentes e não prioritários.

Apesar da diminuição, esta não foi considerável. Houve uma tentativa de proteger áreas sensíveis como a cirurgia do Cancro do Pulmão e o Transplante Pulmonar.

O que ocorreu foi uma diminuição das cirurgias por cancro do pulmão, que no Hospital de Santa Marta correspondia a cerca de 55% e em 2020 correspondeu a cerca de 40%. Mas esta diminuição não esteve relacionado com a oferta cirúrgica.

A alteração de sintomatologia respiratória crónica, expetoração com sangue, perda inexplicável de apetite, entre outros sintomas, devem fazer com se procure ajuda médica

Quais os riscos decorrentes desta diminuição da atividade?

Os doentes com cancro de pulmão não diminuíram, estão lá, mas demoram mais tempo a entrar no circuito de diagnóstico, estadiamento e tratamento. Assim como o facto deste circuito ser mais longo, pois as medidas de higiene e os tempos entre a realização de exames aumentou, com o óbvio resultado no atraso do doente em todo o seu percurso.

Esta é uma consequência logística, mas a diminuição da procura dos cuidados de saúde resulta de estes estarem cheios e os doentes não estão a valorizar os sintomas como previamente valorizavam, bem como pelo receio de contraírem COVID-19 aquando do seu internamento.

O diagnóstico de neoplasia do pulmão está a ser feito em fases mais avançadas da doença, onde, normalmente, as terapias com intuito curativo, como a cirurgia, já não têm lugar.

As alternativas terapêuticas nas fases mais avançadas da doença não são tão eficazes e são muito mais dispendiosas.

É necessário reforçar a ideia de que é seguro vir ao hospital, criar infraestruturas a nível logístico e humano para aumentar a capacidade de resposta assistencial nos exames complementares de diagnóstico (já de si escassa, mas muito mais morosa, em época pandémica, para manter o risco de contaminação pelo SARS-CoV-2 baixo).

E informar ainda que a alteração de sintomatologia respiratória crónica, expetoração com sangue, perda inexplicável de apetite, entre outros sintomas, devem fazer com se procure ajuda médica.

Paulo Calvinho, Coordenador da Unidade de Cirurgia Torácica do Hospital de Santa Marta (Lisboa),
Paulo Calvinho, Coordenador da Unidade de Cirurgia Torácica do Hospital de Santa Marta (Lisboa) créditos: Direitos Reservados

Sabemos que as pessoas evitaram ir ao hospital. Algum vez se devia ter tido medo de ir a uma unidade de saúde?

A resposta é muito simples: não. Os circuitos livres de COVID-19 estavam bem estabelecidos. Tive doentes (poucos) que recusaram tratamento cirúrgico por medo de contraírem SARS-CoV-2.

As linhas de apoio estavam esgotadas e os cuidados de saúde primários assoberbados de trabalho. Não deviam ter medo, mas tinham que ter muita paciência, pois a disponibilidade para outras patologias estava reduzida. São dois conceitos diferentes.

Como é que os doentes estão a chegar hoje em dia ao hospital? Com pior estado de saúde?

Na crise de 2008 e depois do resgate financeiro em 2011, observámos um aumento significativo da patologia infeciosa pleural (empiema). Os internamentos em 2012 por patologia pleural triplicaram em relação aos de 2011, sobretudo devido a infeção.

Esta doença resulta, maioritariamente, de pneumonias mal resolvidas e em doentes com outras patologias associadas.

A diminuição de acesso aos cuidados de saúde, sejam eles impostos por estados pandémicos ou dificuldades socioeconómicas, resulta sempre no agravar de doenças pré-existentes (que carecem de monitorização e ajuste terapêutico), no agravar de situações agudas (infeções que poderiam ser tratadas em casa e que requerem internamentos prolongados para tentar resolver as suas sequelas) e na não deteção precoce de doenças potencialmente curáveis no seu início, mas cujo diagnóstico tardio pode significar o encurtar de uma vida.

Pela experiência do Hospital de Santa Marta e do CHULC, houve uma diminuição da referenciação de doentes com cancro de pulmão (refletido pela diminuição da casuística nesta área) e os que eram referenciados estavam já numa fase muito avançada da sua doença.

Neste momento sentimos um aumento, ainda que apenas subjetivo, da incidência da necessidade de cirurgia na patologia infeciosa (maioritariamente evitável se a procura médica fosse precoce) e a retoma, ainda que envergonhada, da procura cirúrgica para os doentes com cancro do pulmão. Esta retoma lenta na oncologia torácica cirúrgica reflete um aumento da atividade assistencial dos cuidados de saúde primário, bem como de uma maior fluidez na marcha diagnóstico e estadiamento destes doentes.

Nenhum recurso é infinito e o sistema de saúde também não. Com quase 1.000 doentes em cuidados intensivos, como se pode esperar ter espaço para tratar os outros 1.000 que costumam ocupar essas camas?

Há mais consultas?

Anda não consigo adiantar números, mas as primeiras consultas da especialidade de Cirurgia Torácica voltaram a aumentar.

O que é que poderia ter sido feito de forma diferente para atenuar os efeitos da pandemia na resposta a outras doenças como o cancro?

A DGS, juntamente com outras sociedades internacionais, estabeleceu priorizações de procedimentos para podermos estar preparados para o impacto de uma primeira vaga. Estávamos assustados com os números italianos e espanhóis.

A Unidade Funcional de Cirurgia Torácica de Santa Marta elaborou um documento que priorizava, de acordo com as indicações da DGS, quais as cirurgias a serem realizadas de forma a não impactar os serviços com patologias não prioritárias.

O confinamento e essa forma de atuação tentaram proteger as patologias mais graves como a neoplasia. O aumento dos doentes COVID-19 assumiu proporções tais que não deixava espaço para tratar as outras patologias. Só uma atitude coletiva de isolamento social e medidas rigorosas de higiene respiratória poderiam dar espaço para que as outras doenças fossem abordadas.

Nenhum recurso é infinito e o sistema de saúde também não. Com quase 1.000 doentes em cuidados intensivos, como se pode esperar ter espaço para tratar os outros 1.000 que costumam ocupar essas camas?

Os cenários estavam em cima da mesa, e como alguém disse, a dialética entre a evolução científica e a velocidade da decisão política ficou invertida. Esta inversão e as suas consequências serão matéria de muitos textos sociopolíticos, certamente interessantes mas fora destas cogitações.

Muito se tem falado sobre comunicação e responsabilidade individual dentro de um sistema social mais abrangente, mas uma reflexão atenta mostra que o impacto desta verdadeira catástrofe se prende com a robustez existente do Serviço Nacional de Saúde que teve, apesar de todas as fragilidades, flexibilidade na adaptação dos seus recursos com uma resposta atempada e eficaz (na maior parte das situações) à hecatombe que se abateu sobre o país.

Mas poder-se-ia ter feito algo diferente?

Mais do que aquilo que se podia fazer, é o que tem ser feito agora. Isto é, conseguir usar essa mesma flexibilidade na gestão dos recursos existentes, reinventar formas organizativas de administração na Saúde, de forma a rentabilizar os recursos atuais e melhorar a qualidade assistencial.

Um Serviço Nacional de Saúde eficiente, preventivo e atuante na melhoria da qualidade de vida certamente originará uma sociedade mais produtiva e feliz.

Acha que falta literacia em saúde em Portugal?​

Um texto publicado em 2016 diz que cerca de 50% da população tem um nível baixo de literacia em saúde.

Tenho a impressão de que os níveis de literacia têm vindo a aumentar, mas na realidade o caminho ainda é longo. Cada vez mais, temos parceiros e setores envolvidos na dinâmica da construção conjunta, na melhoria das capacidades de cada um de nós para lidar com a saúde e com os sistemas de saúde (como são as associações de doentes, a indústria, os media...).

Contudo, sinto que falta um maior envolvimento e uma maior proximidade da comunidade científica e médica com os restantes setores.

A comunicação técnica deve ser clara e eficaz, para fornecer a cada um de nós ferramentas para que a relação com a doença, com a saúde e com os sistemas de saúde seja tranquilizadora e não um fator de instabilidade por si só.

Deve ser uma abordagem holística, integrando todos os momentos da vida das pessoas numa relação (crítica) com os decisores, de forma a que possam participar na defesa e na criação de mecanismos na governança da saúde.

Esta relação crítica está longe de ser a ideal, e nos sistemas educativos, de cultura e de trabalho, a aposta em ambientes promotores de diminuição de desigualdades com a possibilidade de escolhas saudáveis (no seu conceito mais amplo) precisa de um trabalho muito intensivo.

É necessário continuar a trabalhar para o aumento da literacia em saúde em Portugal e esse trabalho pertence a cada um de nós de forma integrada, identificando as áreas onde esse esforço tem de ser incentivado.

Sintomas de cancro que não deve ignorar