A nova ética do algoritmo na clínica do futuro Inteligência artificial generativa, autoridade médica e a reconstrução da relação terapêutica na era digital

À medida que a inteligência artificial generativa se torna parte integrante do quotidiano, a prática médica assiste a uma transformação silenciosa, mas profunda. Ferramentas como o ChatGPT deixaram de ser meras curiosidades tecnológicas para se tornarem presenças ativas no espaço clínico, influenciando perceções, decisões e até vínculos terapêuticos.

Mais do que uma revolução tecnológica, vivemos uma mutação ética e relacional.

Entre os muitos casos que ilustram essa mudança, recordo um episódio paradigmático.

Um doente de meia-idade, após semanas de aerocolia e mal-estar abdominal, recorreu a consulta de gastrenterologia, realizou exames laboratoriais e imagiológicos, todos dentro da normalidade. Persistindo os sintomas, procurou-me como médico de família, último recurso e porto de escuta.

Após longa conversa, o doente referiu com serenidade: “Dr., eu já vi tudo no ChatGPT e ele acha que está tudo ok com o que fiz. Não parece ser dos intestinos. Será melhor fazer outro exame à coluna? O ChatGPT reforçou os resultados da minha analítica e deixou-me mais tranquilo.”

A frase ressoou como um novo sintoma, não do corpo, mas da época, uma presença invisível, o algoritmo, mediava agora a relação entre o sofrimento e a sua interpretação. A consulta já não era binária, médico e doente estavam acompanhados por uma terceira entidade: a inteligência artificial. Esta nova triangulação exige repensar os fundamentos da ética médica e da confiança terapêutica.

Da relação binária à triangulação algorítmica

Durante séculos, a relação médico-doente oscilou entre a autoridade paternalista e o modelo da decisão partilhada, em ambos, o vínculo era direto e humano. A irrupção da inteligência artificial gera, contudo, uma terceira instância de influência, não relacional, mas funcional, não humana, mas linguística.

Neste novo triângulo, médico, doente e IA, o médico vê a sua autoridade interpretativa partilhada com um sistema que não sente, mas sugere; que não examina, mas responde. A questão que se impõe é: como manter a escuta, a confiança e o juízo clínico num cenário em que o doente chega com diagnósticos e hipóteses previamente filtradas pelo algoritmo?

O caso clínico como metáfora do tempo

O doente em questão não procurou a IA por desconfiança, mas por desejo de compreender, encontrou respostas estruturadas, plausíveis e tranquilizadoras. Sugerida a hipótese de origem lombar para a dor, sentiu-se mais sereno, e trouxe essa convicção para a consulta. O médico foi confrontado com uma narrativa já construída, onde o papel clínico se deslocava de intérprete para simplesmente validar.

Este episódio exemplifica o novo paradigma, o médico é agora árbitro entre narrativas, uma narrativa técnica algorítmica, e outra narrativa pessoal e sensorial, cabe-lhe reintroduzir o corpo, a história de vida e a escuta empática num território cada vez mais colonizado pela linguagem da probabilidade.

A autoridade do algoritmo e a erosão da escuta

O ChatGPT e modelos similares não fornecem conhecimento médico no sentido clássico. Produzem linguagem plausível, com aparência de segurança e cientificidade. Esta estética da certeza, combinada com a ausência de contradição emocional, confere à IA uma autoridade nova: o oráculo tecno linguístico.

O filósofo Byung-Chul Han, fala de uma “sociedade da transparência” onde tudo é visível, mas nada é relacional. O algoritmo encaixa nesta lógica, acessível, aparentemente neutro, mas desprovido de contexto, ambiguidade e corporeidade, o que ele diz pode ser útil, mas também enganador, por ser desprovido de responsabilidade.

Surge aqui o fenómeno que designo por tecno-fideísmo: uma fé pós-moderna na IA como entidade superior, livre de preconceitos e emocionalmente estável. Esta crença ignora os enviesamentos dos dados, os limites do treino e a ausência de sensibilidade humana. A IA não cuida, apenas simula o cuidado.

Como não entrar em conflito com os doentes

O médico que rejeita liminarmente a informação trazida pelo doente, mesmo que seja do ChatGPT, corre o risco de quebrar o vínculo terapêutico. Já o médico que aceita sem crítica tudo o que o algoritmo sugere, abdica da sua função essencial, cuidar com discernimento.

Entre estes dois extremos, propõe-se um caminho ético-clínico de mediação consciente.

Em vez de contrariar, é possível acolher, “é positivo que procure compreender o que sente”, em vez de validar cegamente, é possível contextualizar, “o ChatGPT pode ajudar, mas não conhece o seu corpo nem a sua história”. Esta abordagem evita o conflito, valoriza a iniciativa do doente e mantém o médico como figura de escuta e orientação.

A ética da responsabilidade partilhada

Hans Jonas, em “O Princípio da Responsabilidade”, defende que o poder técnico exige uma ética proporcional ao seu impacto. A IA tem poder, mas não tem responsabilidade. O médico, por outro lado, responde com o corpo, a palavra e a presença, a atividade clínica exige um pacto entre quem sofre e quem escuta, um pacto impossível de ser substituído por algoritmos.

Quando um doente atribui à IA o poder de decidir e o médico aceita esse deslizamento, a responsabilidade dilui-se, quando ninguém é responsável, ninguém cuida verdadeiramente.

A ética da medicina contemporânea deve, por isso, reforçar a ideia de responsabilidade partilhada, mesmo em ambientes tecnologicamente mediados.

Os novos paradigmas da autoridade médica

A presença da IA expõe a medicina a um desafio identitário, qual a identidade do médico? O médico deixa de ser o único detentor do saber técnico, isto pode ser vivido como ameaça ou como oportunidade. Se o médico assumir um papel de curador da informação, integrador de contextos e facilitador de decisão, a sua autoridade não desaparece, transforma-se.

Este novo paradigma exige competências novas, literacia digital, inteligência narrativa, humildade epistemológica. Exige também um compromisso renovado com a ética relacional, onde cada decisão seja fruto de um encontro e não de uma estatística.

Propostas para uma prática clínica ampliada

  1. Acolher com respeito: valorizar a iniciativa do doente em procurar informação, mesmo que imperfeita.
  2. Contextualizar sem paternalismo: explicar os limites da IA com clareza e empatia.
  3. Formar os médicos para a literacia algorítmica: saber como funcionam os modelos, os seus limites e os seus riscos.
  4. Educar os doentes para uma cidadania digital em saúde: usar a IA como ferramenta complementar, não como substituto.
  5. Promover a co-construção da narrativa clínica: integrar as hipóteses algorítmicas na consulta, discutindo-as com espírito crítico.
  6. Reafirmar o valor da escuta: lembrar que nenhuma inteligência artificial substitui um gesto humano no momento certo.

Para uma nova ética do algoritmo

A prática médica contemporânea exige uma ética que reconheça a presença da tecnologia sem abdicar da centralidade do cuidado, esta nova ética deve assentar em:

  • Transparência: tornar visível a origem, os dados e os limites dos algoritmos.
  • Explicabilidade: garantir que médicos e doentes compreendem o raciocínio por trás das sugestões algorítmicas.
  • Responsabilidade partilhada: médicos e doentes devem continuar a decidir em conjunto, com apoio, mas não submissão à IA.
  • Centralidade da pessoa: o corpo, a história e os valores do doente continuam a ser insubstituíveis.

Conclusão, escutar mais do que responder

O caso relatado não é uma exceção, a inteligência artificial já habita o espaço clínico, e veio para ficar. A questão não é se a usamos, mas como a integramos. Não se trata de voltar ao passado, mas de imaginar um futuro em que o humano não seja descartado pela eficiência.

A medicina da era digital será menos sobre o que o médico sabe e mais sobre como escuta, traduz e acompanha. A IA pode informar, mas não cuidar, pode prever, mas não consolar, pode orientar, mas não decidir sozinha.

No final da consulta, mesmo depois do ChatGPT, o doente pergunta: “E você, doutor, o que acha?” Essa pergunta exige mais do que uma resposta, exige uma presença. E é nessa presença, feita de escuta, corpo e ética, que a medicina continuará a cumprir a sua vocação.