O professor do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), da Universidade de Lisboa, recusa qualquer ideia de que esta pandemia seja democrática ao poder afetar qualquer pessoa ou qualquer setor, sublinhando que “não é democrática certamente nas consequências que tem sobre os vários tipos de pessoas”.

“Claramente são as famílias mais desprotegidas que mais estão a sofrer com esta crise, são as pessoas de maior vulnerabilidade”, defendeu, em declarações à agência Lusa.

E se a “disseminação do vírus é completamente aleatória”, a capacidade que cada um tem para se proteger contra o vírus e de ultrapassar a pandemia “depende muito das suas condições de vida”.

“É muito diferente ter uma casa confortável onde posso fazer algum confinamento, ou ter uma casa com muito poucas condições, onde vivem várias pessoas, onde o isolamento é quase impossível e, portanto, estou mais suscetível de sofrer os efeitos da crise. Não é a mesma coisa ir de carro para o trabalho ou ter de ir de transportes públicos”, apontou, reafirmando que, apesar de todas as classes sociais estarem a ser atingidas, “quem mais vai sofrer as consequências da crise são obviamente os mais desprotegidos”.

Na opinião de Carlos Farinha Rodrigues, outro aspeto que esta crise evidenciou é que o combate à pobreza em Portugal exige não só medidas de reforço dos recursos das famílias, mas também de acesso a bens e serviços essenciais.

O professor e investigador admite que em muitos casos tenha de haver uma transferência de rendimentos para a famílias, mas sublinhou que só isso não basta e que é preciso conjugar com a dignificação das condições de trabalho e com a qualidade do acesso aos serviços para, no fundo, “garantir que as pessoas têm condições para uma vida digna”.

Farinha Rodrigues não tem, por isso, dúvidas de que a atual crise “revelou fatores de pobreza que estavam latentes” na sociedade portuguesa.

“De 2014 até 2018, nós tivemos uma redução dos principais indicadores de pobreza, que foi significativa. Algo foi feito para tentar reduzir a pobreza, mas os fatores estruturais em grande medida estavam lá e emergiram fortemente com esta crise”, defendeu.

Agora, o contexto “é de grande incerteza” e “ninguém poderá dizer” como é que o país vai estar daqui por três meses.

“Temo que as consequências mais gravosas, em termos sociais, ainda estejam para vir porque quando a crise se iniciou houve um conjunto de medidas que tentaram atenuar os feitos da crise sobre as pessoas mais pobres, mas muitas dessas medidas foi um deslocar para a frente de uma série de problemas e não sabemos até quando é possível manter”, alertou o docente do ISEG, acrescentando que “tudo vai depender de como a economia reagir”.

De acordo com Farinha Rodrigues, se há uns meses se esperava uma forte recuperação económica depois de se ter sentido uma forte quebra ao nível da produção – “até porque grande parte do sistema produtivo manteve-se intacto – hoje, há um “jogo de timings que é extraordinariamente difícil de gerir”, desde logo o “timing da pandemia, o timing da manutenção ou reforço dos subsídios sociais que estão a ser dados, ou o próprio timing da entrada dos fundos comunitários”.

“Eu penso que há aqui uma grande indefinição, ninguém pode ter certezas, mas eu tenho algum receio que até à primavera possamos ter o agravamento das condições sociais para grandes setores da população”, apontou, sublinhando que não se trata apenas do aumento do número de pessoas pobres, mas de ter em conta a incidência da pobreza, ou seja, a percentagem de pessoas em situação de pobreza, e também a intensidade da pobreza.

Lembrou que na anterior crise, “no tempo da troika”, houve um agravamento da incidência da pobreza, mas também um “fortíssimo agravamento da intensidade da pobreza”, ou seja, do indicador que diz “quão pobres são os pobres”, revelando um “fortíssimo agravamento daquilo que afastava o rendimento das pessoas pobres daquilo que era o mínimo necessário”.

“A única certeza que nós temos é a incerteza disto tudo e isso implica que tem de haver uma monitorização muito forte, tem de haver medidas que são pontuais. Cada vez mais estou convencido de que temos de fazer duas coisas: Temos de ter medidas que respondem de imediato às situações concretas à medida que elas surgem e temos de pensar no longo prazo como é que vamos ter uma recuperação económica que seja simultaneamente uma recuperação social”, defendeu Farinha Rodrigues, sublinhando que “as duas coisas têm timings diferentes, mas têm de ser conjugadas”.

Por outro lado, entende que a atual crise deve levar a uma reflexão sobre o sistema de proteção social, tendo em conta que “há medidas que já se viu que são incompletas na sua abrangência e há medidas que ao longo dos anos foram perdendo a sua eficácia”, além de existir setores da população que têm vindo a ser esquecidos.

Entende, por isso, que é “extremamente positivo” que o atual Governo tenha criado um grupo de trabalho para a elaboração de uma Estratégia de Combate à Pobreza, mas defendeu que isso sirva para “criar as bases para uma política social integrada” e uma política que seja transversal a vários setores.

“Não podemos pensar que o problema da pobreza se resolve apenas pelo Ministério da Segurança Social, ou seja, ou há uma priorização das questões do combate à pobreza no conjunto do Governo ou não vamos conseguir resolver o problema da pobreza em Portugal”, defendeu, apontando que algumas medidas do Ministério das Finanças têm mais impacto na pobreza e sobre o nível de rendimento das famílias “do que não sei quantas medidas do Ministério da Segurança Social”.