Em 2024, assinou o livro Como ter um superintestino para, agora, retomar o tema da saúde intestinal. O que de novo nos oferece este seu livro e de que forma se articula com o primeiro volume?

O meu primeiro livro, Como ter um superintestino, foi escrito para ajudar as pessoas a identificar e tratar sintomas intestinais e de estômago, com planos de ação para sintomas mais específicos como diarreia, prisão de ventre, inchaço abdominal, refluxo, entre outros. E com a explicação da modulação intestinal. Serve como guia para responder à pergunta “O que posso fazer quando sinto que o meu intestino não funciona como devia?”

Este novo livro vai mais longe: ele parte do intestino, sim, mas abre a lente para o corpo todo. Cada capítulo corresponde a um órgão:  a pele, o fígado, o cérebro, o sistema imunitário, a  tiroide, entre outros, e é construído para que o leitor possa identificar os sintomas a que deve estar atento, também perceber qual a ligação entre esse órgão e o intestino. Apresentou casos de pessoas que desafiaram diagnósticos e recuperaram equilíbrio e convido os leitores a aplicarem um plano de ação, baseado na ciência, mas adaptado à vida real.

Enquanto o primeiro livro é mais focado num sistema específico, este é transversal. Mostra como tudo se liga, e como muitas queixas comuns podem ter uma origem menos óbvia, mas tratável.

Escreve a Isabel Pedroso a abrir o livro: “Talvez este livro seja a peça que falta para seres um desses loucos que desafiam probabilidades e reescrevem a sua história”. Qual o alcance destas palavras e de que forma escrevem também o seu percurso?

Essa frase resume a intenção por trás do livro. Fala de pessoas que não se resignam, e que, mesmo depois de ouvirem que um determinado sintoma “é normal”, que “vai passar”, ou que “não há nada a fazer”, continuam à procura. São pessoas que, quando encontram um caminho com lógica e aplicação prática, conseguem reverter aquilo que parecia inevitável.

“Falta literacia alimentar. A população continua a desembalar mais, em vez de descascar mais” - Isabel Pedroso Silva, nutricionista
“Falta literacia alimentar. A população continua a desembalar mais, em vez de descascar mais” - Isabel Pedroso Silva, nutricionista
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Foi o que aconteceu comigo. Acredito ser mais fácil falar sobre este assunto por ter vivido algo semelhante, num estado de exaustão física e emocional, até ser diagnosticada com uma doença autoimune. O que eu não sabia, na altura, é que o meu corpo já andava a avisar há muito tempo, e se tivesse feito mudanças de estilo de vida quando os primeiros sinais apareceram, o desfecho poderia ser diferente. Ainda assim, mesmo com um diagnóstico, vamos sempre a tempo de ganhar qualidade de vida e colocar a doença em remissão.

Cada capítulo do seu livro é dedicado a um eixo da relação do intestino com diferentes órgãos. De entre aqueles que nos traz, há algum que queira destacar por considerar especialmente determinante para a saúde global — seja por ser menos conhecido, mais impactante clinicamente, ou por revelar uma nova perspetiva sobre diagnóstico e tratamento?

É difícil escolher um único eixo, porque todos os capítulos foram escritos com o objetivo de mostrar justamente isso: que a saúde não está compartimentada. Mas se tivesse de destacar um seria o eixo intestino-pele.

Ao contrário do eixo intestino-cérebro, que é, sem dúvida, o mais conhecido, este não é assim tão falado. No caso do cérebro, ainda é comum que sintomas como ansiedade, insónias ou perda de foco sejam tratados apenas como emocionais, quando o tratamento tem de ser multifacetado, pois muitos desses sintomas têm uma base orgânica que passa pela permeabilidade intestinal, pela incorreta absorção de nutrientes, ou mesmo incorreto aporte de nutrientes na alimentação, ou pela disbiose. A ligação entre o intestino e o sistema nervoso é direta, tanto a nível bioquímico como através do nervo vago, e afeta a forma como nos sentimos e reagimos.

Contudo, destaco o eixo que o liga à pele, por ser um dos menos explorados e, ao mesmo tempo, um dos mais subestimados. Muitas pessoas vivem com acne inflamatória, dermatite, rosácea, psoríase, com tratamentos que apenas controlam o sintoma visível, sem abordar o que pode estar a alimentar esse processo inflamatório de dentro para fora. Na prática, vemos pessoas que vêm para resolver sintomas intestinais, e que a pele é um dos primeiros órgãos que melhora significativamente, com estratégias de modulação intestinal, e não apenas com cremes ou restrições alimentares aleatórias. No capítulo deste eixo, explico essa ligação de forma mais clara, com sinais de alarme e um plano de ação.

A saúde intestinal não é um plano alimentar da moda. É individual, pressupõe um passo a passo, e é uma peça central da regulação imunitária, hormonal, metabólica e neurológica.

Há uma passagem no seu livro que nos convoca à reflexão e que se prende com o seu percurso: “Estava a fazer o que praticamente todos os ‘gurus do fitness’ faziam (e continuam a fazer): uma alimentação pouco diversa, excesso de produtos com adoçantes artificiais, falta de nutrientes...” Não obstante, ei-los, aos gurus, a proliferar à boleia de diferentes meios. Porque lhes continuamos a dar tanto do nosso tempo?

Porque oferecem respostas simples para problemas complexos. E o cérebro humano procura justamente isso. É mais fácil seguir uma regra rígida do que lidar com nuances, é mais fácil acreditar numa solução pronta do que aceitar que a recuperação exige consistência, tempo e adaptação. E depois há o lado emocional: essas mensagens vêm muitas vezes de pessoas que se apresentam como histórias de superação, com corpos considerados desejáveis e com uma linguagem motivacional que, no imediato, ativa esperança.

Membro efetivo da Ordem dos Nutricionistas, Isabel Pedroso Silva licenciou-se em Ciências da Nutrição e Alimentação pela Universidade do Porto e é certificada em Microbiota e Saúde Intestinal, Alimentação Restrita em FODMAP e Transtornos Alimentares.

Iniciou o trabalho na Associação do Porto de Paralisia Cerebral, enquanto era country manager na empresa que desenvolve o software de nutrição Nutrium. Após um distúrbio alimentar e o diagnóstico de uma doença autoimune que afeta a tiroide, a Doença de Graves, demitiu-se, abriu o seu próprio consultório e assentou o seu método em cinco pilares que visam reduzir a inflamação crónica de baixo grau e otimizar a digestão.

Atualmente, é formadora, consultora de nutrição, lidera uma equipa que trabalha com a mesma metodologia e mantém o atendimento clínico online.

Eu não diria que o problema está em querer simplificar, mas quando essa simplificação exclui o pensamento crítico, ignora a biologia do ser humano e gera culpa nas pessoas que não conseguem os mesmos resultados, aí o bom senso deveria ser ativado. Eu própria segui esse caminho durante algum tempo, mesmo já formada em ciências da nutrição. Tinha conhecimento teórico, mas o meu estilo de vida era puramente para atingir uma determinada forma física e percentagem de massa muscular, ignorando sinais claros do meu corpo como cansaço, irregularidade de fezes, ciclos menstruais desregulados, extremidades frias, enxaquecas frequentes, défices nutricionais.

A ciência e os sintomas não vendem tão rápido como uma foto de um antes-e-depois no Instagram. A estética é mais apelativa do que os sintomas que ninguém vê. Mas gostava que mais pessoas entendessem que esses sintomas que aprendemos a ignorar, a admiti-los como normais na nossa vida, estão a deteriorar-nos interna e externamente. Um dia a conta chega para todos. A boa notícia é que vamos sempre a tempo de mudar o rumo da nossa genética e saúde.

Ainda relacionado com a pergunta anterior: A saúde intestinal é um tema que entrou na discussão pública. Quais são os riscos de banalizarmos a saúde intestinal com lugares-comuns e soluções simplistas? O que a preocupa no discurso dominante?

Ao banalizarmos o tema, desacreditamos o impacto que a saúde intestinal pode ter e isso leva muitas pessoas a desistirem antes de começarem. Hoje, fala-se de intestino como se fosse moda: “reset digestivo”, “7 dias para desinchar”, “sumos detox para o intestino”. Tudo isso reduz um sistema tão complexo e determinante a uma lista de regras, de exclusões alimentares ou produtos da moda. Há muito ruído e as pessoas além de ficarem confusas, iniciam dietas muito restritivas ou suplementos sem qualquer fundamentação científica, levando-as a estados de saúde piores do que quando iniciaram.

Um dos objetivos que este novo livro traz, e que felizmente a minha equipa de nutricionistas também segue, é explicar antes de aplicar. Acredito piamente que quando percebemos o porquê de determinada recomendação, mais facilmente mantemos a longo prazo. Os casos mais comuns na nossa equipa são pessoas céticas, que perderam a confiança, que alegadamente já tentaram tudo. Só que, se ainda existem sintomas, não, ainda não tentamos tudo. A saúde intestinal não é um plano alimentar da moda. É individual, pressupõe um passo a passo, e é uma peça central da regulação imunitária, hormonal, metabólica e neurológica.

A inflamação crónica de baixo grau é uma inflamação silenciosa e persistente, que não se manifesta com febre ou dor aguda, mas que vai criando desequilíbrio em várias partes do corpo ao longo do tempo.

Escreve a Isabel Pedroso que “o intestino conta-nos muitas histórias, que vão além daquilo que comemos”. Que historias são estas?

São histórias emocionais, antes de mais. Histórias de pessoas que não sabem dizer que não, que vivem em alerta constante, que se anulam para corresponder ao que os outros esperam, que se cobram em excesso, e que, aos poucos, vão deixando de conseguir digerir a vida e os alimentos também.

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Já sabemos, pela prática e pela ciência, que o intestino não responde apenas à alimentação. O alimento que gera um sintoma de má digestão não é o problema: o problema nunca é o alimento, mas o estado interno da pessoa. O intestino e o nosso corpo reagem à forma como vivemos, sentimos, controlamos, reprimimos ou ultrapassamos o que nos acontece.

Pessoas com sintomas digestivos persistentes, mesmo com alimentação aparentemente correta, muitas vezes têm em comum um padrão de exigência, de vigilância constante, de preocupação quase obsessiva... Isso gera uma hiperactivação do sistema nervoso, afeta a motilidade do intestino, a digestão e até a composição da microbiota intestinal.

 Quando chegam até nós pessoas com uma lista infindável de sintomas intestinais e extraintestinais, nós tentamos sempre entender a sua história emocional. O que este livro mostra é isso mesmo: que para recuperar a saúde, temos de reconhecer o corpo como reflexo não só da falta de rotinas, como da nossa carga emocional, e aprender a escutá-lo antes de o silenciar com mais uma regra alimentar, mais um laxante ou mais um anti-inflamatório de forma aleatória.

A abrir o livro alerta-nos para a inflamação crónica de baixo grau. Do que se trata esta inflamação e de que forma impacta doenças várias?

A inflamação crónica de baixo grau é uma inflamação silenciosa e persistente, que não se manifesta com febre ou dor aguda, mas que vai criando desequilíbrio em várias partes do corpo ao longo do tempo. É diferente da inflamação aguda, que é uma resposta natural e saudável do corpo a uma lesão ou infeção. Aqui estamos a falar de um estado inflamatório que se mantém de forma contínua, quase impercetível, mas que está na base das doenças. E que se for percebido a tempo, e feitos os devidos ajustes no estilo de vida, podemos prevenir diagnósticos. Desde patologias autoimunes, cardiovasculares, metabólicas, como a resistência à insulina e obesidade, até doenças neurológicas, depressão e fadiga crónica.

A origem dessa inflamação, muitas vezes, está no intestino: na permeabilidade intestinal aumentada, na disbiose, na má digestão crónica ou na sobrecarga do sistema imunitário. O intestino é a nossa maior interface com o exterior, e quando a sua barreira está comprometida, as partículas mal digeridas e outros mediadores inflamatórios conseguem atravessar para a corrente sanguínea, ativando o sistema imunitário de forma constante. No livro explico como este processo acontece, quais são os sinais de alarme e o que pode ser feito para regular essa resposta, com base na alimentação, no ritmo de vida, no sono e no sistema nervoso.

Concorda que parte da disfunção intestinal moderna é uma consequência de estarmos culturalmente desligados de sensações corporais subtis? No fundo, o corpo “fala” connosco, mas não o queremos escutar ou sequer sabemos traduzir o que nos está a transmitir…

intestino
intestino créditos: Manuscrito

Concordo. Estamos todos demasiado ocupados; ninguém tem tempo para refletir sobre aquela dor nas costas persistente ou o porquê de as fezes não estarem moldadas.

Há uma grande desconexão entre o que sentimos e o valor que damos a esses sinais. A cultura atual promove o desempenho, o foco exterior, e não nos ensina a interpretar os sinais e sintomas. Inclusive, há quem dê mais ênfase a exames do que aos sintomas, e isso na prática clínica é errado: os sinais e sintomas são sempre soberanos numa avaliação clínica bem feita, sendo os exames apenas complementares.

Acordar sempre com inchaço abdominal, ter sono depois das refeições, ter mais apetite no final do dia, irritabilidade ou alterações no humor: tudo isto é frequentemente normalizado ou camuflado com café, mais trabalho, ou uma alimentação sem critério nem sentido nenhum. E muitas vezes, quando finalmente se procura ajuda, o quadro já evoluiu: há inflamação aumentada, desregulação hormonal, perda de tolerância digestiva.

Grande parte da disfunção intestinal moderna não vem apenas da alimentação, mas de uma acumulação de maus hábitos e da forma como vivemos, em desconexão total, com défice de descanso, com pouco espaço para reparar, mastigar e respirar. A literacia corporal é o primeiro passo para recuperar saúde e isso também se treina.

O intestino e o nosso corpo reagem à forma como vivemos, sentimos, controlamos, reprimimos ou ultrapassamos o que nos acontece.

No livro, alerta-nos amiúde para a necessidade de construirmos um sistema digestivo resiliente. Também escreve que, neste contexto, a alimentação é só o início. O que se lhe segue?

A alimentação é essencial, mas não chega. Dou sempre o exemplo de uma mesa: tem várias pernas para se manter estável e segura. Para construirmos um sistema digestivo resiliente, o trabalho é igual: ter uma mesa com vários pilares. Um deles é a variedade alimentar, mas depois temos o pilar/ perna do sono, das rotinas e ritmo circadiano, da gestão emocional, do movimento diário, de momentos de pausa. Ou seja, precisa de um corpo que esteja seguro o suficiente para poder fazer as tarefas mais naturais que ele está cá para fazer: digerir, absorver e regenerar.

Se comemos bem, mas vivemos em stresse crónico, com o corpo em modo “ameaça” 24 horas, sete dias por semana, a digestão vai ser prejudicada. Se não dormimos bem, a permeabilidade intestinal aumenta. Se não nos mexemos, a motilidade desacelera. Se estamos sempre a estimular o corpo com café, ecrãs e exigência emocional, o sistema digestivo entra em compensação.

 É por isso que, no livro, incluí planos de ação que vão além do prato. A saúde digestiva é construída com decisões consistentes que envolvem todo o estilo de vida.

Há perto de um ano a Isabel Pedroso dizia-me que “o estudo científico sobre microbiota intestinal está muito no início”. De lá para cá, houve algum avanço nesta área que a tenha surpreendido pela positiva? De que forma?

Sim, e apesar de continuar a considerar que estamos no início do caminho, os avanços no último ano foram notórios e, acima de tudo, relevantes do ponto de vista da prática clínica. Diria que o que mais me surpreendeu foi a forma como começámos finalmente a consolidar aquilo que antes eram apenas hipóteses: a relação direta entre microbiota e saúde mental, por exemplo, está agora muito mais bem descrita. Já não se fala apenas de correlações, há estudos a identificar padrões microbianos associados a fenótipos depressivos, à resposta ao stresse e até à neurogénese. Há metabólitos produzidos por determinadas bactérias que estão a ser associados a funções cognitivas e emocionais específicas, o que confirma muito do que vemos na prática clínica.

Além disso, até aqui, grande parte da investigação era observacional, mas estamos a ver um crescimento da produção científica com base em ensaios clínicos randomizados. Outro ponto importante: já não se fala só de “probióticos genéricos”, mas de abordagens dirigidas à composição individual da microbiota, com potencial para tratar doenças metabólicas, imunológicas e neurológicas.

O que antes era um campo promissor, está agora a dar passos para integrar uma medicina mais personalizada. Mas ainda assim, o meu foco continua a ser: traduzir estes avanços para algo aplicável, realista e útil no dia a dia de quem está com sintomas e vontade de fazer diferente.