A realidade da saúde em Portugal mudou — e os enfermeiros mudaram com ela. Em tempos de transição demográfica acelerada, envelhecimento populacional e aumento exponencial de doenças crónicas, a hospitalização domiciliária (HD) deixou de ser uma promessa para se tornar numa necessidade estrutural do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Já não é apenas uma alternativa hospitalar — é uma solução sólida, testada e amplamente reconhecida pela sua eficácia, segurança e humanização dos cuidados. No centro deste modelo estão os enfermeiros. O que falta? Reconhecê-los formalmente como os profissionais altamente diferenciados que são.

O contexto clínico da hospitalização domiciliária é tudo menos simples. Ao contrário do ambiente hospitalar, estruturado e previsível, o domicílio apresenta-se como um espaço não controlado, marcado por múltiplas variáveis físicas, sociais e familiares. O enfermeiro que ali atua não é apenas um executor de cuidados — é um clínico autónomo, um gestor de risco, um educador terapêutico e, por vezes, o único rosto de proximidade visível no sistema.

Numa só visita, pode estar a administrar terapêutica endovenosa, a monitorizar uma instabilidade clínica súbita, a avaliar um cuidador esgotado ou a intervir numa situação paliativa delicada. Não se trata de uma prática generalista. Trata-se de uma competência especializada.

Neste enquadramento, a recente publicação do Regulamento n.º 395/2025 pela Ordem dos Enfermeiros representa uma oportunidade histórica. Ao abrir caminho ao reconhecimento de novas competências acrescidas diferenciadas, o regulamento oferece à profissão um instrumento robusto para responder às exigências do presente e do futuro.

Entre as áreas que claramente cumprem os critérios de especificidade, eficácia e pertinência delineados no regulamento, a Enfermagem em Hospitalização Domiciliária destaca-se — não só pelo impacto dos seus resultados em saúde, mas também pela complexidade técnica, ética e relacional do seu exercício.

Na prática, o enfermeiro de HD gere situações de elevada complexidade clínica, frequentemente em doentes polimedicados e com múltiplas comorbilidades. Atua com autonomia, sem o apoio direto de uma equipa hospitalar, e recorre a tecnologia avançada, desde bombas de perfusão a sistemas de monitorização remota. Capacita cuidadores informais, articula com equipas multidisciplinares e promove a continuidade de cuidados com elevada literacia e sensibilidade cultural. É, portanto, um profissional com competências que devem ser não apenas reconhecidas, mas certificadas.

O reconhecimento da Competência Acrescida Diferenciada em Enfermagem de Hospitalização Domiciliária traria benefícios claros em três dimensões:

  • Para os utentes: garantiria cuidados prestados por profissionais cuja prática foi validada por critérios rigorosos, aumentando a segurança, a eficácia e a confiança no modelo.
  • Para os enfermeiros: valorizaria uma prática de elevada exigência e relevância, oferecendo um caminho de progressão profissional e incentivando a formação contínua.
  • Para o sistema de saúde: permitiria identificar e integrar profissionais altamente qualificados nas Unidades de Hospitalização Domiciliária (UHD), padronizando a qualidade e reforçando a eficiência do SNS.

É importante sublinhar que este reconhecimento não representa uma fragmentação da profissão, mas sim a sua valorização. A prática em HD é transversal a várias especialidades — médico-cirúrgica, saúde familiar, cuidados paliativos, saúde mental — e exige uma integração de saberes que só pode ser garantida através de um percurso formativo e experiencial robusto.

A hospitalização domiciliária não é um projeto piloto. É uma realidade consolidada, com equipas a funcionar em todo o território nacional, com resultados medidos e documentados. Ignorar a necessidade de reconhecer formalmente os enfermeiros que nela atuam é desperdiçar talento, comprometer a qualidade e travar a evolução da profissão.

Por isso, o tempo de esperar acabou. A ferramenta legal existe. A evidência prática é irrefutável. O compromisso com a saúde de proximidade exige coragem institucional. Está nas mãos de todos nós, profissionais e cidadãos, exigir que ele seja dado.

A hospitalização domiciliária é o futuro dos cuidados — e já está a acontecer. Reconhecer formalmente os enfermeiros que o tornam possível não é um ato simbólico. É um investimento real na qualidade, na segurança e na humanização do SNS.

Chegou o momento de transformar a competência em reconhecimento.
E com isso, dar mais um passo firme na valorização da Enfermagem em Portugal.