Há duas coisas que preocupam o mundo: as preocupações didático-pedagógicas e as batatas a adivinhar terra. Ambas urgem soluções radicais que, por obra do acaso, parecem confluir numa censura. Em boa verdade, censuramos as batatas que começam a grelar enquanto as descascamos, assim como censuramos versos de Odes quando os queremos ensinar.

O auge da censura é censurar um morto. Devia dar direito a crime por profanação de cadáver porque isto mexe com a pessoa. O problema aqui é que Fernando Pessoa não está completamente morto. Deixou uma vasta obra e essa é a única forma física de alguém se eternizar. Meterem-se com um escritor com tantos heterónimos é corajoso, já que torna difícil exterminá-lo. Obriga a uma astúcia diferente, a uma censura mais apurada ou, então, a uma boa caçadeira - isto porque o tiro abre em leque e há uma probabilidade maior de conseguir limpar o autor e as suas personagens, com um só tiro.

Se os alunos quiserem aprender as coisas na íntegra, vão ter de pedir o manual emprestado ao professor

A Porto Editora substituiu os versos 143, 169 e 170 do excerto da Ode Triunfal por linhas tracejadas, mas recusa as acusações de censura porque o poema vem reproduzido na sua íntegra no manual do professor. O que a Porto Editora quer, realmente, é promover a partilha e desenvolver a capacidade de cuidar, por parte dos alunos. Se os alunos quiserem aprender as coisas na íntegra, vão ter de pedir o manual emprestado ao professor.

Devido à quantidade de alunos existente em cada turma, vão demorar os três períodos a analisar a obra. No entanto, a Teresa nem tempo vai ter para analisar obra nenhuma, porque acabou o período mais cedo. Engravidou, portanto. Talvez também por causa deste excesso de preocupação didático-pedagógica, não terão sido abordados certos temas nas aulas de educação sexual ou então substituíram a informação da bula do contraceptivo oral por linhas tracejadas, ficando o farmacêutico com o prospecto na íntegra. Está tão, mas tão baralhada que, após ter ouvido falar em bancos de esperma, agora só se senta em cadeiras.

Há sempre o risco desta editora vir a ser acusada de bullying por parte dos alunos que tiverem de ler estes versos em voz alta. Pior do que ler versos com asneiras é ler em tracejado e parecer que ficaram sem rede a meio da leitura da obra.

Com este excesso de zelo (não confundir com censura), o próximo passo da Porto Editora será ter as páginas dos seus livros a passar automaticamente da 68 para 70, omitindo a 69  - por questões didático-pedagógicas, obviamente.

Alberto Caeiro não se preocuparia muito com esta polémica. Recusar-se-ia a pensar nisto (confirmando que o pensamento só complica e torna a realidade confusa), já que nunca lhe interessou muito o que está por trás das coisas. Procuraria ver a situação tal como é, não lhe atribuindo nenhum significado, pelo que não veria mais do que uma mera substituição de versos por linhas tracejadas. Quem nunca o fez, que atire a primeira pedra (não fosse ele um camponês amante da natureza). Quase nada o irritava, a não ser a metafísica e qualquer tipo de simbologia para a vida. Por ironia da vida, morreu de tuberculose.

Nos tempos que correm, arriscar-se-ia a acordar num quarto, amarrado a uma cama, numa orgia com o Castelo-Branco

O Dr. Ricardo Reis muito provavelmente apreciaria esta polémica à distância, no Brasil. Para ele a vida era efémera e o futuro imprevisível, optando por aproveitar o momento, pelo que também se estaria nas tintas. Faria, certamente, um esforço lúcido para obter uma qualquer calma e relativizar o assunto. O estranho é que temia tanto a morte e nunca se soube ao certo quando morreu. Actualmente, se se mantivesse no Brasil, Bolsonaro não tardaria em marcar-lhe esse dia.

Já Álvaro de Campos, o visado neste assunto, provavelmente falaria numa linguagem excessiva e impetuosa, mas até acharia o acontecimento positivo. Assim teria um pretexto para sentir tudo de todas as maneiras e viver tudo de todos os lados. Se bem que, nos tempos que correm, arriscar-se-ia a acordar num quarto, amarrado a uma cama, numa orgia com o Castelo-Branco.

Enquanto a história se encarrega de nos lembrar que a censura não é o caminho, os alunos ficam com uma vontade de mandar quem a pratica para a "---- que os pariu". Ah, aqui o tracejado também não é censura. É apenas uma preocupação didático-pedagógica em tom de educação.