Em 2024, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) recebeu cerca de 1,5 milhões de chamadas. Destas, pelo menos 170 mil não correspondiam a verdadeiras emergências médicas. Este número não é apenas estatístico — é um sinal de alarme. Revela uma sociedade que, em muitos casos, não sabe como agir nem quando pedir ajuda. E isso tem custos: financeiros, humanos, operacionais e éticos.
A resposta a este problema não passa apenas pela reorganização dos serviços, mas exige uma transformação cultural. A literacia em saúde é o primeiro passo para essa mudança. Saber prevenir, reconhecer sinais de alerta e agir corretamente em situações graves é uma competência essencial — não só para salvar vidas, mas também para reforçar a autonomia e a dignidade da pessoa humana.
É importante ser claro: ensinar Suporte Básico de Vida (SBV) nas escolas não resolve, por si só, todos os problemas da emergência médica. No entanto, capacitar os cidadãos, dotá-los de ferramentas para agir, cuidar e proteger é uma medida de justiça social e de cidadania ativa, com impactos positivos na saúde pública.
Este empoderamento deve estar inserido numa cultura de gestão de risco, onde a prevenção é valorizada tanto quanto a resposta. A gestão de risco não é apenas uma técnica — é uma forma de pensar o futuro, de antecipar vulnerabilidades e de construir comunidades mais seguras. E isso começa com educação, planeamento e solidariedade.
A cadeia de sobrevivência, conceito central na medicina de emergência, mostra-nos que salvar uma vida depende de vários elos interligados: o reconhecimento precoce da emergência, o pedido de ajuda eficaz, a intervenção imediata pelas pessoas presentes, a resposta profissional rápida e os cuidados hospitalares adequados. Se um destes elos falhar, a vida pode perder-se. E é precisamente aqui que a formação em emergência médica se revela decisiva — porque o primeiro elo da cadeia começa no cidadão.
A resiliência comunitária, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é a capacidade de uma comunidade para resistir, adaptar-se e recuperar de situações adversas. Essa resiliência não se constrói apenas com infraestruturas — constrói-se com pessoas informadas, solidárias e preparadas.
Neste contexto, o Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM) é uma das maiores conquistas do Estado Social português. Articulando INEM, bombeiros, forças de segurança e hospitais, o SIEM garante uma resposta coordenada e eficaz. Mas o seu sucesso depende também da colaboração da sociedade civil. E essa colaboração só é possível se houver conhecimento e confiança mútua.
A tradição judaico-cristã, que molda a nossa cultura, ensina-nos que ajudar o outro é um dever moral. A solidariedade não é apenas um valor abstrato — é uma prática concreta, que se manifesta quando alguém sabe estancar uma hemorragia, realizar compressões torácicas, ligar corretamente para o 112, manter a calma e ajudar. Salvar uma vida é o mais alto gesto de amor ao próximo.
Mas este dever não é apenas moral — é também constitucional. A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 64.º, consagra o direito à proteção da saúde e impõe ao Estado a responsabilidade de garantir o acesso universal e equitativo aos cuidados de saúde. Promover a literacia em saúde e capacitar os cidadãos para salvar vidas é, por isso, uma obrigação constitucional e um pilar do Estado de direito democrático.
É inaceitável que cidadãos e organizações tenham de pagar para adquirir conhecimentos em saúde. Saber salvar uma vida não pode ser um privilégio — tem de ser um direito. E um dever partilhado.
Portugal tem os meios, os profissionais e o conhecimento. Falta-nos a coragem para romper com um modelo que favorece o lucro em detrimento da prevenção e da solidariedade. A melhor emergência é a que nunca devia ter acontecido.
E a resposta começa em cada um de nós. Porque a literacia em saúde tem de chegar a todos. Só assim construiremos um sistema mais justo, mais humano e verdadeiramente preparado para ajudar.
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