“Não podemos exigir à criança que coma sopa, quando ninguém mais o faz em casa”. De acordo com a nutricionista Rita Cruz de Sousa, os bons hábitos alimentares começam em ambiente familiar, num trabalho que deve de envolver pais e filhos. Como forma de facilitar a tarefa, a especialista em alimentação com trabalho junto da comunidade escolar, dá aos escaparates o guia Comer bem para crescer melhor” (editora Influência).

Obra que é mote para derrubar mitos associados à comida. “Comer saudável não é caro”, sublinha Rita de Sousa, que nos deixa alertas a propósito do marketing alimentar como o do leite rico em cálcio para as crianças, mas “ao qual foi adicionado chocolate que impede a absorção do mesmo pelo organismo da criança”. Outro exemplo, o dos iogurtes para bebés, repletos de açúcar disfarçado, a maltodextrina ou xarope.

Isto numa sociedade onde não falta informação, mas há que selecioná-la para cumprir os três pilares da boa alimentação: variada, equilibrada e completa.

“Temos uma das melhores heranças nutricionais, a Dieta Mediterrânica, mas estamos a pô-la de parte”, recorda-nos a nutricionista que, nesta conversa, inclui estratégias para combater a falta de tempo, tantas vezes "culpada" de uma dieta menos equilibrada.

Rita de Sousa que conheceu a maternidade em 2018 (será de novo em breve mamã) recorda-nos que “existe uma vida antes de ser mãe e depois de ser mãe”. Para facilitar a vida na maternidade, a especialista na área da Nutrição Comunitária criou o projeto digital Mãe e Nutricionista”.

Na apresentação que faz ao seu livro Comer bem para crescer melhor”, a Rita Cruz de Sousa é clara em relação aos hábitos alimentares dos mais jovens: cada vez menos saudáveis”. Pode pormenorizar?

Os hábitos das crianças e jovens são cada vez menos saudáveis, uma atitude que está a começar mais cedo. O primeiro ano na criança é sempre levado com muito cuidado por parte dos pais e cuidadores, mas a partir do momento em que o ou a pediatra diz que a criança pode fazer a alimentação da família, as coisas começam a descontrolar-se. Antes, é preciso perceber qual é a alimentação da família. Posto isto, podemos afirmar que estes hábitos começam, maioritariamente, em casa, pelas mais variadas razões.

nutricionista Rira Cruz de Sousa
Nutricionista Rira Cruz de Sousa. créditos: Editora Influência

Os jovens não estarão sozinhos neste caminho. Os pais não estão a promover hábitos alimentares saudáveis junto dos mais novos?

O padrão alimentar dos mais novos é construído desde cedo e de acordo com o padrão da família. As crianças seguem o exemplo dos pais e, no que toca à alimentação, não é exceção. Não podemos exigir a uma criança que coma sopa ao jantar, quando ninguém mais em sua casa o faz. Muitas vezes, deve-se à falta de informação, à falta de tempo, entre outros motivos.

A Rita refere a questão da informação. Não será por falta desta, ou acesso à mesma, que pais e, consequentemente, os mais jovens adquirem maus hábitos alimentares. No entender da Rita o que está a falhar?

A falta de informação continua a estar, muitas vezes, na raiz dos problemas alimentares das crianças e das suas famílias. Por outro lado, vivemos tempos em que também somos bombardeados de informação que nem sempre é correta. A prova disso são os imensos mitos enraizados na comunidade, por exemplo, é caro comer saudável, é difícil confecionar refeições saudáveis, a comida saudável é aborrecida, etc.

É necessário informar, com recurso à ciência, àquilo que está efetivamente comprovado.

No seu livro traz-nos um facto preocupante: Portugal é um dos países da Europa com maior prevalência de pré-obesidade, obesidade entre as crianças”. Isto, a par de Espanha, Itália, Malta ou Grécia. Países cultores da Dieta Mediterrânica. Como podemos explicar esta realidade?

Alimentação para a fertilidade, gravidez e pós-parto nas explicações da nutricionista Maria Inês Antunes
Alimentação para a fertilidade, gravidez e pós-parto nas explicações da nutricionista Maria Inês Antunes
Ver artigo

É, de facto, muito preocupante. Infelizmente estamos a perder os bons hábitos da Dieta Mediterrânica, como o consumo de sopa de legumes às refeições (não é canja, é sopa de legumes), o consumo de fruta ao natural e da época, o consumo de pescado em detrimento da carne (principalmente da carne vermelha), o consumo de água ao longo do dia que cada vez mais é substituído por bebidas açucaradas, o consumo excessivo de sal, entre muitos outros.

Temos uma das melhores heranças nutricionais, a alimentação mediterrânica, mas cada vez é mais posta de lado. É preciso trabalhar ativamente com a comunidade urgentemente.

Nem tudo será um caminho menos positivo no que toca à alimentação das crianças e jovens em Portugal. O que podemos apontar como evolução positiva em anos mais recentes?

A verdade é que nos últimos anos Portugal tem demonstrado que é possível alterar hábitos alimentares. É um trabalho difícil e demorado e requer muitas equipas de nutricionistas em campo, quer seja nas escolas, nos lares, nas empresas ou nos hospitais. Infelizmente estes recursos ainda são escassos, é preciso uma aposta mais forte neste sentido, mas ainda assim, os resultados mostram-se já muito positivos, principalmente ao nível das crianças, quer ao nível da prevalência de excesso de peso e obesidade infantil, quer ao nível dos conhecimentos. Não nos podemos esquecer que as crianças de hoje são os futuros adultos e é, por isso mesmo, necessário e muito importante trabalhar nesta faixa etária, trazendo no futuro ganhos em saúde.

A verdade é que nos últimos anos Portugal tem demonstrado que é possível alterar hábitos alimentares.

Sucintamente, o que se entende como alimentação infantil saudável?

Uma alimentação infantil saudável assenta nos mesmos pressupostos da alimentação saudável em geral, embora em quantidades diferentes e excetuando o primeiro ano de vida. O que significa, segundo a Roda dos Alimentos, que deve ser variada, equilibrada e completa. Variada, pois dentro de cada grupo da Roda dos Alimentos a escolha dos alimentos deve ser variada diariamente - por exemplo, não devemos comer sempre batata-doce, podemos e devemos intercalar com a batata inglesa, são ambas saudáveis e constituídas por nutrientes diferentes. Equilibrada, uma vez que é necessário respeitar as quantidades mínimas e máximas de cada grupo de alimentos. E completa, pois todos os grupos da roda dos alimentos fornecem nutrientes necessários e nenhum deve ser excluído da alimentação.

Infelizmente, a Roda dos Alimentos é um instrumento que nem todas as pessoas conhecem, apesar de muito simples de ser entendido e pode auxiliar nas escolhas alimentares do dia a dia.

comer bem para crescer melhor
créditos: Editora Influência

Rita, porque não podemos separar a prática de uma alimentação saudável do conhecimento dos nutrientes?

Se não conhecermos os nutrientes não vamos ser capazes de fazer escolhas acertadas. Um exemplo muito comum são os lípidos ou gorduras, que são sempre mal vistos. É preciso saber que os lípidos são absolutamente necessários para que o organismo humano desempenhe as suas funções normalmente e, por isso, não devem nunca ser excluídos. Mas não significa que todos sejam benéficos, existem claramente alguns que devem ser evitados.

Infelizmente, a Roda dos Alimentos é um instrumento que nem todas as pessoas conhecem, apesar de muito simples de ser entendido.

A alimentação também é marketing. Os lineares estão cheios de rasteiras” em relação a supostos alimentos equilibrados. Onde residem os perigos ocultos?

Estes perigos são diários e constantes, às vezes torna-se muito difícil para os pais perceber que alimentos são saudáveis e que alimentos não são. As prateleiras dos supermercados encontram-se cheias de produtos dirigidos a crianças com menções de que são os mais saudáveis. Os iogurtes, por exemplo, temos os iogurtes naturais e depois temos os iogurtes naturais “para bebés”. Basta olharmos para o rótulo de um e de outro para verificarmos que o primeiro tem três ingredientes e o segundo tem uma lista interminável de ingredientes, sendo que nos primeiros encontramos logo o açúcar, muitas vezes disfarçado (maltodextrina ou xarope, na maioria das vezes).

O leite também é um bom exemplo?

No leite com chocolate vemos pacotes superapelativos para as crianças que mencionam ser ricos em cálcio. Pois bem, nestes casos temos de facto leite rico em cálcio, mas ao qual foi adicionado chocolate que impede a absorção do mesmo pelo organismo da criança. Tendo em conta que a criança se encontra em crescimento e desenvolvimento e promover as reservas de cálcio é determinante para uma vida saudável, faz do leite com chocolate um produto sem qualquer interesse nutricional.

Para não se ser enganado é indispensável saber ler corretamente os rótulos dos alimentos. É compreensível que os pais, querendo o melhor para os seus filhos, por vezes se deixem enganar por estas alegações.

Não raro, os pais enfrentam falta de tempo. Que estratégias nos pode apontar a Rita no exercício de conciliar uma agenda diária preenchida com a alimentação equilibrada dos mais jovens?

Reservar umas horas do fim de semana para programar as refeições da semana é uma boa estratégia. Aproveitar para confecionar algumas refeições que possam ser armazenadas no congelador e descongeladas num dia em que se ficou sem tempo para cozinhar, é uma boa estratégia para famílias que têm pouco tempo no dia a dia.

Crianças à mesa

Falar de vegetarianismo ou veganismo parece equivaler a afirmar, estamos perante uma alimentação/estilo de vida saudáveis. Podem as crianças/jovens praticar uma dieta exclusivamente vegetariana/vegana sem prejuízo do seu desenvolvimento?

Podem, mas não é nada fácil. É preciso muita atenção aos equivalentes alimentares e diria até que sem a ajuda de um nutricionista é muito difícil conseguir. Se não houver a certeza de que a criança está a obter os nutrientes que devia, corremos o sério risco de comprometer o seu correto desenvolvimento. Por outro lado, é preciso ter em consideração que nem toda a dieta vegetariana/vegana é saudável, tudo depende dos alimentos selecionados e até dos métodos de confeção utilizados.

Em síntese, como é um dia ideal” na alimentação de uma criança de sete/oito anos, considerando pequeno-almoço, refeições principais e lanches?

Resumidamente e de uma forma geral, um dia alimentar saudável de uma criança deve ser constituído por seis a sete refeições, são elas o pequeno-almoço, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde [normalmente são duas, mas pode variar de acordo com os horários da criança], jantar e ceia [facultativa, apenas necessária quando o período entre o jantar e a hora de deitar é superior a duas horas e meia, três horas].

No pequeno-almoço e nos lanches devem estar presentes alimentos provenientes dos grupos dos cereais e derivados, leite e equivalentes e fruta da Roda dos Alimentos.

Nas refeições principais, almoço e jantar, ambas devem ser sempre iniciadas com uma sopa de legumes e no prato deve haver peixe, carne ou ovo [que fornecem proteínas], massa, arroz, batata e leguminosas [ricas em hidrato de carbono] e legumes crus ou cozinhados [ricos em vitaminas e minerais], sendo que a sobremesa deve ser fruta, de preferência ao natural e da época.

A ceia deve ser algo muito leve como um copo de leite simples, não esquecendo que é importante que a criança lave bem os dentes antes de dormir.

Ao longo do dia é extremamente importante que a criança beba água e que esta não seja substituída por sumos ou água aromatizadas engarrafadas ou com gás.

Aborda no seu livro os mitos na alimentação dos mais pequenos. Pode indicar-nos dois ou três?

Os mitos são imensos e cada dia que passa ouve-se mais um ou dois, especialmente nas fases da gravidez e da infância. Mas é importante desmistificá-los antes que possam condicionar e influenciar negativamente as escolhas alimentares das crianças e das suas famílias. Os mitos são fruto da desinformação e da má informação que nos dias de hoje circula livremente nas redes sociais e, claro que o marketing também tem a sua quota parte de culpa.

Um dos principais mitos, ou pelo menos dos mais ouvidos, no que respeita à alimentação dos mais novos, está de tal forma enraizado na nossa cultura que são raras as pessoas que colocam a hipótese de se poder fazer de outra forma. Refiro-me ao consumo de bolacha Maria logo desde os primeiros meses de vida de um bebé. Quando se inicia a diversificação alimentar de um bebé é dos primeiros alimentos a ser recomendado (!) pelos pediatras e mesmo que não o seja (raras as exceções), quem nunca ouviu a frase “Coitadinho, não come bolacha Maria!”? É preciso saber que a bolacha Maria não é mais inocente que as demais, é também ela rica em açúcar e gorduras e que, quando consumida em excesso, acarreta consequências a curto e médio prazo, como a obesidade infantil e outras doenças.

É preciso saber que a bolacha Maria não é mais inocente que as demais, é também ela rica em açúcar e gordura.

A Rita de Sousa foi mãe há dois anos. Entretanto criou o projeto digital Mãe e Nutricionista”. Na prática, como nos pode narrar o exercício de conciliar as duas dimensões?

Existe uma vida antes de ser mãe e depois de ser mãe. As prioridades mudam e como todas as mães, também eu quero o melhor para o meu filho, começando pela sua alimentação. Claro que depois de ser mãe, também eu passei a viver as dificuldades de conciliar horário de trabalho, os horários do bebé para comer, o tempo necessário para fazer compras e disponibilidade para cozinhar, que nem sempre tem a ver com o fator tempo, mas também com o cansaço e vontade em determinado momento.

Quando tudo parece jogar contra nós, mas não deixamos de ter em mente o objetivo de fornecer uma alimentação saudável e equilibrada, há que encontrar estratégias que nos possam facilitar a vida. Com uma criança de dois anos e outro a caminho, diria que é fundamental simplificar. As refeições nem sempre têm de ser elaboradas e requintadas. Menos é mais. Também não me considero extremista, tudo tem a ver com o equilíbrio de todos os dias, sendo que a norma, essa sim, deve ser a alimentação saudável.