“A urina de Pitágoras”, “A prostituta de Aquino”, “A flatulência de Montaigne”, “Hobbes, ‘ganda urso’”, “A cocaína de Freud”, “Shopenhauer contra o palhaço” estão entre os 50 episódios que David Erlich leva para o seu livro, A Bebedeira de Kant (edição Planeta). Pelo exposto percebemos que este “manual” de filosofia envereda por um caminho singular. O autor, atualmente a cursar o doutoramento em filosofia, apresenta-nos momentos improváveis da história daquela ciência. O périplo de Erlich é original e transversal à história da filosofia, da antiguidade à contemporaneidade. Nas páginas do seu livro, o também docente, apresenta o pensamento e o contributo dos mais importantes filósofos (sem que faltem dois portugueses), revelando-nos com sentido de humor os temas, as teorias e as ideias filosóficas. “Recomendado a quem quer fugir da habitual frivoleira dos meios de comunicação atuais, mas também não está ainda com pachorra para ler a Crítica da Razão Pura de fio a pavio”, escreve o filósofo e escritor português Desidério Murcho no comentário que acompanha a contracapa do livro.
Para adentrarmos no mundo da filosofia que nos faz pensar com um sorriso, entrevistámos David Erlich.
Na introdução ao seu livro escreve o seguinte: “lamento informar, porém, que este livro só gerará perdas”. Numa época em que proliferam nos escaparates livros que nos prometem ganhos e empoderamento o que leva o leitor [chama-lhe “caro aprendiz”] a apostar numa obra que nos oferece a perda de certezas incontestáveis”?
A disponibilidade para a inquietação. Os livros que prometem soluções fáceis não partem apenas da certeza da solução que propõem; partem também da certeza de que identificaram bem o problema. Pelo contrário, a história da filosofia é uma polifonia. Os consensos que se foram alcançando não omitem as áreas em que a dúvida parece inexpugnável. No entanto, familiarizar-se com essa dúvida parece ser em si próprio empoderador. A perda de certezas absolutas é também uma libertação.
Porque é A Bebedeira de Kant um “exercício de coscuvilhice” como refere?
Percorrer a história da filosofia é abeirar-se a uma conversa pela qual sentimos curiosidade, ouvi-la e sobre ela pensar, eventualmente acrescentar o nosso próprio ponto de vista e, quiçá, discutir tudo isto com alguém. Ora, isso não fica muito longe do modus operandi de quem cede à coscuvilhice.
A anteceder esta entrevista perguntei a quatro pessoas [comuns mortais] o que pensavam da filosofia. Acrescentei à pergunta um patamar de dificuldade: qual o sentido prático da filosofia no nosso quotidiano. Não obtive resposta que valesse aqui reprodução. Em abono da filosofia, o David Erlich quer trazer alguma luz sobre a questão do valor prático no quotidiano?
É agora a vez de um quinto “comum mortal”… Teríamos de discutir previamente o que queremos dizer quando falamos de “valor”, bem como quando falamos de “prático”. Se valor é ganho quantificável, imediato, instrumental, a filosofia certamente não terá nenhum. Mas se valor for compreensão, apaziguamento com o carácter espantado da existência humana, cultivo reflexivo, aí terá algum. Quanto à noção de prático, haveria que distinguir entre o que se situa à superfície do agir e aquilo que, desde o profundo, se manifesta nesse agir. Ambos podem remeter para algo prático. Creio que a filosofia pertence a este segundo campo.
Pensar e Sorrir. O primeiro termo exige-nos algum esforço de concentração, de reflexão. O segundo termo, sorrir, evoca-nos um mecanismo automático, de resposta a algo. Porque junta esta duas partículas no subtítulo do seu livro? Quer com o humor aproximar-nos da filosofia?
Não sei se o sorriso será sempre um automatismo… Ou, se é um automatismo, é um que desenvolvemos, nomeadamente, como reação ao que nos surpreende. Portanto, para além dessa apreensão instrumental que refere, de com o humor procurar uma aproximação à filosofia, o que tentei também esboçar é a ideia de que o humor não é extrínseco ao pensar. Pelo contrário, pensar parece exigir uma capacidade para o humor. Quando sorrimos, é como se constatássemos: “lá estás tu, realidade, a fazer das tuas novamente, surpreendendo-me!”
Porque não podemos esperar “grandes méritos desta obra que tens nas mãos”, como escreve na introdução ao livro? Olhando para o índice, o seu livro elenca 49 episódios tendo como protagonistas grandes nomes da filosofia, o que é promissor...
Tenho tido a oportunidade de algumas intervenções mediáticas ou convites para palestras. O melhor destas participações é a partilha, a aprendizagem. O pior é o risco de começarmos a achar que somos realmente isso tudo que dizem, como Narciso cristalizado olhando o seu próprio reflexo. O comedimento na autoapreciação tem sido peça-chave da minha serenidade. Não digo que é este um livro sem méritos. Mas sim que aqueles que terá não serão nada de grandioso. É um livro, tão-somente, escrito para fazer pensar e fazer sorrir.
Recordo-me da Filosofia Antiga que me foi ensinada na escola e não lhe descortino um particular sentido de humor. O David Erlich chama para o seu livro filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão. Logo no primeiro episódio, “A Queda de Tales”, despertou-me um sorriso - “Tales, ‘na ânsia de conhecer as coisas do céu, deixar escapar o que tinha à frente, debaixo dos pés”. O que podemos aprender com estes primeiros filósofos que não nos é ensinado nos bancos da escola?
Que bom, fico feliz com saber que a leitura despertou esse sorriso. Sugiro, para explorar a vida caricata dos filósofos antigos, a leitura da obra “Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres”, de Diógenes Laércio. Podemos aprender com os filósofos da Antiguidade a conceção da filosofia como uma atividade de diálogo, simultaneamente consigo próprio e com o outro… e ainda como algo que se faz fora das quatro paredes, na comunidade.
Como forma de aliciar o leitor, quer destacar algum dos episódios que relata nesta primeira parte do livro?
Será muito improvável que noutro livro fique a saber que Zenão de Cítio tinha pernas flácidas, que na ordem pitagórica havia indicações sobre como urinar ou que, vítima de difamação, Epicuro foi acusado de espalhar um boato de Aristóteles era dealer.
Olhemos para a Filosofia Medieval. Evoca no seu livro Boécio que personifica a Filosofia como uma mulher que “inspira respeito”. No caso do David Erlich como personificaria a Filosofia?
Como um ponto de interrogação ambulante, à escala humana, saltitando de um lado para o outro, espicaçando-nos, interrompendo-nos com um sorriso provocante quando julgássemos ser derradeiros possuidores da Verdade.
“Boi mudo”. Confesso que desconhecia este epiteto de Tomás de Aquino. O David Erlich sublinha neste episódio o carácter perseverante de Aquino. O que mais admira neste homem medieval?
A capacidade de escrita. Escreveu oito milhões de palavras. Para se ter uma noção, a bíblia tem menos de um milhão.
No capítulo sobre Filosofia Moderna recorda-nos o filósofo britânico Hobbes e o epíteto que lhe era dirigido, “’ganda’ urso”. O que fez o filósofo britânico merecer tal injúria?
Não fui eu que o injuriei. O septuagenário era ridicularizado por Carlos II de Inglaterra. “Aqui vem o urso para ser espicaçado”, chega a dizer o rei ao avistar o filósofo na corte. Isto tem a ver a originalidade das suas ideias políticas: o seu Leviatã tornou-o impopular tanto junto dos liberais, como dos absolutistas adeptos direito divino dos reis…
Olhemos para o título do livro A Bebedeira de Kant. Associamos Kant a um homem austero, de hábitos rígidos. Faz deste episódio título para o seu livro. O que sintetiza este momento de tão importante que o leva a intitular a sua obra?
O facto de Kant ser um nome que todos, ou quase todos, conheceremos; o contraste entre a sua vida adulta, de rigor bastante divulgado, e a sua existência boémia como universitário; e, quiçá, tenho-me apercebido agora com a comunicação do livro, um ingrediente autobiográfico: também eu tive as minhas loucuras joviais e, agora, não dispenso uma breve e boa sesta.
Filosofia Contemporânea: Neste período começamos a ver mulheres na filosofia. Sem entrarmos na tão abordada questão da oportunidade das mulheres num mundo dominado por homens, que contributo trouxe o feminino para o pensamento filosófico no século XX?
Há muitos modos de ser mulher, como há muitos modos de ser homem e, portanto, as mulheres filósofas discordam entre si, não representam uma visão unitária. O que trouxe a sua afirmação é a constatação de que o filosofar não está vedado, por natureza, a nenhum espécime da espécie homo sapiens e que, assim, é ofício que não escolhe género, origem ou idade.
Os portugueses não são dados a filosofar? No seu livro contamos apenas com dois contributos lusos, o de Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço.
Incluir é também excluir, escolher é também declinar, e o projeto de cinquenta episódios obrigou a opções difíceis. Quiçá, com maior tempo para o estudo, tivesse incluído um autor português também na filosofia medieval e na filosofia moderna. Não foi possível. Mas satisfaz-me saber que há um duplo eco português, um eco contemporâneo, atual, vibrante, sobre o qual foi uma honra escrever.
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