A violência doméstica que ocorre no seio das relações de intimidade afeta as famílias por inteiro. Desde logo, afeta os adultos que são vítimas do crime e afeta os filhos que assistem à violência, sofrem e, por conseguinte, são também eles mesmos vítimas. Sendo que, pelo facto de serem crianças e jovens não são menos vítimas.
A lei penal portuguesa veio proteger as crianças e jovens, filhos da violência, e, por isso, sendo os mesmo identificados no âmbito de um processo-crime de violência doméstica enquanto vítimas, têm direito ao Estatuto de vítima, ou seja, um documento que lhes é entregue e que enuncia um conjunto de direitos que lhes foram atribuídos por lei precisamente por serem vítimas. Diante da panóplia de direitos que lhes assiste, podemos encontrar o direito a receber proteção e o direito de pedir a aplicação de medidas de coação que impeçam a atividade criminosa em relação à pessoa agressora. Se pensarmos com maior acuidade facilmente concluímos que a maior parte das vezes a pessoa agressora é a figura paterna, tomando por referência que a maior parte de denúncias de violência doméstica reporta as mulheres como vítimas numa relação de intimidade, logo as crianças e/ou jovens que estão expostas à violência são os filhos das pessoas agressoras e são as mesmas que são legalmente consideradas vítimas e têm direito ao acima aludido estatuto de vítima.
Pois bem, coloca-se a questão de saber de que forma é que os processos de jurisdição de menores tratam as crianças vítimas de violência doméstica. Será que as reconhecem como tal enquanto o processo-crime está pendente?!
A realidade tem-nos dito que os processos de jurisdição de menores só tratam as crianças e jovens como vítimas quando são agredidas fisicamente, pois caso contrário desvalorizam completamente a exposição à violência ocorrida entre os progenitores considerando-a como algo que não diz respeito às crianças e que se trata de um conflito parental.
Este é um erro crasso que está impregnado no sistema judicial, concretamente nos processos de jurisdição de menores no âmbito dos processos de regulação das responsabilidades parentais e mesmo nos processos de promoção e proteção de menor, e que tem resultado em decisões judiciais completamente aberrantes, sem qualquer respeito pela criança e/ou jovem enquanto vítima.
Para esse erro contribui a errada valoração que se faz da audição da criança e do que a mesma diz em relação à pessoa agressora, normalmente interpretado como conflito de lealdade que a criança e/ou jovem tem em relação à mãe quando se posiciona contra os convívios com a figura paterna. Mas não só!
As decisões judiciais alicerçam-se nos relatórios elaborados pelas equipas de assessoria técnica dos tribunais que recorrentemente apelidam a violência doméstica de conflito parental. Ora, esta terminologia, além de revelar uma total incompreensão do fenómeno da violência doméstica entre adultos, reconduzindo-a a um “conflito” sobre questões parentais, retirando a magnitude e importância do crime de violência doméstica, que é simplesmente o crime mais denunciado no país e o crime que mais mata. Os agressores usam efetivamente os processos de regulação das responsabilidades parentais e processos de promoção e proteção de menor para continuar a perseguir a vítima adulta, aterrorizá-la com a ideia de perda dos filhos, o que constitui violência psicológica, para além da restante violência ocorrida no seio da relação de intimidade e das outras formas de violência que continuam a praticar após o fim da coabitação, como sejam as ameaças (incluindo de morte, insultos, a perseguição, quando não mesmo as agressões físicas em relação à vítima adulta. Ora, a violência doméstica não é nem pode ser um mero conflito parental.
Mas, o uso da terminologia “conflito parental” revela também um total desconhecimento do que é a violência doméstica contra a criança e/ou jovem, que vem a resultar numa falta de reconhecimento da criança como vítima. Os técnicos/as olham para a criança como alguém que tem de estar com o pai e com a mãe em pé de igualdade sem olharem para a criança como vítima.
Acresce que, quando as mulheres são ou foram vítimas de violência doméstica e o dizem nos processos de jurisdição de menores, alegando a mesma condição em relação aos filhos, são indubitavelmente vistas como pessoas que, por terem vivenciado a violência com os pais dos seus filhos, querem vingar-se dos mesmos e, por isso, manipulam as cabeças das crianças e/ou jovens contra os pais, fazendo com que estes rejeitem injustificadamente a figura paterna. Ou seja, aquilo que antes era violência doméstica passa a ser considerado conflito parental.
Por conseguinte, a grande preocupação dos tribunais reconduz-se habitualmente em restaurar a relação entre pais, identificados como agressores e os filhos por forma a poupá-los ao conflito parental.
Ora, esta teoria potencia a tomada de decisões completamente antagónicas à visão e reconhecimento da criança como vítima e vem a traduzir-se num sofrimento atroz para as crianças e/ou jovens que se sentem e são obrigadas ao cumprimento de regimes parentais que não querem e comprometem seriamente o seu bem-estar, tranquilidade, saúde emocional e formação da sua personalidade.
Portanto, é importante esclarecer conceitos e chamar as diferentes problemáticas pelos nomes que efetivamente têm de modo a contribuir para uma correta análise e tratamento jurídico das mesmas.
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