Temos assistido a um investimento muito grande ao nível de políticas estatais em torno da violência doméstica e outras formas de violência contra as mulheres.

Essas políticas têm implementado, especificamente no caso da violência doméstica, um conjunto de medidas que visam prevenir, combater e assistir as vítimas deste tipo de criminalidade violenta, sendo que todo o sistema está orientado para a prestação de apoio e cuidado continuado com as vítimas.

A intervenção com as vítimas tem, assim, como escopo o garantir da segurança das mesmas, o combate ao crime com aplicação de medidas concretas aos agressores que impeçam a continuação da conduta criminosa e a recuperação das vítimas.

Sucede, então, que a recuperação das vítimas vai muito para além das decisões judiciais e do que o sistema judicial pode fazer pelas mesmas.

Pelo que, alimentar a ideia de que através dos processos judiciais a problemática da violência doméstica fica resolvida é absolutamente errado e contraproducente ao efetivo apoio das vítimas. Os processos judiciais têm a potencialidade de resolver uma parte do problema, mas não tudo.

Há que pensar no sistema na sua globalidade. Desde a intervenção das e dos técnicos de apoio à vítima, à intervenção das escolas, sistema de saúde, incluindo o apoio psicológico e apoio social prestado às vítimas, entre outros, representam uma assistência com prestação de cuidados efetivos às vítimas que visa uma recuperação das mesmas, muito para além das decisões judiciais por muito importantes que estas sejam.

O problema está na diferença entre o que o sistema tem para oferecer às vítimas e o que as estas esperam do sistema. Apesar de todo o acompanhamento feito, continuam a não ser suficientes as medidas de apoio, além do facto das que existem não irem ao encontro do que se afigura desejável para as vítimas. Os apoios sociais continuam a ser escassos, as vítimas continuam a ter de deixar as suas casas e refugiarem-se em acolhimentos de emergência e em casas de abrigo, nem sempre existe possibilidade de as vítimas manterem os seus trabalhos quando são obrigadas a sair de casa e o facto de terem de abandonar as suas vidas e começar de novo, a maior parte das vezes do zero, é profundamente revimitizador, apesar de acompanhadas e assistidas por técnicas e técnicos. As vítimas quando pedem ajuda esperam que se faça justiça e isso traduz-se na esmagadora maioria das vezes em pedir para que o agressor seja retirado da residência e elas possam continuar na sua residência, no seu local de trabalho, que os filhos possam continuar nas mesmas escolas, e o que acontece habitualmente é o oposto.

Mas, apesar deste desfasamento existente entre a pretensão das vítimas e o que o sistema pode oferecer, existe um acompanhamento de todo o sistema na sua globalidade que permite que as vítimas não estejam sozinhas no seu processo de autonomização.

O problema está quando se afastam os profissionais. Quando se considera que uma vítima está autonomizada? Quando é que uma vítima está recuperada?

Não pretendendo defender o assistencialismo eterno das vítimas, antes pelo contrário, numa lógica de promoção da autonomia e recuperação efetiva das vítimas, é preciso perceber o que acontece com as mesmas quando os processos judiciais terminam, quando voltam a ficar sozinhas em suas casas, muitas vezes em novas localidades e longe do seu habitat natural, o que acontece com as crianças quando retomam as suas escolas, o que acontece com as pessoas idosas vítimas de violência, etc.

Normalmente, findos os processos judiciais, se não antes, o que acontece é haver um desaparecimento das técnicas e técnicos. E depois, o que acontece com as vítimas perante o vazio? Estarão recuperadas de tudo o que viveram? Já não necessitam de ajuda?

Sabemos que por vezes as vítimas voltam mais tarde a pedir ajuda, seja porque precisam de apoio social e/ou psicológico, senão mesmo jurídico, até porque alguns estudos demonstram-no, mas neste momento avançado do seu processo de autonomização as vítimas já não beneficiam do mesmo tipo de assistência até por já não terem estatuto de vítima na sequência do crime anteriormente denunciado e quiçá resolvido, seja por ter havido arquivamento do processo-crime ou, ao invés, porque houve condenação.

A verdade é que sobre esta questão ninguém fala e existe uma ausência completa de interesse nesse sentido.

Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.