Aos 49 anos, António Pedro Cerdeira revela-se uma pessoa sem filtros e sem medo de demonstrar as suas convicções, tanto a nível profissional, como pessoal, até porque as duas acabam por estar relacionadas.

Encontrámos o ator em pleno jardim de Belém num dia soalheiro e bastante convidativo, resultando na conversa que agora se segue. Apareceu com um visual mais austero, a combinar com a personagem a que está a dar vida nas gravações de uma nova série de época da RTP, que retrata um atentado ao Salazar. Terra-à-terra, falou-nos sobre as aventuras e desventuras.

Como é que definiria a sua personagem na novela ‘Nazaré’?

Um bocadinho psicopata, sobretudo devido à mulher, depois de terem ido passar férias e de ficarem presos naqueles incêndios. Retrata um pouco a ‘estrada morte’. Ele passou para um lado em que tem duas motivações de vida: primeiro, a vingança contra as pessoas que estiveram na origem do incêndio, de forma a que estas paguem e morram da mesma forma, ou seja, queimadas. Vai fazer isso. É ‘bom’ porque há sempre muito cuidado nas novelas e aqui optaram por fazer e não ter medo. E, em segundo lugar, o que vem a seguir é morrer, porque a vida fica sem sentido, sem rumo.

Esta foi uma personagem que marca o seu regresso ao pequeno ecrã. Como é que foi recebido pelos colegas? Chegou a ser alvo de algumas partidas, certo?

Sim… porque sou eu que tenho a fama, mas agora não faço tanto.

Mas agora há uma nova geração que o faz por si…

Há. E acho esta nova geração super talentosa, como é o caso da Laura Dutra, João Maneiro, a Joana Aguiar, entre outros. Acaba por haver bastante amizade, intimidade e confiança. Acho importante quando estamos a trabalhar, porque são muitas horas. São coisas inocentes e divertidas. Fui muito bem recebido na novela, porque uma das questões que tinha é que é complicado entrar num projeto a meio.

Houve uma altura em que havia uma data de pessoas deslumbradas, o que ainda acontece muito. O interesse delas é aparecer nas revistas ou ter um contrato com uma determinada marca

Falando sobre a nova geração chegou a dizer numa entrevista que não tinha paciência para 'estrelitas'. Quem são essas pessoas?

Houve uma altura em que havia uma data de pessoas deslumbradas, o que ainda acontece muito. O interesse delas é aparecer nas revistas ou ter um contrato com uma determinada marca. É um contacto mediático, que acho que tem de existir, mas [que evidencia] um lado perfeitamente fútil, sem a menor preocupação do que se está a fazer, sem procurar por uma essência, ou seja, sem ir ao interior das coisas. É como se isto fosse um meio para atingir uma fama que é apenas efémera, não ligando ao outro lado. Havia pessoas que era como se fossem para um reality show.

É o tratarem os outros de cima para baixo, que é uma coisa que eu não suporto mesmo

Ainda existiam aquelas que em meia dúzia de meses tinham assim uma transformação muito grande em arrogância. Eu dou um exemplo concreto. Temos uns guarda-roupas e à semelhança daquilo que faço em casa penduro a minha roupa. De repente ao ver roupas pelo chão, tudo espalhado, pergunto às pessoas: ‘Mas em tua casa também fazes isto?’. Depois é o tratarem os outros de cima para baixo, que é uma coisa que eu não suporto mesmo. Tenho o cuidado de dizer um obrigado, um se faz favor.

Vão ali a Badajoz e já ninguém os conhece, mas acham que estiveram na cerimónia dos Óscares

E isto não é exclusivo de pessoas mais novas, porque também há umas mais velhas que já tinham idade para ter juízo. Temos de pôr as coisas no seu lugar, ou seja: eles vão ali a Badajoz e já ninguém os conhece, mas acham que estiveram na cerimónia dos Óscares.

Mas porque é que estes comportamentos ainda persistem na geração mais nova, sobretudo sabendo que tem acesso a mais informação e ao lado menos 'glamouroso' da profissão?

Esta nova geração que está mesmo a aparecer já vem formatada no sentido correto. Há alguns que já têm esse lado com essa inteligência e esperteza, mas creio que essas pessoas vão acabar por ficar isoladas.

De repente vão à rua e conhecem-nas… devem-se sentir como o Leonardo DiCaprio na ponta do navio

Penso que isso aconteceu porque pessoas sem grande formação cultural, pessoal e intelectual de repente vão à rua e conhecem-nas… devem-se sentir como o Leonardo DiCaprio na ponta do navio. Mas isso passa. E vemos pessoas que ontem eram muito conhecidas e que hoje desapareceram. Há aqui um lado 'fast food'.

O Tozé [Martinho] foi esquecido como ator e autor

E depois há o lado mais ingrato da profissão. Por exemplo, com a morte de Tozé Martinho, chegou-se a referir que ele sofria por ter sido esquecido...

O Tozé foi esquecido como ator e autor. Fiquei com curiosidade de ver algumas reações, porque sei o que ele passou em primeira mão pelo filho, que me contou a angústia e o sofrimento dele nos últimos anos por se sentir completamente posto de parte.

Vejo atores e atrizes, não só mais velhos como mais novos, postos de parte, porque se calhar não se expõem tanto nas redes sociais

Isso é uma coisa que me faz muita confusão. Vejo atores e atrizes, não só mais velhos como mais novos, postos de parte, porque se calhar não se expõem tanto nas redes sociais ou não são tão apelativos do ponto de vista físico. Há muito talento que é esquecido neste país.

É engraçado ver que se passou aqui por uma altura nas produções - que é uma coisa que me irrita profundamente e atrevo-me a dizer que é algo entre o reacionário e a estupidez natural - que é: aos 40 anos estamos velhos. Então as pessoas que se viam nos elencos tinham um ar saudável, eram todos bonitos e a sociedade, felizmente, não é assim. Ainda bem que somos diferentes. Acho que quem assiste quer ver a diferenciação que existe entre nós.

O António chegou a sentir esse peso da idade, até porque há uns anos eram considerado um galã…

Nunca me considerei mas puseram-me o rótulo, também por causa da minha vida pessoal. Felizmente não sou das pessoas que se queixam da falta de trabalho, embora já tenha passado por períodos [em que estive] desempregado. Claro que agora os papéis que faço já não são os mesmos. Há uns atores, por exemplo, que só gostam de fazer o protagonista, mas porque ainda não descobriram que é o pior papel.

Porquê?

Porque é um papel unidimensional. Normalmente é o bonzinho, é o herói, é um chato de galochas autêntico. O que é giro é o anti-protagonista. Há atores, por exemplo, que não gostam de fazer de mau por causa da imagem cá fora, devem ter medo que as pessoas os confundam. Gosto muito mais deste papel que estou a fazer na Nazaré, que tem ali uns desvios comportamentais, do que propriamente do galã.

Já tive papéis em que fiz a novela contrariado, mas felizmente não foram muitos

Mas isso para um ator não é complicado? Não há aquele dilema entre o ter de trabalhar e o ter de aceitar uma personagem má…

Uma pessoa tem de se tentar adaptar, e eu já o fiz. Já tive papéis em que fiz a novela contrariado, mas felizmente não foram muitos. É, dentro das circunstâncias, tentar mudá-lo.

Então foi por isso que rescindiu o seu contrato com a TVI?

Rescindi o meu contrato com a TVI porque senti que já estava ali um pouco formatado naquele tipo de papéis e que não estava a ter desafios. Estava a cristalizar - e isto é culpa minha - de estar sempre a trabalhar com as mesmas pessoas e a fazer as coisas da mesma forma. Neste momento, por exemplo, tanto trabalho com a RTP, como com a SIC, como com a TVI e até com a CMTV. Acho que isso permite uma riqueza diferente como ator e enquanto pessoa.

Já cheguei estar sem receber seis ou sete meses

E isso não assusta, uma vez que a profissão de ator é tão inconstante?

Decidi arriscar, mas nunca houve uma altura em que me tivesse arrependido. Ainda assim, é passar de uma situação em que a pessoa podia estar meses e meses parado e a receber quantias boas, para uma em que… já cheguei a estar sem receber seis ou sete meses. Isso aguça um bocadinho o engenho. Não tenho um carro topo de gama, tenho um que me dá para andar. Dá para viver e para fazer uma extravagância ou outra.

E nos longos períodos em que se está parado não há um plano B?

Ando com essa ideia [de abrir um negócio]. A idade trouxe-me independência, não financeira, mas no sentido de que já não faço tantos fretes ou engulo tantos sapos. Gostava que fosse uma coisa realmente minha, ligada ao ramo da gastronomia.

Quando diz que chega a uma certa idade em que já não engole tudo. No ano passado perdeu a sua mãe, acha que isso moldou o seu caráter nesse sentido?

Sim, porque a pessoa vai colocando o que é importante nos seus lugares.

A sua mãe era a sua maior fã?

Ui, completamente! Via os trabalhos todos. Depois ligava-me sobre uma novela por causa de cenas de pancadaria ou mortes, preocupada com o que me tinha acontecido. E eu já nem sabia muitas vezes do que ela estava a falar. Fazia os meus recortes todos de revistas. Se estivesse a fazer teatro ia lá 10 vezes. Tinha muito orgulho, porque comecei muito cedo no teatro.

Com que idade começou?

Comecei aos 16 anos e aos 18 já tinha a Carteira Profissional de Ator, com o número 255. Ela e o meu pai acompanharam-me desde essa altura.

Sempre houve este gosto especial pelo teatro ou surgiu por acaso?

Na altura, ser ator não se pensava como hoje. Chumbei no nono ano por faltas.

Teatro posso dizer que já paguei literalmente para fazer

Mas era rebelde?

Não me apetecia, mas ia à escola e andava entretido cá fora com outras coisas. Acho que há alturas da vida em que podemos errar e fazer asneiras, com limites, claro. Então puseram-me a disciplina de teatro, que não consegui mudar - e ainda bem - e apaixonei-me logo. Nesse ano tirei um curso de teatro e expressão dramática e desde aí já segui. Estagiei, varri cenas, fui vender bilhetes até ficar como ator da companhia onde estive sete anos. Teatro posso dizer que já paguei literalmente para fazer.

E passar desse mundo 'místico' do teatro para um outro em que começa a ser reconhecido, não foi estranho?

Sim, porque isto passa aqui por vários graus. Há aquele em que acham que conhecem a nossa cara, depois há a altura em que identificam que somos da televisão, depois há uma coisa engraçada com trabalhos dos quais eu já nem me lembro e vêm-me falar deles. Às vezes dos ‘Olhos de Água’ ou do ‘Anjo Selvagem’. Mas eu gosto de fazer televisão.

O Luís [Borges] tomou uma atitude de grande senhor

Um dos casos mediáticos em que acabou por estar envolvido foi em relação à morte de Eduardo Beauté. Na altura chegou a dizer que ficaria com os filhos do Eduardo, caso fosse necessário. Estava preparado para tal responsabilidade?

Teria de estar. Lembro-me que uma vez ele ligou-me e disse-me: 'Tenho uma coisa muito especial para te pedir. Se algum dia me acontecer alguma coisa, és uma pessoa em que confio' e eu fiquei sem palavras, super orgulhoso. Essas palavras, obviamente, vieram à cabeça quando isso aconteceu. Mas o Luís [Borges] tomou uma atitude de grande senhor, felizmente, porque caso contrário não me sentiria bem comigo, nem com a memória dele. O Eduardo foi das melhores pessoas que eu conheci na vida, um ser humano muito bem formado, uma pessoa com quem pude contar sempre, que me chamou sempre para os momentos importantes da vida dele.

É pai de dois filhos… que idade têm eles agora?

Um tem 18, que o tempo passa a correr, e o outro 15. Para já, são bons alunos, não há razão de queixa, nunca tive de levantar a voz. Estão a tornar-se dois companheiros e amigos, na situação da minha mãe deram-me um apoio extraordinário.

Tenho orgulho de que a minha carreira tenha sido construída a pulso, e não através de camas, telefonemas

Se tivesse mais ou menos a idade dos seus filhos, o que é que diria a si mesmo, sabendo o que sabe hoje?

Acho que não diria muita coisa. Tenho orgulho na carreira que construí, claro que com ajudas, e tenho orgulho que a minha carreira tenha sido construída a pulso, e não através de camas, telefonemas. Isso traz-me alguma paz de espírito. Diria faz mais teatro.

Qual seria o seu projeto de sonho?

Agora ando muito com a cena de viajar, que ainda não tive a oportunidade de fazer. A nível profissional, quero fazer mais teatro, já tive uma experiência internacional numa série para a Netflix, mas gostava de fazer mais trabalhos lá fora.

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