O tema da sexualidade continua a ser tratado superficialmente em casa, nas escolas e na sociedade em geral. "Existe muito preconceito ainda", diz a psicóloga clínica, sexóloga e doutoranda em saúde infantil. Vânia Beliz fala com conhecimento de causa devido ao trabalho que fez, desde 2008, para a Direção-Geral da Educação no Programa de Apoio à Promoção e Educação para a Saúde (PAPES) e que a levou a conviver de perto com muitas crianças.
Neste âmbito, a especialista deu palestras nas escolas sobre os afetos e a sexualidade, uma experiência que lhe tem permitido "perceber o que as crianças, os pais e os educadores sabem". Embora as orientações do Ministério da Educação sejam bastante abrangentes nas questões que deveriam ser abordadas, Vânia Beliz descobriu que da teoria à prática vai uma grande distância. "Tenho pena que se dediquem poucas horas a trabalhar esses temas nas escolas", critica.
"Ainda há muito desconhecimento e isso coloca as crianças e os jovens em risco", frisa a sexóloga. O contexto também não é dos mais fáceis. Nas últimas décadas, têm vindo a ser quebrados tabus em relação ao sexo, graças ao aparecimento de cada vez mais vozes especializadas, psicólogos, médicos ginecologistas, psiquiatras e sexólogos, que têm tentado normalizar o tema e uniformizar conceitos e ideias junto do público português, através da publicação de artigos e livros e da participação em programas televisivos informativos.
Contudo, o tema da sexualidade infantil ainda não conseguiu a atenção que merece, porque, mesmo hoje, apesar de uma maior abertura, divide opiniões e gera controvérsia. É como se a sociedade o tivesse guardado num quarto, encostado a porta e colocado um sinal de proibição de passagem. Quem se arriscar a entrar terá de lidar com as consequências sozinho, pois os outros lavaram daí as mãos. "Tem a ver com as nossas raízes cristãs", comenta Vânia Beliz.
O panorama frustrante que condiciona a evolução
Mesmo havendo vontade, muitas vezes, pais e educadores não sabem como abordar o assunto nas suas várias vertentes nem esclarecer as questões das crianças e dos jovens de forma consistente. "Preocupa-me muito o facto de não haver formação nesta área para os professores", alerta a sexóloga. O problema não é de agora. Tem décadas, a julgar pelos progenitores das crianças e jovens em idade escolar. "Continuo a ver pais muito pouco informados", diz.
"Eles preocupam-se com o abuso e a violência sexuais, mas ainda não valorizam a importância da educação sexual", realça. Nem os profissionais de saúde, na opinião da especialista, têm correspondido à altura. "O acesso ao planeamento familiar não é fácil, por vezes, demora seis meses ou mais para conseguir uma consulta", avisa. Pior do que isso, em alguns centros de saúde dizerem às raparigas que "a consulta é só depois da primeira vez", condena.
"Se a ideia é prevenir o aumento da prevalência das doenças sexualmente transmissíveis, este certamente não será o caminho", contesta a psicóloga. A algumas adolescentes que Vânia Beliz acompanha disseram mesmo "que ainda não tinham idade para isso [fazer sexo]", aponta especialista. É fundamental e prioritário alterar a mentalidade e a forma de atuar no que diz respeito à sexualidade. Isso só se conseguirá começando com crianças de tenra idade.
"A partir dos dois anos, começam a falar e a questionar e os pais não devem deixar as respostas para outro dia", defende. Porquê tão cedo? Mais tarde, a personalidade já está mais vincada e pode ser complicado mudar crenças e maneiras de estar. "Uma educadora de infância disse-me que, no outro dia, um menino com quatro anos entrou na sala de aula, sentou-se e disse para uma coleguinha, a quem chamou de mulher, para lhe ir buscar-me uma cerveja", diz.
Sexualidade é responsabilidade
As questões de género também deveriam ser (mais) abordadas nas aulas de educação sexual, uma vez que as crianças são um reflexo dos pais e da família e eles nem sempre dão os melhores exemplos, o que nem sempre sucede. "Verificamos que continua a haver muita desigualdade nos papéis sociais do homem e da mulher. Não se deve educar as crianças de forma a pensarem que as meninas é que se ocupam das tarefas domésticas", frisa a especialista.
Isto repercute-se no bem-estar das crianças quando atingem a adolescência e entram na vida adulta. "Ainda haá muitos homens que continuam a não querer usar preservativo", critica Vânia Beliz. Para a sexóloga, esse comportamento de risco reflete um problema maior. "Se eles não querem proteger as parceiras de infeções [como o VIH, o vírus do papiloma humano (HPV), a clamídia, a gonorreia, a hepatite B, a sífilis, o herpes genital e a tricomoníase], alguma coisa não está bem". Quando isso se alia ao esquecimento das mulheres de tomar o contracetivo oral, abre-se caminho a gravidezes indesejadas.
"É importante que os homens acompanhem o processo da contraceção. Eles não fazem ideia do que isso implica", alerta a psicóloga clínica, sexóloga e doutoranda em saúde infantil. É necessário haver corresponsabilidade", incentiva. A sexualidade não se limita à biologia reprodutiva, aos genitais e às doenças sexualmente transmissíveis que se tenta prevenir através dos vários métodos contracetivos. "É a relação consigo próprio e com o outro", sublinha.
Do ponto de vista de Vânia Beliz, a educação sexual "capacita para uma série de competências pessoais, que não são valorizadas", refere. A capacidade de interpretar as próprias emoções e as das outras pessoas, de identificar sentimentos e de compreender que há diferentes formas de envolvimento afetivo são algumas delas. "No pré-escolar, ensinamos as crianças o que é o amor e que o que existe entre os pais é diferente daquele que existe entre pais e filhos", diz.
"Na puberdade, explicamos o que é a atração, o que é enamoramento. Na adolescência, é muito importante ajudar os jovens a interpretar o que estão a sentir, porque é a altura das paixões assolapadas não correspondidas", detalha ainda a especialista. Todas estas questões fazem parte do processo de amadurecimento e de consentimento. Igualmente, em cada uma das fases do crescimento, o tema do consentimento é sempre trabalhado. Como? A resposta é simples!
"Nomeando, desde cedo, as diferentes partes do corpo, os cuidados que devemos ter com ele, aprendendo que há zonas privadas e que os meninos e as meninas não podem andar nus na rua", descreve. De acordo com a também sexóloga, estes tópicos, que parecem tão óbvios, "podem prevenir o abuso sexual". Quando fala com adolescentes, Vânia Beliz refere que tem "muitas perguntas de rapazes sobre como podem convencer as namoradas a fazer sexo anal". O que revela que, apesar de haver mais informação, as raparigas jovens são pressionadas a fazerem escolhas com as quais podem não se sentir confortáveis.
"Se a namorada disser que não, têm que respeitar", responde invariavelmente a sexóloga. E será o futuro mais (des)informado?Nos dias de hoje, a internet representa uma concorrência desleal, para pais e educadores. Por um lado, fornece muita informação que as crianças e jovens podem não conseguir compreender sozinhos. Por outro lado, também é uma fonte de enorme desinformação. A título de exemplo, a sexóloga refere o acesso fácil à pornografia.
"Esse acesso provoca dúvidas em relação ao desempenho, ao tamanho do pénis, à duração da relação sexual, porque os mais novos não percebem que o que estão a ver não é verdadeiro", alerta Vânia Beliz. Ainda assim, muitos adultos demitem-se de abordar alguns temas da sexualidade com os seus filhos ou alunos porque "acham que os miúdos aprendem na internet", critica ainda. Será negligência ou desconhecimento? Facilitismo é, seguramente.
Independentemente da resposta, esse comportamento "perpetua mitos e tabus", diz. "Tem que haver um esforço conjunto, por parte dos profissionais do ensino e de saúde, que devem trabalhar com as famílias, para melhorar a educação e a saúde sexual dos jovens e dos adultos do nosso país", refere Vânia Beliz. Resta-nos um longo caminho a trilhar, enquanto sociedade, até conseguirmos atingir um nível geral de conhecimento mais satisfatório sobre a sexualidade.
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