Se no meio é que está a virtude, ela sobe e desce conforme a ocasião e, sobretudo, a sua vontade. Ao assistir à apresentação da primeira coleção Cruise da Louis Vuitton, em maio de 2014, Nicole Phelps, a diretora executiva do célebre site Style.com, abriu uma nova entrada no dicionário da moda. «A impressão geral foi a de um designer que não se estava a conter. Houve um novo ecletismo insinuante que não sacrificou o conforto», sentenciou. Mais do que elogiar o diretor criativo da maison, Nicolas Guesquière, o que a crítica de moda realmente fez foi dar um nome à forma como nos vestimos agora.

«A tendência mais importante neste momento é o ecletismo. O new eclecticism é o novo termo da moda. Porquê? Porque anda tudo misturadíssimo!», conclui Pedro Marques Mendes, representante em Portugal da agência de previsão de tendências Promostyl. Se, há uma década, nos poderíamos perguntar qual das Spice Girls tinha mais a ver connosco, hoje queremos ser todas ao mesmo tempo e vestir a pele da Scary, da Sporty, da Posh, da Baby e da Ginger Spice conforme a nossa disposição.

«Antes, quando havia uma tendência, era forte e levada a fundo. As pessoas (atualmente) são tão mais complexas, o acesso à informação é tal, que se sente com a maior das naturalidades tanto a vontade de usar uns jeans como um vestido comprido cheio de lantejoulas. E, portanto, aquele estilo que às vezes caracterizava uma pessoa, que tinha uma determinada maneira de vestir, é hoje difícil de definir», explica. Visualize Anna Dello Russo e estará muito perto.

De manhã, a editora da Vogue no Japão está vestida de Dolce & Gabbana da cabeça aos pés, à tarde está a brincar às personagens Disney e, ao fim do dia, interpreta os loucos anos da década de 1920 com uma cereja no topo da cabeça. Excêntrica? Não, eclética! Como desdramatiza Marques Mendes, «as pessoas misturam coisas diferentes de forma completamente livre conforme o que lhes apetece e o momento». E, remata, «essa é que é a tendência!», sublinhando a expressão.

Estes ténis foram feitos para impressionar

Comecemos pelos ténis. Quando, no início do ano, as modelos Chanel desfilaram pela passerelle em vestidos alta-costura com sapatilhas nos pés, fizeram muitos queixos cair. O sportswear havia entrado na zona mais exclusiva e luxuosa da moda pela porta principal. Mas não foi apenas o trabalho de Karl Lagerfeld a suscitar títulos nas melhores revistas de moda do mundo, que anunciavam o regresso em força dos ténis. Raf Simons incrustou cristais e lantejoulas coloridas numa base aparentemente simples de neopreno com sola de borracha para criar os ténis Dior.

Ah e não esqueçamos o clássico lacinho. Mas ainda que a estrutura base seja a dos clássicos (e aborrecidos) ténis para água, o modelo Dior é feito à mão em Paris por artesãos altamente qualificados que aliam ao saber fazer toda a tecnologia de ponta que o dinheiro pode pagar. Em Itália, Miuccia Prada aplicou o mesmo tipo de trabalho de pedraria a sandálias com solas desportivas de borracha, que combinou com perneiras a puxar para os anos de 1980. Será que as próprias peças também estão mais complexas e descontextualizadas?

«A Dior e a Chanel provavelmente perceberam que seria uma mais-valia introduzirem os ténis num mercado que ia comprar topos de gama a outras marcas. Então, porque não introduzi-los nas próprias coleções, com o seu glamour de assinatura, com novos materiais, com inovação, e ter ténis como produto? As marcas precisam de acompanhar as necessidades do público», afirma a criadora de moda Alexandra Moura. Para desenvolver a sua coleção primavera/ verão 2015, a estilista pegou na ideia de alguém que se vira do avesso e que aí se encontra para levar gangas desconstruídas, brilhos coloridos e ar de festa.

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 Maior liberdade para cruzar referências e inspirações

Uma inesperada viragem criativa depois de um Inverno em que as bruxas de Hadramaut, com as suas várias camadas de preto, estiveram em destaque. Ainda que, como explica, o seu processo de criação tenha sido sempre alimentado por conceitos próprios, Alexandra Moura diz que se sente cada vez mais liberdade para cruzar referências e inspirações. «É possível conquistar alguém através de estéticas muito diferentes porque as pessoas estão muito mais libertas para misturar», refere a criadora.

«Antes, havia quase o estereótipo de um determinado tipo de imagem», recorda. «Se as pessoas não fossem assim, já não pertenciam a nada. Neste momento, é uma amálgama gigante de misturas em que se criam imagens fantásticas», conclui. No vazio de regras que representa o lado mais negro da liberdade, o que se perdeu, segundo a designer, foi o perfil do público-alvo. «O nosso consumidor pode ser qualquer pessoa», afirma, sentada no primeiro andar da Alexandra Moura MA+S, a sua loja no Príncipe Real, em Lisboa.

Uma sensação que, Daniela Pais, da agência de previsão de tendências Trend Union, confirma. «A moda é cada vez mais uma mistura e os consumidores são muito diversificados nas suas escolhas. Daí que não seja possível agrupá-los como dantes», afirma. Sendo que «95% dos clientes são estrangeiros», é difícil para a criadora acompanhar o styling que fazem posteriormente com as peças Alexandra Moura. Ainda assim, através de figuras públicas que usam peças suas, como Kalaf Ângelo, dos Buraca Som Sistema, a designer vai tendo agradáveis surpresas ao ver as suas criações reinterpretadas.

E, para facilitar a tarefa ao estimado cliente, a designer faz da versatilidade uma característica intrínseca do seu trabalho. «Uma coisa de que sempre gostei e que deposito nas peças é a intemporalidade. Ponho-me no lugar do consumidor e acho que ia adorar que aquela peça me pudesse ser útil e fazer sentir bem em diversas ocasiões, consoante aquilo com que depois eu a misturasse e consoante o momento para onde eu fosse. Essa versatilidade da própria peça é uma mais-valia para quem a usa», defende. Paralelamente à utilidade que tem para o consumidor, a versatilidade apresenta-se também como uma arma para as marcas se protegerem da crise económica.

Um impressionante arrepio gelado

Na perspetiva de Daniela Pais, quando pesos-pesados da indústria, como a Dior ou a Balenciaga, se lançam na criação de ténis, «estão a adicionar conforto, bem-estar e juventude ao status da marca». Valores que se afiguram particularmente importante depois de, em julho de 2014, terem sido divulgados os fracos resultados financeiros do grupo LVMH. O proprietário da Louis Vuitton e da Céline, entre muitas outras marcas de referência, viu as suas ações cair mais de 7% num dia, lançando aquilo que os analistas financeiros descreveram como «um arrepio gelado no mercado do luxo».

Com a contração generalizada do consumo e a emergência de novos mercados como a Índia e a Rússia, as marcas têm de recorrer a novas armas de sedução para atrair uma clientela mais jovem e cosmopolita. Um desafio aliciante, mas simultaneamente arriscado, que abre portas para caminhos ainda inexplorados e nem sempre compreendidos. «A moda reflete a sociedade em que vivemos, especialmente nos dias que correm. E muda muito depressa», escreve Sofia K num fórum sobre moda e beleza do Yahoo!

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Um novo luxo?

Se outros importantes nomes da moda, como a Valentino, por exemplo, de repente incorporaram ténis nas suas colecções para o outono/inverno 2014/15, a Chanel continua a desbravar terreno no universo do novo ecletismo. A maison lançou uma edição limitada de mochilas vendidas em exclusivo na loja parisiense Colette e, na sua coleção de alta-costura para a primavera/verão 2015, trouxe as sandálias rasas que se enlaçam pela perna para a ribalta. Mostrou assim que o que realmente tem para oferecer às suas clientes não é sportswear de luxo mas, sim, conforto.

«De maneira geral, em tempos de dificuldade económica, as pessoas tendem a dar prioridade à satisfação das suas necessidades básicas. Procuram valores seguros, formas e materiais intemporais, cores discretas, camuflagem e protecção», explica Daniela Pais. Mas será que o conforto está no topo da lista de prioridades dos clientes ricos da Avenue Montaigne, em Paris? Segundo Li Edelkoort, fundadora da Trend Union, a resposta é sim.

«O conceito de luxo mudou drasticamente nos últimos anos e agora engloba questões como uma alimentação saudável, cuidar de si e sentir-se bem», refere. Ao site Always Inspiring More, a holandesa que a revista Time considerou uma das 25 especialistas em moda mais influentes do nosso tempo, sublinhou ainda a preponderância que o bem-estar vai assumir nas nossas vidas.  «Neste período de ataques terroristas, desastres naturais e crise económica, mais do que nunca as pessoas desejam não apenas segurança, mas um sentimento de conforto, calma equilíbrio», considera.

O conforto como nova prioridade

Está assim aberto o caminho aos tecidos confortáveis, às formas fluidas e ao calçado prático para as ocasiões mais formais das nossas vidas. Peça sobre peça, a sobreposição encarrega-se de aliar um sentimento de proteção ao de conforto. Está traçado o perfil que, segundo Alexandra Moura, representará a nossa época na história da moda. «Uma silhueta com volumes, descolada do corpo, com ângulos devido à sobreposição de peças com diferentes larguras», sublinha.

«Confortável, para que a pessoa se consiga mexer lá dentro, mas que não deixe de ter presença e personalidade», acrescenta ainda. Mas se, tal como Pedro Marques Mendes, da agência de previsão de tendências Promostyl, diferencia, «há tendências mais ligadas ao lado emocional, que promovem o encantamento, e outras mais ligadas ao racional, como o sportswear, por exemplo, que nos trazem o conforto», então, o que vai no coração do fashionista contemporâneo? Alexandra Moura encontra a resposta numa canção.

«Estou além», de António Variações. Cantarolando «Vou continuar a procurar/O meu mundo/O meu lugar/Porque até aqui eu só/Estou bem aonde eu não estou/ Porque eu só quero ir/Aonde eu não vou/Porque eu só estou bem/ Aonde eu não estou…», a designer caracteriza o consumidor de 2014 como o eterno insatisfeito.  «Para muitas de uma forma já consciente, para outras de uma forma ainda inconsciente, mas o facto é que as pessoas consomem, consomem, consomem e nunca estão satisfeitas na verdade», diz.

«Nunca é aquilo, aquilo só satisfaz no momento, não é aquilo que preenche. Por isso, há uma busca constante do que é que me faz sentir bem, do que é que me faz sentir feliz, do que é que eu preciso», realça ainda. Pode bem ser que num mundo onde já não se casa para a vida, ninguém permanece demasiado tempo no mesmo local de trabalho e todas as distâncias se encurtaram, o verdadeiro luxo seja o poder não decidir.

Texto: Ana Brasil com Luis Batista Gonçalves (edição online)