Beatrice Mautino, italiana, jornalista científica, tem no currículo profissional o trabalho como investigadora no campo das neurociências na Universidade de Turim. Certo dia, no corredor de um supermercado, Beatrice encontrou inspiração para escrever o seu mais recente livro, “As Mentiras da Cosmética”. O mote para a investigadora deslindar como nos manieta a publicidade e o marketing da indústria da cosmética deu-se com um simples sabão para as mãos. Diferenciava-o dos congéneres das prateleiras o facto de se afirmar como um “não sabão”.
Beatrice perguntou-se, “o que é um não sabão?”. E encontrou motivo para se embrenhar nos artifícios que as empresas de cosmética usam, não hesitando em chamar-lhes “logros e truques”. Cremes para a celulite e antirrugas, champôs com parabenos, água micelar, protetores solares, depilação a cera; todos estes produtos passaram no crivo da transalpina, incluindo os ´chavões` feitos palavra-de-ordem no mundo da cosmética. Para eles, Beatrice Mautino tem um termo: “Cientifiquês”, diferente de científico.
A investigadora esmiuçou alguns dos grandes medos e ansiedades da nossa sociedade. Um deles, a Celulite. Não lhe chama doença. “Porque não o é. Trata-se de uma característica fisiológica de alguns tecidos adiposos”, explica-nos. O que não invalida que alimente um mercado milionário. Só em cremes, de acordo com a autora, significou “em 2016, 87 milhões de euros. O que não inclui despesas com massagens, equipamentos dos centros estéticos e cirurgias”. Em suma, até ao século XX não existia o termo. A Celulite existia, naturalmente, mas, como refere Beatrice, “dar um nome às coisas é uma das primeiras regras do Marketing”. O mesmo é dizer, se não é apadrinhado, não existe.
Uma conversa com a autora que nos faz perceber porque quando toca ao que aplicamos no corpo sabemos o que o marketing quer o que saibamos, ou seja, pouco e nem sempre o que nos permitiria escolher de forma consciente.
Entrevista onde não escapa o sempre polémico tema das experimentações em animais, a segurança nos produtos cosméticos e alguns dos caminhos para efetuarmos boas escolhas. Neste último ponto, há que ter em consideração que pagar mais não é sinónimo de pagar por melhor produto.
Beatrice, encontrou a inspiração para este livro num “não sabão”. Quer contar-nos brevemente esta história?
Estava num supermercado à procura de inspiração para o livro e a designação "No Soap" [“Não Sabão”] despertou-me a atenção. Perguntei-me se deve a pessoa que procura um sabonete ser atraída por um produto que tem no rótulo "não sabão". Quimicamente falando, o que é exatamente este produto?
Intrigada, comecei a ler as muitas informações que apareciam na frente e no verso da embalagem. Continha Óleo de Argão e outros ingredientes “orgânicos”; contava com muitas certificações (do “dermatologicamente testados” ao “sem crueldade”). Mas, o mais importante é o que não continha. O "Sem Sabão" revelava um grande "0%" na frente da embalagem, recordando-nos o que não continha.
Em suma, os ingredientes listados no rótulo são prejudiciais? Qual é a vantagem de um produto de limpeza "sem sabão"? Todos esses selos são realmente uma garantia de qualidade? Percebi que tinha muitas perguntas, mas não consegui encontrar nenhuma informação útil para satisfazer a minha curiosidade. O "não sabão" foi, então, um estímulo para dizer o que os rótulos não dizem.
No fundo este episódio sintetiza um dos alertas do seu livro “As Mentiras da Cosmética”. Tornámo-nos cativos do Marketing?
Provavelmente sempre fomos cativos do marketing e assim será no futuro. Somos atraídos por novos produtos, estamos sempre à procura de algo novo e o marketing satisfaz essa necessidade. Como exemplo, no livro refiro as bases para o rosto impregnadas numa ´almofada`. Na verdade, é uma esponja, como as geralmente usadas para espalhar a base, mas já está impregnada de origem.
Por trás dessas inovações, há muito trabalho e certamente muita pesquisa e desenvolvimento para poder adaptar a receita/fórmula ao novo acessório, mas o objetivo da estratégia é tornar o produto anterior imediatamente “velho”. Podemos aplicar essa estratégia a muitos novos produtos que não são novos.
Beatrice, o facto de ter formação científica ajuda-a a deslindar os rótulos e as entrelinhas dos produtos de cosmética. Sente-se, enquanto consumidora enganada?
Por vezes. Isso acontece quando percebo que um ingrediente que é anunciado como importante está presente em uma concentração muito baixa. Ou quando um produto alega ser a solução para um grande problema, como por exemplo, das rugas à celulite, e não pode ser.
No que respeita à investigação, os alegados benefícios dos produtos de cosmética estão sustentados em investigação independente?
Infelizmente não. Ao contrário de outros setores, como o farmacêutico ou alimentar, não há uma pesquisa independente real sobre a eficácia dos produtos. A maioria dos estudos é conduzida pelas empresas e é compreensível, dadas as restrições económicas e éticas que a investigação pública possui. Isso não significa que os resultados não sejam fiáveis ou que não devam ser levados em consideração, mas apresenta uma possível explicação para a falta de informações críticas sobre o assunto.
Afirmar que um produto não contém um determinado ingrediente confere uma vantagem imediata a esse produto sobre os outros. Mas essa ação alimenta o medo em relação a esse ingrediente e passado algum tempo não será suficiente.
A indústria da cosmética ganha muito com os medos e ansiedades dos consumidores?
No imediato ganha, mas perde a médio prazo. Afirmar que um produto não contém um determinado ingrediente confere uma vantagem imediata a esse produto sobre os outros. Mas essa ação alimenta o medo em relação a esse ingrediente e passado algum tempo não será suficiente. Será necessário encontrar novos culpados e o círculo começará novamente. Em consequência, as empresas ver-se-ão forçadas a mudar drasticamente as linhas de produção. É um terreno escorregadio.
Cada época tem os seus medos. No que toca aos efeitos da cosmética na saúde humana quais são os atuais?
Parabenos, silicones e parafina são entendidos como nocivos, mas também os protetores solares são acusados de serem carcinogénicos e, na generalidade, tudo o que não é percebido como “natural”. A tendência “natural” e “orgânica” está a crescer de ano para ano e é principalmente escolhida na medida em que é entendida como mais saudável e segura.
Na cosmética podemos falar no sentimento de tribo, isto é, ou estamos com o grupo, ou fora deste?
Sim, claro. No livro, cito um sociólogo italiano, Marino Niola, que descreve "tribos alimentares" como grupos nos quais uma pessoa se identifica com as escolhas alimentares. Tofu versus carne, soja versus ovos, quinoa versus trigo, cru contra cozido. Em suma, para Niola, se a comida é o pensamento dominante do nosso tempo, então a dieta deixou de ser uma medida de bem-estar para se tornar uma condição do ser.
Algo semelhante está a acontecer no mundo dos cosméticos, onde se tornou difícil encontrar um champô que seja sem sulfatos, um desodorizante que não contenha parabenos ou uma loção pós-barba isenta de álcool. Os produtos "sem" encaixam-se na vertente do "natural" que é o mais popular no mundo dos alimentos, cosméticos e medicina, onde os ingredientes "não sintéticos", "extratos de ervas" ou alimentos produzidos sem o uso de pesticidas, produtos químicos fertilizantes e conservados sem conservantes.
A celulite é uma “doença inventada”?
A descrição mais precisa da celulite apareceu no primeiro estudo científico sobre a mesma publicado há quase 40 anos, por dois médicos alemães. A celulite é uma característica fisiológica de alguns tecidos adiposos, não é uma doença. A aparência clássica da casca de laranja tem origem em dois principais fatores: O maior volume de células gordurosas nas pessoas, principalmente mulheres, que têm celulite em comparação com aquelas que não têm e as diferenças na arquitetura dos tecidos subcutâneos, na prática a estrutura baseada no colágeno que se "prende" ao tecido adiposo. Não é uma doença e não pode ser "tratada" com cosméticos. Os cosméticos só podem melhorar a aparência da pele.
Falemos de segurança nos cosméticos. Os fabricantes de cosméticos na Europa não estão obrigados a testá-los antes de os lançarem no mercado?
A Europa é o lugar mais seguro do mundo para os usuários de cosméticos. Os fabricantes têm a responsabilidade de colocar produtos seguros no mercado. Devem identificar e gerir os riscos relacionados com as substâncias que produzem e vendem na União Europeia, para demonstrarem às Agências Europeias como utilizar estas substâncias sem riscos e informar os utilizadores sobre as medidas de gestão de riscos.
A Europa aboliu a utilização de animais em experiências com cosméticos. Há uma certificação para o efeito. Confirma, no entanto, que a mesma cosmética pode incluir ingredientes testados em animais para fins não cosméticos?
Muitos ingredientes utilizados na produção de cosméticos também são utilizados noutros setores, desde alimentos até medicamentos e tintas, nos quais a legislação é diferente. Na Europa, todas as substâncias são reguladas pelo regulamento REACH, que foi adotado para melhorar a proteção da saúde humana e do meio ambiente contra os riscos das substâncias químicas. Uma vez que o REACH monitoriza os vários sectores, pode derrogar partes específicas dos regulamentos em caso de dúvidas sobre a segurança. Por exemplo, substâncias que são usadas apenas em cosméticos não podem ser testadas em animais. Se, no entanto, um deles também for usado em outros setores, como alimentos ou farmacologia, testes em animais podem ser permitidos.
As marcas fazem o trabalho de vender produtos, recorrendo às ferramentas fornecidas pelo marketing para atingir seus objetivos. Pensar que as empresas devem informar os consumidores está errado.
O consumidor está realmente a ser informado ou a ser “vítima” de mais uma parcela do negócio?
As marcas fazem o trabalho de vender produtos, recorrendo às ferramentas fornecidas pelo marketing para atingir seus objetivos. Pensar que as empresas devem informar os consumidores está errado. É o papel dos jornalistas e autores de ciência, como eu. Em Itália, antes de começar a lidar com etas questões, a informação era praticamente inexistente. Mas no ano passado, seguindo os meus primeiros passos neste mundo, muitos canais de informação nasceram, especialmente nas redes sociais, nos quais cosmetologistas e especialistas fornecem informações. Espero que o mesmo possa acontecer em Portugal.
Considera que os consumidores têm uma atitude passiva face aos efeitos perversos ou “estranhos” quando utilizam um cosmético? No fundo, o que podem enquanto consumidores fazer para alertar terceiros?
Quando encontramos um cosmético que cria uma reação estranha, costumamos deitá-lo fora, ou, no máximo, reclamar nas redes sociais. Mas devemos relatar quaisquer efeitos de saúde "estranhos" ao nosso médico, a fim de informar as autoridades de saúde, e também devemos relatar casos de publicidade enganosa a associações de consumidores e autoridades que regem as boas práticas na publicidade.
Finalmente, que conselhos daria a uma amiga ou um amigo, desorientados na aquisição de cosmética?
Sugiro duas atitudes que podem ser entendidas como opostas, mas não são. Por um lado, devemos tornar-nos mais céticos e exigir mais informações e transparência das empresas. Mas por outro lado, não devemos esquecer que os cosméticos são um prazer, por isso devem ser agradáveis e fazer-nos sentir melhor connosco.
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