Quem já lhe apanhou o aroma ainda quente, lhe tomou o peso consistente, batendo-lhe como quem se faz anunciar à porta para sentir uma percussão plena; experimentou a côdea áspera e de rumor estaladiço rasgado com as mãos, sabe que um bom pão é impagável e uma mão cheia de possibilidades à mesa e na partilha.

Quem assim reconhece e quer um pão também quer escutar e ver o laborar de Mário Rolando, um investigador, cientista, estudioso, poeta mas também filósofo e padeiro. Porque o pão é tudo isto e este homem nascido em 1969, com memórias de tenra idade algarvias, formado em direito na cidade de Coimbra, mais tarde advogado, assume-se e assemelha-se a um criador do renascimento. Almeja ao saber completo sobre o pão não por vaidade, mas por interesse em conhecer, defender e divulgar um alimento com um legado de mais de seis mil anos.

Encontramo-nos com Mário Rolando, senhor de barbas respeitosas, que prepara com afã a bancada onde vai encetar a etapa final de quatro massas que preparou em casa e que traz acondicionadas com esmero. Uma quadra de massas que irá originar outros tantos pães. “Trago-vos um pão com massa muito hidratada, um pão escuro com alguns cereais, um pão branco para quem não procura um sabor muito vincado. Quanto ao quarto pão, já lá iremos”, afirma Mário.

Na próxima hora o formador na Associação dos Cozinheiros Profissionais de Portugal, onde ensina panificação e pastelaria, preparará os seus pães. Mas acima de tudo deixa-nos uma mensagem em defesa do bom pão, do nosso pão, da sua preservação em nossas casas e fora delas, na hotelaria e restauração.

Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão
Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão créditos: Mário Rolando

Di-lo quem, em determinado momento da sua vida, e com uma carreira já consolidada no Direito da Família e Proteção de Menores, percebe que o caminho é outro. No currículo de vida há memórias pueris, como a das muitas horas ao lado da sua bisavó, no Algarve da infância, a compartilhar o milagre do fazer pão a partir dos elementos base seus constituintes, a água, a farinha, a massa mãe e o sal. E de quem via a bisavó a exercer sobre o pão, matéria-prima viva, os gestos que chegavam de outros tempos. “Antigamente rezava-se quando se fazia o isco [a massa-mãe, o fermento natural], quando se juntava o isco à massa e quando o pão ia ao forno”, conta-nos. Mário Rolando, já adulto, abandona o exercício do Direito, tira o curso na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril e faz mestrado em ciências gastronómicas. Faz-se também formador.

E estuda, sempre, continuamente, as farinhas biológicas moídas em mó de pedra, as massas-mãe selvagens, as fermentações longas e naturais, a amassadura em masseira de madeira.

Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão
Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão créditos: Mário Rolando

Onde está a autenticidade?

Um léxico arredado da maioria dos processos de produzir pão. Como também o foi o “tempo, o respeito e a autenticidade”, afirma perentório Mário, enquanto enfarinha um tabuleiro, assim como a massa que já traz preparada. “Sou padeiro, mas também sou consumidor. Quando vou a um hotel constato que o pequeno-almoço é muito variado, há pães doces e menos doces, pães escuros e claros, portugueses e franceses. Até aí está tudo bem. O que não está bem é encontrarmos variedade mas não qualidade. Temos excelentes pães de norte a sul do país. Mas onde estão eles nas mesas de pequeno-almoço dos hotéis? Se for ao Minho eu quero comer uma Regueifa, se estiver no Algarve, um pão algarvio, no Alentejo, um pão dessa região. E com qualidade. Só seremos ricos quando mantivermos a nossa especificidade. Defendo todos os bons pães, mas os que fazem a nossa identidade têm de ser protegidos”, sublinha Rolando.

Temos excelentes pães de norte a sul do país. Mas onde estão eles nas mesas de pequeno-almoço dos hotéis?

Está dado pelo tom o mote para esta sessão. Não há falas mansas quando há que esgrimir argumentos perante os pesos pesados que dominam a panificação em Portugal, as massas pré-feitas, o pão sem carácter distintivo, as farinhas insípidas e sem vida. A sociedade urge nas exigências, “temos de reencontrar o tempo”, diz-nos Mário, “recuperar matérias-primas isentas de pesticidas o que é irónico, pois não falado em detrimento, por exemplo, do glúten. Há que escusar os aditivos, desconfiar de todos os pães com mais de quatro ingredientes na composição, cultivar as fermentações longas [no caso de Mário Rolando podem durar 25 horas ou mais], recuperar as massas-mãe [cultura biológica] que podem durar uma vida”.

E, naturalmente, em todo este processo, tem um papel importante o sector da hotelaria e restauração. “Os chefes de cozinha têm de contratar padeiros. É meritório levarem o pão à mesa, mas devem produzi-lo”.

Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão
Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão créditos: Mário Rolando

O mestre do pão

Mário fala enquanto com mãos sabedoras última o tabuleiro com os primeiros pães que descansarão alguns minutos antes de conhecerem o forno. Este pão que vos trago é da região de Mafra. Tem mais de 95% de água. Um pão que devia estar em todos os restaurantes. Apresenta-nos uma côdea muito fina e um miolo suave. Este foi amassado há 24 horas”.

“Se me perguntarem se há pães para diferentes momentos do dia, a resposta pode ser um sim. Mas um mesmo pão, vamos supor com uma massa mais ácida, finamente fatiado ou com fatias mais pujantes pode servir em alturas diversas. Fatias mais finas ao pequeno-almoço, mas robustas nas refeições principais”, considera Rolando que inclui pão em todas as suas refeições.

“Ao jantar eu e a minha mulher comemos apenas pão com um enchido, ou queijo, ou outro produto nacional e reinventamos todos os dias o deleite”. Não será difícil se considerarmos as infinitas combinações a partir de singelos ingredientes base. Por exemplo, o sabor do pão advém, entre outros fatores, do cereal que é usado, trigo, ou centeio ou milho.

Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão
Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão créditos: Mário Rolando

Chegado a este momento, o do cereal, Mário introduz-nos uma outra abordagem, a moagem. Isto enquanto prepara a segunda leva de pães, de massa mais escura, com farinha Tipo 80, assim como outras farinhas escuras.

Atualmente temos quatro ou cinco moagens que dominam o mercado e fornecem a maioria das padarias. O que quero dizer é que a moagem tem de ser de uma forma integra. Atenção, não estou a falar de pão integral, mas sim de integridade.

“A moagem não é um pormenor. O moleiro foi sempre uma peça muito importante na forma como se trata a matéria-prima. Atualmente temos quatro ou cinco moagens que dominam o mercado e fornecem a maioria das padarias. O que quero dizer é que a moagem tem de ser de uma forma íntegra. Atenção, não estou a falar de pão integral, mas sim de integridade. Se tenho cem quilos de grão a entrar para moagem, devem sair cem quilos de farinha. Não podemos excluir da farinha a casca, o tecido e o gérmen, constituintes do bago de cereal. Se tenho uma moagem que aquece o cereal e com isso perco os nutrientes, não estou a defender o produto”, alerta Mário Rolando.

O milagre da química

Ainda no que respeita à defesa da nossa dama, acrescenta Mário: “Acho mal que se adote o produto que nos chega de fora como, por exemplo, panetones, quando basta ler um bom título escrito por um autor de gastronomia nacional para perceber que temos congéneres portugueses com os mesmos ingredientes e muito superiores. Não se divulga, por exemplo, o bolo lêvedo. `Porque raio` os chefes querem fazer panetones?”. Fica a pergunta de Rolando enquanto nos apresenta uma massa doce, de Páscoa. “Em vez de incorporarmos a manteiga, vamos usar o azeite”.

Acho mal que se adote o produto que nos chega de fora como, por exemplo, panetones, quando basta ler um bom título escrito por um autor de gastronomia nacional para perceber que temos congéneres portugueses com os mesmos ingredientes e muito superiores

Hora da cozedura, opera novamente a química da confeção dos alimentos, agora dentro do forno. “Não entendo porque se escolhe um pão mal cozido, pálido, quando a reação de Maillard [reação química que dá o aspeto dourado aos alimentos] é que nos vai dar cor e sabor ao alimento. Temos de fazer provas de pão, tal como já temos as provas de vinhos, de azeites. Um pão bem feito torna-se um pré-biótico [fibras que chegam ao intestino e estimulam a proliferação de bactérias benéficas”.

Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão
Eis Mário Rolando, o senhor do pão, do nosso bom e intemporal pão créditos: Mário Rolando