É sem dúvida um problema major de saúde pública e uma das causas mais representativas de infeção crónica do fígado. A abordagem da hepatite C tem sofrido mudanças profundas com consequentes resultados entusiastas. Isto deveu-se a um melhor conhecimento da patofisiologia da doença, ao desenvolvimento de procedimentos diagnósticos acessíveis e fiáveis e à melhoria do tratamento e prevenção. No entanto, o peso da infeção pelo vírus da hepatite C em Portugal permanece significativamente elevado. Embora não existam estatísticas oficiais, a prevalência é estimada em 0,5%, podendo chegar a 2% em grupos de risco, sobretudo os utilizadores de drogas endovenosas.
A história natural da infeção pela hepatite C é muito variável condicionando diferentes graus de lesão do fígado. Das principais hepatites víricas, a infeção aguda pelo vírus da hepatite C é a que tem maior probabilidade de evoluir para cronicidade, o que se verifica em até 85% dos casos. Cerca de 15-50% dos casos de infeção crónica desenvolvem cirrose, com um risco de 1-5%/ano de desenvolver carcinoma hepatocelular. Este risco é maior na infeção pelo vírus da hepatite C em relação a outras hepatites crónicas víricas e aumenta com os anos de cirrose e infeção concomitante do fígado pelo vírus da hepatite B.
As principais causas de mortalidade estão relacionadas com as complicações da cirrose, incluindo o desenvolvimento do carcinoma hepatocelular. As principais vias de transmissão para contrair a infeção pelo vírus da hepatite C são a via endovenosa, sobretudo os utilizadores de drogas endovenosas e os profissionais de saúde, a via sexual e, em menor proporção a transmissão vertical (risco de transmissão de uma mãe infetada para o recém-nascido <5%). Atualmente, o risco transfusional é muito baixo (<1/100 000 transfusões). A maioria dos indivíduos com infeção pelo vírus da hepatite C é assintomática ou apresenta sintomas frustes. A infeção aguda pode manifestar-se por coloração amarela da pele e mucosas (icterícia), que poderá ser intermitente, e/ou elevação das enzimas do fígado (alanina aminotransferase, ALT), na ausência de história de doença crónica do fígado ou outras causas de hepatite aguda, sobretudo se uma fonte de transmissão for possível de identificar. A infeção crónica usualmente manifesta-se numa fase avançada através das complicações da cirrose ou desenvolvimento do carcinoma hepatocelular, ou ainda, sob a forma de manifestações extra-hepáticas, tais como a inflamação generalizada dos vasos (vasculite), a doença renal ou o linfoma.
A principal revolução no tratamento da infeção pelo vírus da hepatite C foi a introdução dos antivíricos de ação direta em 2011, que atualmente são pangenotípicos e, por isso, eficazes em quase todas as formas virais. O objetivo primário consiste na cura da infeção, atualmente possível em cerca de 97% das situações, com formulações orais com um perfil de segurança e tolerabilidade excelentes. O período de tratamento também tem vindo a ser significativamente encurtado, sendo atualmente de 8 a 12 semanas. Também a evicção das complicações associadas à infeção crónica, e quando estas se desenvolvem, o tratamento das complicações da cirrose e redução da mortalidade são significativamente minimizados, embora não eliminados com a cura da infeção.
A prevenção do desenvolvimento da infeção ou da reinfeção pelo vírus da hepatite C é igualmente crucial. Uma das metas da Organização Mundial da Saúde para 2030 visa a redução de 90% de novas infeções pelo vírus da hepatite C e a redução da mortalidade de 65%. Para que tal seja possível, uma das medidas preventivas mais importante envolve ações junto dos grupos de risco, incluindo utilizadores de drogas endovenosas, prisioneiros, sem abrigos, imigrantes, homossexuais, indivíduos com infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH). A promoção do uso seguro de drogas endovenosas deve ser incentivada, uma vez que o abandono desta prática é extremamente difícil. É igualmente importante evitar fatores de risco adicionais de lesão do fígado que aumentem a suscetibilidade e a precocidade no desenvolvimento da cirrose e suas complicações, tais como o consumo de bebidas alcoólicas, o excesso de peso/obesidade, a idade avançada, a coinfecção pelo VIH ou outros vírus hepatotrópicos e a hipertensão arterial, a diabetes mellitus ou a dislipidemia não devidamente controladas.
Tendo em conta a prevalência estimada da hepatite C em Portugal, o rastreio da infeção deve ser realizado em todos os adultos com idade superior a 18 anos, pelo menos uma vez na vida. Este também está devidamente sistematizado em populações vulneráveis, independentemente da idade, incluindo todas as grávidas, a cada gravidez, infeção pelo VIH, utilizadores de drogas endovenosas, indivíduos sob hemodiálise, ALT persistentemente elevada, indivíduos que receberam transfusões de sangue ou foram transplantados antes de 1992 e que receberam concentrados de fatores de coagulação antes de 1987, profissionais de saúde e recém-nascidos de mães com hepatite.
Face à existência de uma terapêutica com elevada taxa de cura, é expectável que a eliminação da hepatite C possa ser viável até 2030. Esta previsão deve ter como premissas a intensificação das medidas preventivas, principalmente nos grupos de risco; o diagnóstico atempado, antes do desenvolvimento da cirrose e suas complicações; e a acessibilidade e a disponibilização da terapêutica, reduzindo desta forma o burden económico e de recursos de saúde no tratamento destes doentes. É fundamental o investimento na implementação de um programa nacional que vise a prevenção, o rastreio/diagnóstico e a terapêutica por forma a conseguir a erradicação da hepatite C no futuro próximo.
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