
Em A Revolução Carnívora (edição Manuscrito), o primeiro livro de Fernanda Geribello Anders, a especialista em dieta cetogénica certificada pela Nutrition Network, propõe uma análise crítica às recomendações alimentares tradicionais e às atuais práticas nutricionais adotadas por grande parte da população ocidental.
Fernanda Geribello Anders tornou-se conhecida nas redes sociais através da página “Cetogénica Portugal”, que reúne mais de 300 mil seguidores. Natural do Brasil e a residir em Portugal há mais de sete anos, conta com formação em estratégias alimentares de baixo teor de hidratos de carbono e em atividade física para pessoas cetoadaptadas.
O livro parte da experiência pessoal da autora, que, de acordo com o que escreve aos 40 anos, foi diagnosticada com várias doenças crónicas apesar de seguir, segundo afirma, “um estilo de vida considerado ‘exemplar’”. Cinco anos depois, “através de uma mudança radical na alimentação — nomeadamente a adoção da dieta cetocarnívora”, a autora do presente livro “conseguiu reverter ou controlar condições como resistência à insulina, hipoglicemia reativa, disbiose, osteoartrite e tiroidite de Hashimoto”.
A Revolução Carnívora apresenta uma leitura crítica das diretrizes alimentares promovidas nas últimas décadas, como a redução do consumo de carne vermelha e gordura saturada. A autora argumenta que essas mudanças não resultaram na melhoria dos indicadores de saúde da população, apontando, ao invés disso, para o crescimento dos casos de diabetes, hipertensão e cancro. Com base em estudos científicos recentes, defende que “o consumo de alimentos de origem animal pode ser benéfico no controlo e tratamento de diversas doenças”.
Através de uma abordagem acessível mas baseada em evidência científica, Anders explora temas como a domesticação dos vegetais modernos, o papel das dietas low fat na criação de hábitos alimentares prejudiciais, e o conceito das dietas ancestrais — com ênfase numa alimentação baseada em carne e gordura, e mínima ingestão de hidratos de carbono.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
Falsidades, interesses, jogos e engodos. As bases da nossa alimentação
O século XX foi marcado por uma mudança radical na forma de o ser humano se alimentar. Após a Revolução Industrial, o açúcar tornou-se mais disponível, com o seu consumo a aumentar gradualmente, ganhando novas proporções no pós-guerra. É de recordar que, antes de Colombo, o açúcar era raríssimo!
A alimentação norte-americana assentava sobretudo em boas proteínas e gorduras animais, como ovos e bacon, sendo uma tradição no pequeno-almoço da população. Ao longo do século XX, porém, a ávida indústria alimentícia ganhou espaço nas mesas da população, com novos produtos e ingredientes, que prometiam praticidade, sabor e conveniência à dona de casa.
Em 1911, a Procter & Gamble conseguiu a proeza de convencer a população americana a substituir gorduras ancestrais testadas pelo tempo, como manteiga, sebo e banha, pelo seu novo lançamento, o Crisco: um óleo de algodão hidrogenado, refugo da sua antiga indústria de velas, que oferecia uma aparência sólida e branca, exatamente como a banha, mas com menos cheiro na culinária, maior tempo de prateleira e uma vantagem fundamental: era mais barato.
No livro Death by Food Pyramid, Denise Minger revela como a Procter & Gamble não mediu esforços para promover a ideia de que seu produto era uma alternativa saudável. O mote de campanha de lançamento era: "É tudo vegetal! É digerível!". E, assim, as famílias trocaram em massa a manteiga, banha e sebo por essa gordura vegetal hidrogenada, um ingrediente inédito entre os americanos, que nunca haviam ingerido, em quantidades relevantes, óleos polinsaturados refinados, mal testados pela ciência, com alto teor de ómega-6, o que futuramente foi apontado como um dos grandes agressores da dieta moderna.
Outro importante facto histórico alavancaria ainda mais este consumo de óleos vegetais, moldando a alimentação do norte-americano até aos dias de hoje. Em 24 de setembro de 1955, Eisenhower, então presidente norte-americano e grande herói da Segunda Guerra Mundial, sofreu o seu primeiro ataque cardíaco. Este enfarte agudo do miocárdio mobilizou uma grande equipa e levou à criação de uma task-force médica empenhada em compreender a causados problemas cardíacos de Eisenhower. O seu médico, Paul Dudley White, apresentou ao presidente o fisiologista Ancel Keys, um grande investigador que, através do estudo "Seven Countries", apontou o dedo à gordura saturada como sendo a causadora da recente explosão de doenças cardiovasculares no país.
Mesmo sob forte crítica da comunidade científica pela fragilidade da evidência do estudo, a ideia "pegou": o culpado pelos sucessivos ataques cardíacos de Eisenhower, que era um fumador inveterado e fumava quatro maços por dia, era a gordura saturada da sua dieta.
Hoje já sabemos que Keys não estudou apenas sete países, contrariamente ao que dizia no seu estudo (inclusivamente logo no título), mas 22. E relacionou o consumo de gordura saturada com a incidência de doenças cardiovasculares para os únicos países que corroboraram a sua tese — os outros 15, que não apontavam a mesma correlação, foram convenientemente excluídos do estudo.
A teoria de Keys, um homem muito expressivo e influente, disseminou-se rapidamente. Não tardou muito até que os óleos vegetais começassem a ser indicados como a melhor opção de consumo para os norte-americanos: associações como a American Heart Association aconselharam de imediato a população a trocar gorduras saturadas por gorduras polinsaturadas.
Façamos uma pausa para perceber de que alimentos estamos a falar exatamente.

A introdução dos óleos vegetais no início do século XX, os tais óleos polinsaturados que de repente todas as entidades promoviam como saudáveis, causou um desequilíbrio inédito e perigoso no equilíbrio de ómegas. E fê-lo de uma maneira epidémica em todos os países.
Tanto o ómega-6 quanto o ómega-3 são ácidos gordos polinsaturados essenciais, o que significa que são gorduras fundamentais à vida humana que não produzimos. A quantidade que precisamos de ingerir é baixa, rondando 1 a 2 g por diade cada um deles. O ideal é manter um rácio de ingestão de 1g de ómega-6 para cada 1g de ómega-3 (mesmo um rácio de 3 para 1 seria viável para o organismo, que é o rácio normal nas populações ancestrais). Esta relação deve existir porque os ómegas competem entre si pelas mesmas enzimas; quando há um desequilíbrio, não se aproveita o outro ácido gordo.
Atualmente, a dieta ocidental contém quantidades insidiosas de ómega-6, sendo que se acredita que o rácio tem sido de 30g de ómega-6 para 1 g de ómega-3. Desta forma, o ómega-3 é como que "engolido" por completo pelo ómega-6. E, não, a resposta não poderia ser aumentar indefinidamente o ómega-3 para que este alcançasse o ómega-6, uma vez que isso representaria um enorme risco para a saúde. O excesso de ómega-3 interfere na densidade das membranas celulares. Omais adequado seria, sempre, diminuir a quantidade de ómega-6 na dieta.
Há mais. O ómega-6 é pró-inflamatório. O não aproveitamento do ómega-3, anti-inflamatório, cria, por si só, um problema de saúde na população. Como se não bastasse, há estudos a apontar para a possibilidade de o excesso de ómega-6 destruir a cardiolipina, que é uma membrana da central transportadora de eletrões, o que compromete a saúde mitocondrial. Quando falamos de saúde mitocondrial, estamos a referir-nos à saúde de todo o organismo, uma vez que a mitocôndria é uma das estruturas celulares mais importantes do nosso metabolismo, responsável por assegurar o equilíbrio e cumprimento das suas funções. As doenças metabólicas têm origem na falta de saúde mitocondrial — e falamos de doenças como cancro, diabetes ou doenças cardiovasculares.
Adiante veremos alguns estudos que demonstram que a introdução destes óleos, mesmo diminuindo o colesterol, também contribuiu para o aumento de doenças cardiovasculares nas populações estudadas.
As moléculas de óleos polinsaturados têm uma formatação com duplas ligações que favorecem a sua oxidação. São mais frágeis do que a gordura saturada, que é fechada. Estes espaços livres nas duplas ligações são vulneráveis à oxidação. Há estudiosos que acreditam que estes óleos vegetais são mais nefastos à saúde humana do que o próprio açúcar. Ao mesmo tempo que se aconselhava as populações a aumentarem exponencialmente o consumo de gorduras polinsaturadas, mesmo sem evidência científica, postulava-se que uma dieta com um consumo elevado de gordura saturada aumentava o colesterol, o que causava doença cardiovascular.
Nina Teicholz, no livro The Big Fat Surprise, conta que vários cientistas tentaram refutar esta teoria. Chegaram inclusivamente a reavaliar dados do próprio estudo "Seven Countries", encontrando informações contraditórias que comprovavam o contrário postulado nas conclusões desta investigação, entre outras inconsistências. Além de não serem ouvidos, perderam verbas de bolsas ou investimentos, viram negada a publicação de estudos e acabaram por ser ostracizados pela comunidade científica.
Apesar de a chamada hipótese dieta-coração de Keys ter sido a tese mais escrutinada da história da nutrição, nunca se comprovou que a gordura saturada causasse doença cardiovascular. Nos últimos anos, novos estudos esclareceram o papel protetor da gordura saturada para evitar acidentes vasculares cerebrais, desde que a partir de alimentos naturais. Ainvestigação tem vindo a mostrar que a gordura saturada que faz mal não é a gordura saturada dietética num contexto saudável, mas a gordura saturada ácido palmítico, que produzimos internamente num contexto de excesso de hidratos de carbono.
Entre 1966 e 1973, Ancel Keys realizou dois estudos muito importantes com o objetivo de colocar à prova a sua hipótese dieta-coração.
Havia ainda muitas críticas por parte da comunidade científica, que lamentava que esta hipótese estivesse a ditar conselhos nutricionais à população sem ter sido realmente testada ou comprovada cientificamente. O maior deles, o estudo "Minnesota Coronary Experiment", reuniu dados de 9423 residentes-internos de clínicas psiquiátricas, que todos os dias consumiam a comida confecionada nas cantinas destes estabelecimentos. Confinados às suas clínicas, não tinham acesso a comida do exterior. Era o local perfeito para testar se os óleos vegetais eram de facto melhores para a saúde cardiovascular.

Os participantes não sabiam da investigação, portanto, não havia risco de efeito placebo (possível alteração de resultados por sugestão inconsciente por parte do participante). Os cientistas providenciaram então que uma parte dos residentes recebesse as suas refeições feitas com gordura saturada, a partir de gorduras animais, enquanto outra iria ingerir gordura polinsaturada, proveniente de óleos vegetais. Como a comida e o estilo de vida dos participantes seriam idênticos, e o estudo prolongar-se-ia durante seis anos, pareciam reunir-se as condições perfeitas para compreender se de facto se comprovava a hipótese dieta-coração. O estudo foi publicado em 1989, com dados favoráveis aos óleos vegetais. Até que, décadas depois, começou uma história digna de um filme de cinema.
Na cave da casa de Ivan Frantz — um dos principais investigadores do estudo original de Minnesota e Sydney, que tinha trabalhado ao lado de Ancel Keys —, o investigador Christopher Ramsden encontrou rolos originais com dados dos estudos do Minnesota e de Sydney, empilhados e empoeirados, que haviam sido excluídos da versão publicada. Os estudos completos, com os dados encontrados por Ramsden, foram republicados em 2016 e revelam o verdadeiro resultado da pesquisa de Keys. Na conclusão do "Sydney Diet Heart Study", lê-se: "A substituição das gorduras saturadas por ácido linoleico aumentou as taxas de morte por todas as causas, incluindo doenças coronárias e cardiovasculares". Mais:"Estas descobertas podem ter implicações importantes para o aconselhamento dietético mundial", que, como referido, aconselharam veemente a substituição do gorduras saturadas por gorduras polinsaturadas em geral. O estudo de Minnesota corroborou estas conclusões, dizendo que os ensaios clínicos mostram que "a substituição da gordura saturada na dieta por ácido linoleico (ómega-6) reduz efetivamente o colesterol sérico, mas não apoia a hipótese de que isso se traduza em um menor risco de morte por doença coronariana ou por todas as causas". Novamente, vão mais longe: "As descobertas do Minnesota Coronary Experiment acrescentam evidências crescentes de que a publicação incompleta contribuiu para a superestimação dos benefícios da substituição da gordura saturada por óleos vegetais ricos em ácido linoleico".
Ainda em 2016, outro estudo volta a surpreender ao revelar os bastidores de como a indústria do açúcar pagou a cientistas para responsabilizar a gordura pelo desenvolvimento de doenças cardiovasculares, isentando o açúcar. O açúcar e o excesso de hidratos de carbono representam um importante fator de risco para doenças cardiovasculares e, pelo que a história revela, houve uma disputa de narrativas a respeito de qual era o verdadeiro fator agressor associado à doença cardiovascular. Já é de grande conhecimento que a diabetes mellitus tipo 2 é um dos maiores fatores de risco para doenças cardiovasculares, e a American Heart Association relata que 65% das mortes em indivíduos com diabetes tipo 2 devem-se a doenças cardíacas e acidentes vasculares cerebrais. De facto, houve uma escalada inédita das doenças cardiovasculares nos Estados Unidos a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. Em todo o século anterior, existiam apenas oito registos oficiais de doença cardiovascular. Hoje, é a principal causa de morte em vários países do mundo. Vejamos só este exemplo: em 1897, William Osler, famoso médico do Hospital John Hopkins, fez um levantamento do seu trabalho no hospital. Ao longo de vinte e um anos, registou apenas seis casos de angina e nunca teve conhecimento de alguém que tivesse tido um enfarte do miocárdio. Inacreditável, não é verdade?
O primeiro enfarte do miocárdio foi registado nos Estados Unidos em 1912. Poucas décadas depois, esta seria a principa lcausa de morte por doenças não infeciosas nos Estados Unidos.
Analisando a incidência de doenças cardiovasculares nos últimos 200 anos, verificamos que as estatísticas de doença cardíaca explodiram justamente quando o consumo de gordura saturada foi, em massa, substituído pelo de gorduras polinsaturadas com alto teor de ómega-6.

Contudo, além da mudança no padrão do consumo de gordura, houve também uma alteração no padrão da ingestão de macronutrientes.
As diretrizes dietéticas americanas (DGA) foram concebidas durante toda a década de 1970 sob a orientação da nutricionista-chefe e professora Luise Light. Havia uma grande preocupação com o consumo de açúcar e alimentos processados, pelo que o foco da então nova pirâmide alimentar passava por reduzir alimentos problemáticos consumidos pela população. Luise Light recomendava gorduras naturais e vegetais e frutas como prioridade. Anos depois, quando as diretrizes foram finalmente finalizadas, o departamento de agricultura dos Estados Unidos decidiu colocar o documento à apreciação do agronegócio. Sim, isso mesmo: o governo norte-americano permitiu que o seu principal capital político, os produtores de cereais, tivessem o poder de criticar e alterar as diretrizes de um trabalho técnico e altamente sensível para o país. O previsível aconteceu. A pirâmide voltou completamente alterada.
As recomendações que apontavam para um consumo de açúcar abaixo de 10% do total das calorias diárias foi substituído por "consumir açúcar com moderação", um conselho totalmente vago. Na recomendação de "máximo de 2 a 3 porções de cereais", os números subiram para 6 a 11. Vegetais eram intercambiáveis com cereais. O aconselhamento inicial de comer apenas cereais integrais foi retirado. Frutas e vegetais, que eram a base da dieta, passarama 2 a 3 porções por dia. As proteínas animais ficaram na mesma categoria que as vegetais, as leguminosas, quebrando assim atradição norte-americana de dar prioridade a proteínas animais. Na altura, Luise Light ficou horrorizada. E disse ao seu supervisor: "Ninguém precisa de consumir assim tanto pão, a não ser que seja estivador ou jogador de futebol. Aquela pirâmide vai dar início a uma epidemia de obesidade e diabetes sem precedentes".
A National Academy of Sciences, uma organização privada e sem fins lucrativos, fundada em 1863 pelo presidente Abraham Lincoln, procura ser uma instituição independente e isenta para aconselhamento científico em questões complexas. Na altura, lançou um relatório sobre as DGA intitulado "Toward Healthful Diets". O documento apontava que "a dieta tradicional do norte-americano era abundante em vitaminas essenciais e proteínas de alta qualidade", sendo "uma das melhores, se não a melhor do mundo". O relatório tecia duras críticas às DGA, que alteravam radicalmente a dieta tradicional dos americanos sem evidência científica que justificasse tal guinada de direção.
Esta história é contada em detalhe em livros como The Big Fay Surprise, de Niva Teicholz, Death by Food Pyramid, de Denise Minger, e Food Politics, de Maion Nestle. E este resgate histórico revela como as tendências de dieta de todo o planeta foram radicalmente alteradas tendo como motivação interesses de todas as ordens que não as nutricionais, facto que é desconhecido pelos próprios profissionais de saúde.
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