HealthNews (HN)- No programa eleitoral da Aliança Democrática são feitas inúmeras críticas às medidas e decisões adotadas no anterior governo. Há algumas medidas do atual programa de reformas do SNS que irão reverter caso ganhem as eleições?
Ana Paula Martins (APM)- As críticas explícitas e implícitas daquilo que é o processo de reformas em curso no Serviço Nacional de Saúde não se destina em momento algum a deixar de reconhecer aquilo que, estando a ser feito, pode ter bons resultados. Falo por exemplo dos Centros de Responsabilidade Integrados que agora estão a ser reorganizados com legislação e indicadores próprios. No caso das urgências são matérias que estão a ser aplicadas e que nos parece importante observar em termos de resultados.
Quando falamos em transformação e reformas que precisam de ser feitas para que o SNS possa responder àquilo que é a procura, sobretudo na fase pós-pandemia, não estamos a querer dizer que não possa haver continuidade de algumas das políticas que demonstrem ou venham a demonstrar bons resultados. Não seria sensato e não é esse o modelo que governação da Aliança Democrática. Isto é um aspeto muito importante porque, naturalmente, quando olhamos para o programa eleitoral não vemos um extenso tratado de propostas e medidas para toda a reorganização do SNS. Aquilo que vemos é um ponto de partida para um programa de governo que foi construído com muitos profissionais de saúde e pessoas ligadas ao Serviço Nacional de Saúde e ao setor da saúde. Foram incluídas as propostas de reforma que no nosso entender são absolutamente fundamentais, não só na sua essência, mas também na rapidez da sua execução.
HN- Propõem um plano de emergência para a saúde a ser aprovado nos primeiros 60 dias de um Governo da AD e executado em 2024 e 2025. Quais as medidas mais relevantes que pretendem aprovar caso venham a formar Governo?
APM- Este sentido de urgência é muito importante. O nosso programa passa desde logo pela atribuição de médico e equipa de saúde familiar a todos os cidadãos. Porque é que para a AD é tão importante este tema? Porque não podemos desistir da ideia de que, no final de 2025, os nossos utentes devem ter uma porta de entrada no SNS e no sistema de saúde, de modo a não ficarem sem solução para os seus problemas de saúde. Esta medida surge do diagnóstico que foi feito do número de portugueses sem médico de família. Nos últimos anos, aumentámos de forma muito significativa este número, sobretudo em determinadas regiões. Há grandes assimetrias no país e isso é uma preocupação até, deixe-me dizer, constitucional. Em Lisboa e Vale do Tejo, Algarve, Alentejo e nalgumas zonas da região Centro temos milhares de utentes sem médico de família atribuído. Nalguns casos esta percentagem ultrapassa os 60%. Trata-se, portanto, de uma questão que coloca em causa a confiança no sistema. As pessoas têm de sentir que vão a um centro de saúde, quer seja por uma situação aguda, quer seja crónica, e que têm a quem recorrer – o médico de família.
HN- Mas como pensam cumprir esta promessa que tem sido bandeira eleitoral de todos os partidos há várias décadas, sem nunca ter sido cumprida?
APM- Pensamos cumpri-la acreditando e trabalhando nela. Temos uma reforma em curso que nos parece muito positiva e que diz respeito à passagem das Unidades de Saúde Familiar para modelo B. Ao contrário de outras reformas, estas unidades foram, ao longo da última década, colecionando evidências de motivação dos profissionais de saúde e, acima de tudo, uma humanização dos cuidados com resultados muito concretos sob o ponto de vista clínico.
A AD afirma, e aqui é que temos um mar de diferenças relativamente ao programa eleitoral do Partido Socialista, que todos os médicos de família que estão a trabalhar nas instituições sociais e privadas, qualquer que seja a sua idade, poderão ter um acordo no âmbito do Serviço Nacional de Saúde para ficar com uma lista de utentes. Dir-me-á que isso não é uma equipa de saúde familiar. É verdade, mas é melhor ter um médico de família ou um médico assistente para fazer o acompanhamento em proximidade. Os médicos que têm hoje a sua clínica, são cerca de 800, podem formar parte da solução para proteger os utentes que ainda não conseguem ser incluídos nas USF modelo b.
HN- Significa que a AD pensa recorrer ao setor privado? Vão ser implementadas as USF modelo C?
APM- Poderemos certamente. Como tudo na vida, existem vantagens e desvantagens. As USF modelo c são efetivamente uma possibilidade de organização para os Cuidados de Saúde Primários poderem alcançar este objetivo principal do programa eleitoral da AD que é a atribuição de médico de família para todos até 2025. Portanto, não deixaremos de utilizar este mecanismo se, em concertação com os profissionais e com o setor social e privado, chegarmos à conclusão que é mais uma ferramenta de fazer chegar médicos e equipas de saúde familiar para todos os portugueses. De qualquer forma, é preciso perceber que esta é uma medida muito exigente e muito difícil de concretizar. A AD vai, por isso, continuar a insistir nas USF modelo b (vamos acompanhá-las e expandi-las). É um projeto que está a ser iniciado e desenvolvido.
HN- Mas está a ser alvo de críticas. Os médicos não concordam com alguns indicadores de desempenho…
APM- Lá está. Estando nós de acordo com o modelo, reconhecemos que o temos de ajustar não só a nível da regulamentação, mas também a nível da contratualização. É um processo dinâmico. Aquilo que eu quero dizer em relação aos índices de desempenhos, teremos de mais uma vez, em diálogo, fazer o ajuste que for preciso e que se revele necessário. É por isso que, voltando ao nosso plano de emergência, queremos aprofundar o olhar sob os indicadores de desempenho, para a questão dos secretários clínicos, para a concretização do enfermeiro de família e das suas funções… É preciso, no fundo, pegar nisto tudo e continuar a melhorar as USF modelo b.
Aquilo que nos distingue do Partido Socialista é que nós vamos “deitar mão” daquilo que são os profissionais de saúde que temos disponíveis no setor social e privado. Queremos encontrar formas de contratualização para que estes profissionais tenham listas com utentes sem médico de família. Falamos muito dos “bata-branca”. Foi um modelo que foi resultando em várias zonas do nosso país, suprindo necessidades importantes. Portanto, esta também é uma possibilidade. Podemos avançar com um modelo “Bata Branca 2.0” ou “Bata Branca 3.0”. Estamos a falar de médicos que estão no ativo e que fazem a sua atividade no setor social e privado.
HN- Para além dos CSP, quais as outras áreas que vos preocupam e que reconhecem como prioritárias?
APM- Temos duas áreas que nos preocupam muito. Uma é a gestão dos hospitais públicos. Quem governa tem a obrigação de desburocratizar e dar condições à gestão pública para fazer aquilo que, por exemplo, a gestão privada consegue fazer. Aquilo que eu senti na pele é que apesar de conseguimos recuperar de listas de espera, não é suficiente. É preciso ter esta lucidez. Não posso querer defender tanto o SNS, achando que o reformo, o desenvolvo e o transformo sem assumir que este já não consegue responder sozinho ao aumento da procura. Portanto, com a AD voltaremos a ver uma contratualização muito forte com o setor social, sobretudo em áreas de cuidados continuados, onde a situação é altamente preocupante. É uma questão que acaba por bloquear uma parte da recuperação das cirurgias realizadas no Serviço Nacional de Saúde. Ficamos com doentes que, mesmo tento alta médica, permanecem nos nossos hospitais. Temos de aproveitar todo o potencial que o setor social e privado tem. É aqui que entra a segunda área prioritária – a recuperação das listas de espera para consultas e cirurgias. Quando falamos em ter modelos de contratualização, contratos-programa, convenções, para recuperar listas de espera em termos de tempos máximos de resposta garantida, significa que estamos a dar prioridade a áreas que nos preocupam bastante, como é o caso da oncologia.
HN- É com a atribuição de “vouchers” que pensam responder aos problemas nas listas de espera?
APM- Sim. O que nós queremos dizer no nosso programa eleitoral com o “voucher” é que pode servir como uma “via verde”. Esta é a segunda área de trabalho do plano de emergência para a saúde que vamos implementar nos primeiros sessenta dias.
HN- Falou sobre a questão da gestão. O último governo pôs fim as PPP. Mais tarde, o Tribunal de Contas concluiu que hospitais em Parceria Público-Privada geraram poupanças ao Estado. Qual será a atuação da AD no que toca a esta questão? Vão regressar as PPP?
APM- Vão regressar os modelos de governação que forem mais adequados para reforçar o Serviço Nacional de Saúde e o sistema de saúde. Com isto quero dizer que a AD vai contemplar as Parceria Público-Privada, as Parceria Público-Social e as Parcerias Público-Pública. As USF modelo b é um claro exemplo de Parcerias Público-Pública.
Ao nível da gestão consideramos que a questão ideológica tem de ficar de lado. Se temos relatórios que evidenciam que as Parceria Público-Privadas foram globalmente muito positivas em termos de resultados para o Estado e para os cidadãos, a AD vai olhar para esta questão. De qualquer forma, por parte da AD existe uma firme intenção de olhar para aquilo que são as possibilidades de estender modelos de Parcerias Público-Públicas. Os hospitais universitários são centros de produção de conhecimento, não são só assistenciais. As universidades podem ajudar-nos a encontrar soluções muito interessantes em termos de gestão destas unidades. Temos de retirar, daquilo que são as burocracias do perímetro do Estado, a capacidade de gerir e de inovar. Estes são alguns dos problemas que os nossos gestores enfrentam todos os dias. Por isso é que a Aliança Democrática não fecha as portas a nenhum modelo de gestão que seja comprovadamente eficaz no que toca à satisfação dos doentes, profissionais de saúde e do sistema de saúde.
HN- O programa alerta que “há uma injustiça gritante no acesso aos cuidados de saúde em Portugal, com desigualdades crescentes entre os mais pobres e os mais ricos, entre o litoral e o interior, entre zonas urbanas, suburbanas e rurais”. Quando a AD propõe “um novo conjunto de incentivos para atração de profissionais de saúde” nas zonas mais carenciadas, de que incentivos estão a falar?
APM- As zonas carenciadas, onde habitualmente residem as populações mais vulneráveis e ultravulneráveis, têm de ter incentivos não apenas de natureza remuneratória, mas também a nível do acesso à habitação. Posso dar um exemplo, já temos em Lisboa, com o presidente Carlos Moedas, um trabalho que está a ser feito de apoio a rendas acessíveis para os nossos profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros e os técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, cujos salários são muito baixos para o custo de vida em Lisboa. Portanto, ao contrário daquilo que pensaríamos há duas décadas, os incentivos hoje para ficar nas áreas metropolitanas vão para além da dimensão monetária. Temos de apostar na rede de mobilidade e no apoio da rede de creches. Muitos destes profissionais são jovens, pais e mães, que precisam de ter apoio a este nível. Esta é uma das medidas que todos os hospitais procuram ter.
HN- Podemos então afirmar que o plano de motivação profissional, proposto pela AD, vai para além dos incentivos remuneratórios?
APM- Sim. O plano de motivação não é só por via da remuneração, mas também por via das componentes sociais, como é o caso de creches para os filhos dos profissionais de saúde, do apoio às rendas e da flexibilidade laboral. Os modelos híbridos que são tão contemporâneos para estas novas gerações, são mais difíceis de atingir na área da saúde. Isto não quer dizer que seja impossível. Temos de ter uma reforma digital. Esta é uma das críticas que a AD faz aos últimos oito anos. Não fizemos a transição digital que precisávamos de fazer. Temos um PRR de 300 milhões de euros. Cabe-nos a nós perguntar qual é o caminho que estamos a fazer no que toca a esta questão. Como é que estão os hospitais? O que é que está a acontecer em relação ao sistema? O que é que está a ser feito para garantir novos modelos de trabalho digital? São estas as perguntas que iremos discutir na primeira semana se viermos a formar Governo. No âmbito deste plano de motivação podemos ter uma parte do trabalho, que é feito pelos médicos e enfermeiros, através da saúde digital ou de meios domiciliários.
HN- O registo eletrónico único, há tanto prometido, vai ser uma realidade com um governo da AD?
APM- Tem que ser. Todas as medidas de que falei não fariam sentido sem o registo de saúde eletrónico. É uma ferramenta essencial para que todas estas mudanças aconteçam.
HN- Como é que a AD prevê atender às exigências dos profissionais de saúde? Os sindicatos médicos estiveram quase 2 anos em negociações com o Governo do PS, tendo apenas chegado a um acordo intercalar. Já os enfermeiros e as restantes classes nem tiveram essa oportunidade… Prevê-se, pois, que no pós nomeação do futuro governo a contestação, com todos os problemas de acesso que se lhe associam se irá manter.
APM- A AD está comprometida com esta questão. O nosso compromisso é de que iremos retomar as negociações com os médicos. E porquê? Porque os aspetos remuneratórios foram salvaguardados pelo governo anterior, mas existem ainda muitos aspetos, nomeadamente motivacionais que têm de ser discutidos. Temos de olhar para flexibilidade horária e para o tempo laboral. Se calhar um médico com 70 anos já não quer trabalhar 40 horas por semana, quer trabalhar 20 ou 12 horas, mas é tão especializado em determinadas áreas médicas que nos fazem muita falta… Não podemos dar-nos ao luxo de desperdiçar estes recursos valiosíssimos.
Este plano de motivação vai envolver todos os aspetos que temos de trabalhar para conseguir atrair e vincular os profissionais. Não vamos reter ninguém. Somos completamente contra pactos de permanência.
O plano de recursos humanos na Saúde é a principal preocupação que a AD tem. É um plano estruturante que tem de ser construindo com as profissões e com as ordens profissionais. Não temos medo das ordens. Muito pelo contrário, achamos muito importante ter sua a contribuição, uma vez que têm um estatuto que lhes permite regular a profissão e garantir aquilo que é a sua própria vocação. O Estado nunca fez bem isto. As nossas ordens profissionais têm muita maturidade na área da Saúde e são capazes se colocar o interesse público em cima da mesa. O Governo, que tem a obrigação de ouvir e ponderar, tem de fazer a arbitragem necessária.
HN- O funcionamento dos serviços de urgência tem marcado a agenda mediática dos últimos meses. A criação da Especialidade de Medicina de Urgência e Emergência será a solução para este problema?
APM- Quando formos Governo, iremos debater esta questão. Estamos comprometidos e esperançados de olhar para o tema Especialidade de Medicina de Urgência como um passo para conseguir ter um serviço de urgência que seja mais dedicado. De qualquer modo, é preciso dizer também que a criação desta especialidade exige um modelo de remuneração próprio e uma reorganização do sistema. Isto é, implica termos cuidados de proximidade muito bons e que todas as especialidades possam convergir com estas equipas… E isso ainda não está devidamente afinado.
HN- A AD fala em reformular a Direção Executiva do SNS, o que é que isto significa? Vai ser dada maior autonomia, mais competências, mais recursos?
APM- Significa que vamos olhar para aquilo que é hoje o modelo de governação. Temos de perceber o que é que na governação estamos a ter. A DE-SNS já tem algum tempo de existência. Tem naturalmente um relatório apurado do trabalho que tem feito. Portanto, é preciso falar com a Direção Executiva e perceber quais são as perspetivas, os meios que dispõe e qual é o modelo de trabalho que prevê com os seus estatutos. Por outro lado, vai ter de se questionar a rede do SNS sobre como é que avalia o desempenho da própria Direção Executiva. Isto é muito importante. É preciso perguntar àqueles que estão à frente dos hospitais e dos centros de saúde se veem mais valor e se consideram que existem vantagens para o sistema. Portanto, aquilo que tiver de ser corrigido será corrigido. Aquilo que estiver a funcionar bem é para continuar. Não nos podemos dar ao luxo de mudar o que está bem, mas também não podemos de manter o que está mal. Isso não é possível com a Aliança Democrática.
Entrevista de Vaishaly Camões
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