Entretanto, desde março, a vida mudou. Mudou para os doentes e para os profissionais de saúde de todo o mundo. Um cenário apenas visto na ficção tomou conta da nossa realidade. A pandemia provocada pela COVID-19 enviou a população para as suas casas, isolada, com o menor contacto físico possível. Ninguém sabia realmente o que esperar deste vírus, e todas as medidas para travar a sua propagação foram tomadas. Nesse início, consultas de rotina, cirurgias programadas e exames auxiliares de diagnóstico foram adiados e a teleconsulta passou a ser uma opção na avaliação do doente. Era fundamental concentrar esforços no tratamento da infeção pelo SARS-Cov-2 e quebrar redes de contágio, de modo a evitar novas infeções.
À medida que o tempo foi passando, continuamos a assistir ao adiamento dos cuidados de saúde. Protelar o acompanhamento médico regular trará, certamente, consequências para a saúde da população, especialmente a mais idosa, que possui vários fatores de risco cardiovasculares, co-morbilidades, doenças crónicas, sistema imunológico mais debilitado, entre outros.
Os doentes passaram a ter receio de se dirigirem às unidades de saúde. O medo do vírus superou o medo do Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou do enfarte agudo do miocárdio. As principais causas de morte continuam a ser as doenças cérebro-cardiovasculares - relacionadas com a hipertensão arterial, diabetes melittus e elevação do colesterol - bem como as doenças oncológicas. O medo do vírus passou também a ser maior que muitas dores agudas. E as patologias crónicas, como a hipertensão, a diabetes ou a doença pulmonar obstrutiva crónica, deixaram de estar controladas. Não foi ajustada a medicação crónica, não foram avaliados parâmetros como a tensão arterial ou o controlo da glicemia.
Enquanto médica especialista em Medicina Geral e Familiar, tenho assistido de perto a esta realidade, que ocorre tanto em contexto de consulta, como de urgência. Diariamente observo doentes a entrarem no consultório com receio. Ouço frequentemente dizer que só vieram à consulta nesse dia porque não a conseguiram adiar mais. E a descompensação das doenças crónicas conduz a mais idas ao serviço de urgência ou atendimentos permanentes, com estadios de doença mais avançada e de maior gravidade.
É também importante referir que, ao adiar consultas de rotina, estamos também a adiar rastreios importantes, como o rastreio do cancro da mama, do cancro do colo do útero ou do cancro colo-rectal. E assim, os diagnósticos não são tão precoces como seria desejado, e o prognóstico tende a agravar. Quero reforçar que existem outras doenças, que também devem ser tratadas atempadamente e em caso de necessidade deve procurar o seu médico. Os médicos de Medicina Geral e Familiar são os principais responsáveis pela promoção da saúde e prevenção da doença. Cabe-lhes, também, acompanhar algumas doenças crónicas, podendo encaminhar para consulta de outras especialidades, sempre que necessário.
No combate a este problema, reforço diariamente aos meus doentes que os estabelecimentos de saúde se adaptaram à nossa nova realidade. Que medidas de higiene e desinfeção mais rígidas foram implementadas. Que se procede à identificação de doentes com sintomatologia respiratória, de modo a garantir que diferentes circuitos são usados por esses doentes. E que estas medidas servem para proteger os doentes e os profissionais de saúde.
Assim, a mensagem que gostaria de deixar é que é fundamental que os doentes se protejam a si e aos outros. É elementar a higienização frequente das mãos, o uso de máscara e o distanciamento social. Mas os doentes não devem ter medo de recorrer ao médico. Não devem deixar de garantir o controlo das suas doenças crónicas. Não devem deixar de tratar as suas doenças agudas. Caso contrário, iremos assistir a um agravamento da saúde da nossa população, com consequente aumento da mortalidade.
Por si, não adie a sua saúde.
Um artigo da médica Maria João Canelhas, especialista em Medicina Geral e Familiar no Hospital da Ordem da Trindade, no Hospital CUF Porto e Clínica CUF S. João da Madeira.
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