
HealthNews (HN) – O recente estudo promovido pelo Movimento LIFE revela um desinteresse crescente pela liderança entre os jovens profissionais da saúde, sobretudo entre as mulheres. Na sua opinião, quais são as causas mais profundas deste fenómeno e que consequências poderá ter para o futuro do setor da saúde em Portugal?
Cláudia Ricardo (CR) – Neste estudo, que divulgámos publicamente no dia 5 de junho, compreendemos o que motiva os inquiridos a rejeitarem a ambição de liderar: excesso de responsabilidade sabendo de antemão que a capacidade de resposta pode ser limitada; demasiado stress; e preferência por trabalho individual, sem responsabilidade de coordenação de outras pessoas.
E então o que teria de estar garantido para que esta jovem geração da saúde considerasse um lugar de liderança? Maior compensação/ benefícios financeiros, recursos humanos/ materiais adequados e “ser menos stressante” são as respostas mais frequentes.
O estudo permitiu também perceber que a mais nova geração entende que “ser líder implica ter maior disponibilidade para o trabalho”, tendo em conta o exemplo que têm nas suas organizações, o que nos deve levar a equacionar que exemplos ou que inspiração estão os atuais líderes a ter nas suas equipas e que levam as novas gerações a rejeitar a ideia de liderança
São vários elementos que nos levam a ler melhor a realidade, a refletir sobre ela e a agir.
Se as novas gerações não desejam assumir posições de liderança, o futuro poderá ser afetado no que diz respeito à inovação, com uma menor organização das instituições, com perda de eficiência, podendo potenciar conflitos e levar a uma desestruturação de entidades.
Fundamentalmente, precisamos de liderança para estruturar as organizações e a sociedade, para definir uma visão, um propósito e uma direção.
Considero essencial redefinir o conceito de liderar. Isso implica promover modelos de liderança mais humanos, empáticos, que valorizem a escuta ativa, a cooperação e o impacto social.
Além disso, é crucial formar e capacitar jovens líderes, com apoio, mentoria e políticas que tornem a liderança mais desejável.
HN – O estudo destaca que apenas 32% das mulheres sem cargos de chefia ambicionam liderar, face a 50% dos homens. Como interpreta esta diferença de ambição entre géneros e que medidas concretas considera essenciais para inverter esta tendência?
CR – Na verdade, o nosso novo estudo confirma que a perceção sobre a liderança continua marcada pela desigualdade de género.
Atentemos a outro indicador refletido no estudo: 75% os inquiridos consideram que a parentalidade tem maior impacto na carreira das mulheres, sobretudo porque as responsabilidades parentais ainda recaem muito sobre o género feminino. Se analisarmos apenas as respostas das mulheres, 88% acreditam que ser mãe impacta mais o acesso à liderança.
As diferenças de género persistem genericamente, na sociedade, por diferentes fatores, muitos refletem estruturas sociais e culturais enraizadas. O estudo do Movimento LIFE mostra uma vez mais que, apesar dos avanços, as mulheres continuam a enfrentar obstáculos invisíveis e vieses inconscientes, muitos deles vindos de nós próprias.
Esta realidade contribui para um círculo vicioso: menos mulheres em cargos de decisão, menos modelos de referência, menos inspiração para liderar.
Também é necessário romper com os estereótipos de género que limitam o acesso e o desejo de liderar, mostrando que liderança pode — e deve — ser diversa, flexível e compatível com diferentes estilos de vida.
HN – É referido que a parentalidade continua a ter um impacto desproporcional na progressão das mulheres para cargos de liderança. Que políticas ou práticas considera prioritárias para promover um maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional e, assim, facilitar o acesso das mulheres à liderança?
CR – Em primeiro lugar, diria que o equilíbrio entre vida pessoal e profissional tem de ser para homens e mulheres, deve ser para quem ambiciona ser líder e para quem não quer, para quem deseja ter filhos e para quem não deseja.
Indicando esta premissa basilar, entendo que a opção de trabalho flexível, com horários flexíveis, pode ajudar a garantir um equilíbrio entre vida familiar e responsabilidades profissionais.
Creio que as empresas devem também incentivar, tal como toda a sociedade, as licenças de parentalidade, para mães e pais, com partilha e distribuição das responsabilidades de forma mais equitativa.
Por outro lado, caberá aos locais de trabalho tentar encontrar, criar e incentivar programas de desenvolvimento de liderança, bem como oferecer iniciativas de mentoria e ou coaching.
Mas, no fundo, toda a cultura de trabalho deve contribuir para mais inclusão e maior igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
HN – O Movimento LIFE tem apostado em iniciativas como o programa de mentoria “Horizonte LIFE”, que visa capacitar jovens mulheres para a liderança. Que resultados práticos têm sido alcançados e que feedback tem recebido das participantes e das mentoras?
CR – Ainda não nos é possível ter um balanço do impacto do programa Horizonte LIFE, uma vez que a iniciativa arrancou formalmente em abril e é ainda prematuro ter alguma estruturação de resultados. Sem dúvida que iremos ter esse balanço no final do programa, que dura cerca de 10 meses.
Mas há um indicador que nos deixa bastante satisfeitas, que é a recetividade que teve quando abrimos candidaturas. Recebemos mais de 60 candidatas ao programa de mentoria. Destas candidaturas, foram selecionadas 20 jovens mulheres provenientes de vários pontos do país e que trabalham em diferentes ramos do setor da saúde em Portugal, com experiências académicas e profissionais diversas.
Recordamos que o objetivo fundamental do programa é capacitar mulheres até aos 35 anos que trabalham na área da saúde para assumirem papéis de liderança, promovendo a igualdade de género e o desenvolvimento de competências chave para o progresso profissional.
HN – No seu percurso de mais de 25 anos na Roche, assistiu a mudanças significativas no reconhecimento e valorização da liderança feminina? Que desafios ainda persistem dentro das grandes organizações do setor farmacêutico e que exemplos positivos gostaria de destacar?
CR – Ao longo dos últimos 25 anos, assisti a uma evolução significativa no setor da saúde no que diz respeito à presença das mulheres, tanto em número como em funções de liderança. Hoje, é comum encontrar organizações ou departamentos com uma maioria de mulheres, o que naturalmente contribui para uma mudança de cultura interna. Essa transformação também se reflete numa maior presença de mulheres em posições de chefia intermédia, o que representa um passo importante na valorização da liderança feminina.
Contudo, a realidade mostra que ainda há um caminho a percorrer. Quando observamos as lideranças de topo, ainda temos poucos exemplos de mulheres nesses lugares. Isto ilustra bem como as mudanças, apesar de reais, podem ser lentas a nível da liderança de topo.
Genericamente, o reconhecimento das lideranças femininas tem estado presente, mas nem sempre de forma consciente ou intencional. Persistem desafios estruturais, como os estereótipos de género e os vieses inconscientes, que procuramos mitigar através de ações concretas — por exemplo, formações específicas para quem lidera processos de recrutamento. A criação de consciência sobre estas questões é essencial.
Importa também não cair na ilusão de que, num setor maioritariamente feminino, o problema está resolvido. Na verdade, continua a ser necessário garantir que há espaço para referências femininas em cargos de topo, não apenas para inspirar outras mulheres, mas para enriquecer os próprios modelos de liderança. Repensar os estilos de liderança — mais empáticos, com propósito, centrados nas pessoas — é cada vez mais relevante para atrair e reter talento, especialmente entre as novas gerações.
Por fim, é importante manter um olhar crítico sobre uma tendência preocupante: quando um setor se torna predominantemente feminino, há o risco de se assistir a uma desvalorização social do mesmo — com impacto direto no reconhecimento e remuneração da expertise ali desenvolvida. Este é um alerta que não deve ser ignorado.
HN – Defende que a igualdade de género não é apenas uma causa das mulheres, mas um tema de toda a sociedade. Que papel atribui aos homens neste processo de transformação e como pode o setor da saúde envolver todos os profissionais nesta missão de promover a diversidade e a justiça?
CR – Para o Movimento LIFE, a igualdade de género é um direito humano fundamental e crucial para sociedades desenvolvidas e sustentáveis. Não é, claramente, uma questão exclusiva das mulheres e muito menos uma questão de opor mulheres a homens. Entendo que é, sim, uma responsabilidade de toda a sociedade.
Também no LIFE procuramos envolver diversos profissionais da área da saúde nas nossas iniciativas, como estudos, conferências, debates ou eventos. Porque sabemos que uma sociedade mais justa e com maior igualdade de oportunidades depende de todos e é precisa a colaboração de homens e mulheres.
Cada pessoa, independentemente do género, pode e deve fazer a diferença nas suas casas, famílias, organizações, empresas ou círculos sociais, na promoção de uma cidadania em prol da igualdade e na luta contra a discriminação.
Nunca alcançaremos a igualdade de oportunidades sem nos escutarmos uns aos outros, sem colaboração e construção conjunta.
HealthNews
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