Há cerca de três meses, a Lusíadas Saúde lançou um podcast com o nome "Dos Pés à Cabeça", onde várias figuras públicas abordam, na primeira pessoa, o tema da hipocondria e as suas principais preocupações com a saúde.

Pelo podcast, cuja primeira temporada encontra-se na reta final - tem no total oito episódios -, já passaram nomes como Madalena Abecassis, Mel Jordão, Diogo Beja ou Iva Lamarão.

A partir deste projeto de literacia, apresentado por Vasco Palmeirim, a Lusíadas espera "sensibilizar o público para perigos ou sinais aos quais nunca se prestou atenção – antecipando-se, assim, comportamentos preventivos ou de vigilância por parte da população".

Num mundo onde existem cada vez mais pessoas preocupadas com a sua saúde, conversámos com a psicóloga Inês Matos Ferrão que nos esclarece como a preocupação com o nosso organismo pode evoluir para um quadro clínico de ansiedade de doença, também conhecido como hipocondria. Inês indica ainda os sinais a que devemos estar atentos, o impacto desta condição no bem-estar emocional e a influência da internet.

Inês Matos Ferrão, psicóloga do Hospital Lusíadas Monsanto
Inês Matos Ferrão, psicóloga do Hospital Lusíadas Monsanto Inês Matos Ferrão, psicóloga do Hospital Lusíadas Monsanto créditos: DR
Não se trata apenas de preocupação, mas de um sofrimento real

É normal preocuparmo-nos com a nossa saúde e, acredito, que existam cada vez mais pessoas a ter consciência de que é importante "escutar" o corpo e ter atenção aos sinais que este vai passando. Contudo, há quem se preocupe de forma excessiva e isso também não será saudável. Até que ponto é normal preocuparmo-nos com a nossa saúde e quando é que esse cuidado se torna um problema?

É absolutamente normal e natural preocuparmo-nos com a nossa saúde — afinal, o cuidado com o corpo e a mente é um reflexo de autoconsciência e de prevenção. Contudo, esse cuidado deve ser equilibrado. Quando essa preocupação se transforma num medo persistente e desproporcional de estar doente, mesmo sem sinais clínicos relevantes ou após sucessivos pareceres médicos tranquilizadores, pode configurar um quadro de ansiedade de doença, também conhecido como hipocondria. O ponto de viragem acontece quando essa inquietação começa a limitar a vida diária, a interferir com o bem-estar, o trabalho ou as relações interpessoais, originando comportamentos como a procura obsessiva por sintomas, o recurso frequente a consultas e exames médicos desnecessários ou, pelo contrário, evitar o contacto total com contextos médicos por receio de encontrar um diagnóstico.

O que é exatamente a hipocondria?

A hipocondria, ou mais precisamente designada como Perturbação de Ansiedade de Doença pelo DSM-5, é uma condição psicológica caracterizada por um medo excessivo e persistente de estar gravemente doente. Mesmo perante avaliações clínicas normais ou ausência de sintomas relevantes, a pessoa continua convencida de que sofre de uma doença séria e grave. Essa convicção pode levar à constante auto-observação, à realização repetida de exames médicos ou à procura contínua por validação externa. Não se trata apenas de preocupação, mas de um sofrimento real que interfere com a qualidade de vida.

O hipocondríaco vive num estado de hipervigilância constante

Que impacto é que este tipo de ansiedade/condição pode ter na nossa vida?

O impacto da hipocondria é significativo. Esta perturbação pode condicionar fortemente o bem-estar emocional, afetar relações interpessoais e até comprometer o desempenho profissional. O hipocondríaco vive num estado de hipervigilância constante, frequentemente alimentado por autodiagnósticos feitos na internet, monitorizando o seu corpo e interpretando sinais normais como potenciais ameaças. Esta inquietação crónica consome energia mental e emocional, conduzindo, muitas vezes, à ansiedade, à depressão e ao isolamento. Além disso, o recurso repetido a cuidados de saúde — ou, pelo contrário, o evitamento total por receio de confirmar um diagnóstico — pode ter consequências para a saúde física e para a própria confiança na relação médico-doente.

Quais são os sinais mais comuns de hipocondria no dia a dia? Há comportamentos ou pensamentos que devemos identificar como sinais de alarme?

Os sinais de alarme incluem a monitorização constante de sintomas físicos, interpretações catastrofistas de sinais banais, consultas médicas frequentes e repetidas, múltiplos exames com resultados normais que não tranquilizam a pessoa, ou ainda o recurso excessivo à internet para pesquisar sintomas.

é possível recuperar o equilíbrio e viver com mais tranquilidade em relação à saúde

A internet é uma aliada ou inimiga nestas situações?

A internet tanto pode ser uma aliada como uma inimiga, depende sempre da forma como é utilizada. Por um lado, o acesso à informação é uma mais-valia para promover literacia em saúde (sempre e quando utilizamos fontes de informação credíveis). Por outro, o excesso de informação descontextualizada e não validada, como diversos conteúdos que são cada vez mais disseminados nas redes sociais, pode agravar medos, levar a autodiagnósticos errados e alimentar a ansiedade. Para quem tem tendência hipocondríaca, a internet funciona muitas vezes como um gatilho, reforçando pensamentos negativos e alarmistas – este é, justamente, um dos pontos que motivou a criação do podcast ‘Dos Pés à Cabeça’ da Lusíadas Saúde, de forma a clarificarmos o potencial perigo do consumo de informação pouco credível na internet e o impacto que esta pode ter para quem vive com hipocondria.

Quando é que se deve procurar ajuda? E que tipo de terapias existem para ajudar quem sofre desta condição?

Deve-se procurar ajuda quando a preocupação com a saúde começa a limitar a vida, provocar sofrimento emocional significativo ou afetar o funcionamento diário. Na terapia cognitivo-comportamental (TCC), utilizamos técnicas específicas e comprovadas para ajudar nestes casos: Reestruturação cognitiva, que ajuda a identificar pensamentos catastróficos sobre o corpo e a substituí-los por interpretações mais realistas. Exposição e prevenção de resposta, onde a pessoa aprende a enfrentar gradualmente situações temidas (como ouvir falar de doenças), enquanto reduz comportamentos de verificação, como ir repetidamente ao médico ou pesquisar sintomas na internet. Mindfulness, uma ferramenta fundamental para observar sensações corporais sem reagir com medo, diminuindo o foco excessivo no corpo. Psicoeducação, que permite compreender o funcionamento da ansiedade e o modo como ela afeta a perceção dos sinais físicos. E também técnicas de regulação emocional, como o relaxamento e a respiração, para ajudar a gerir melhor os momentos de maior angústia. A boa notícia é que esta perturbação é tratável e que, com acompanhamento psicológico, é possível recuperar o equilíbrio e viver com mais tranquilidade em relação à saúde.

É possível que alguém sofra de hipocondria sem ter consciência disso? Como é que familiares ou amigos podem ajudar?

Sim, é possível. Muitas vezes, a pessoa acredita que está a agir com base numa preocupação legítima e não reconhece que essa preocupação se tornou disfuncional. Os familiares e amigos podem ajudar com empatia, sem minimizar os medos, mas encorajando a consulta de um profissional de saúde mental. O apoio deve ser centrado na compreensão e não no confronto direto, promovendo o acesso à ajuda especializada. Sabemos que isso começa, muitas vezes, por escutar: inquietações, receios, sintomas ignorados e mitos que se transformam em certezas.

preocupação constante com a saúde pode não ser saudável

Também podemos acreditar que somos hipocondríacos e não ser? Qual a abordagem médica nestas situações?

Podemos sentir uma preocupação excessiva com a saúde num período pontual de vida — por exemplo, após a vivência de um evento traumático ou doença próxima — sem que isso configure uma perturbação psicológica. A avaliação médica e psicológica é essencial para distinguir entre um episódio reativo e uma condição clínica. Nestes casos, a abordagem deve ser compreensiva e esclarecedora, validando os receios e promovendo uma relação de confiança que permita desfazer mitos e aliviar a ansiedade.

Para quem se identifica com este tema, que primeiro passo recomenda dar — mesmo antes de procurar ajuda especializada?

O primeiro passo é reconhecer que a preocupação constante com a saúde pode não ser saudável e começar por observar o impacto que essa ansiedade está a ter no dia a dia. Escrever sobre os sintomas sentidos, registar com que frequência surgem esses pensamentos e como interferem na vida, poderá ser uma boa forma de ganhar consciência. Reduzir o tempo dedicado a pesquisas online e evitar o ciclo de verificação constante também são boas práticas. Mas o mais importante é dar o passo seguinte e procurar apoio psicológico.