HealthNews (HN) – Na Europa, apenas Portugal e Grécia não têm a especialidade de geriatria. Curiosamente, são dos países mais envelhecidos do mundo. Em Portugal, faz sentido esta opção ou, sem reconhecer a especialidade de geriatria, podemos estar a prejudicar os nossos doentes idosos?
Mariana Alves (MA) – O problema não é só uma questão de ter especialidade ou não ter especialidade. Isso também é um problema, mas o maior problema é a carência de formação de todos os médicos em geriatria. Acho que o passo mais fácil para que a geriatria se desenvolva mais no nosso país passa pela criação da especialidade, mas só isso não vai chegar. E para chegarmos lá, vai ser um processo complexo, como faz parte da evolução da criação de uma nova especialidade, é sempre uma dificuldade e há alguma resistência. No entanto, é preciso, também, apostar no ensino da geriatria no pré-graduado, porque todos os médicos, excluindo os pediatras e os obstetras, vão trabalhar com doentes idosos. Há conceitos básicos, há identificação de problemas básicos que todos os médicos têm que saber sobre os cuidados e as especificidades do idoso.
Nós podemos criar a especialidade, sem dúvida, mas há várias outras vias, por exemplo, à semelhança do que aconteceu com a medicina intensiva: antes de se criar a especialidade formalmente, foi criado um ciclo de estudos e era uma subespecialidade. Portanto, esta alternativa também me parece válida. Atualmente, obtemos a competência em geriatria, que é um caminho inicial, mas falta muito mais – para a especialidade de geriatria e para todos os colegas. Outro problema grande são aquelas especialidades básicas, como a Medicina Geral e Familiar e a Medicina Interna, não terem a obrigatoriedade de ter formação em geriatria, ao contrário, por exemplo, do que acontece com os cuidados intensivos. A Medicina Interna é obrigada a fazer estágio de cuidados intensivos, no entanto contacta diariamente com doentes idosos e não é obrigada a fazer estágio de geriatria, e isso nem sequer faz parte do programa de formação.
HN – Na FMUL, a geriatria é uma cadeira obrigatória?
MA – Sim. Foi uma conquista do Professor Gorjão Clara, que conseguiu introduzir a geriatria, embora não fosse possível dar-lhe esse nome – foi designada Introdução às Doenças do Envelhecimento. É uma cadeira do terceiro ano; penso que desde 2010 que já é obrigatória. Eu, por exemplo, não consegui usufruir desta cadeira, não consegui ter esta formação, saí da faculdade sem qualquer formação específica em geriatria, tive que a adquirir já no pós-graduado por iniciativa minha e fora de Portugal; mas na FMUL já há essa sensibilidade, já há esse reconhecimento e existe não só uma cadeira optativa, mas também uma cadeira obrigatória. Há uma parte menos boa nesta cadeira obrigatória: ainda não conseguimos ter a componente prática, que seria fundamental e muito útil para a aprendizagem dos alunos. Eu acho que esse será o próximo passo que temos de dar e que estamos a planear.
HN – Esse défice de formação deve ser sentido por vários profissionais na prática clínica. Como se explica este atraso?
MA – Tem vindo a haver esse alerta, mas há sempre muita resistência. O Professor Matteo Cesari, geriatra que trabalha na Organização Mundial de Saúde, quando veio a Portugal fazer um workshop, falou das dificuldades do reconhecimento da geriatria porque os colegas que tratam doentes idosos acham que por tratarem doentes idosos já têm conhecimentos de geriatria, e fez um paralelo com outras especialistas: eu trato doentes com coração, isso faz de mim cardiologista? Claro que não.
E, portanto, há aqui esta falta de reconhecimento das competências específicas da geriatria e da necessidade específica da geriatria, que gera dificuldade em gerir o doente idoso complexo, e depois pode levar a erros de diagnóstico ou de tratamento. Também por estes motivos, deixa de ser atrativo para alguns médicos tratar doentes idosos, porque são doentes complexos, com múltiplas comorbilidades, e, portanto, carecem de mais tempo e mais cuidados na sua abordagem. E, portanto, há colegas que preferem evitar dedicar-se ao tratamento do doente idoso.
HN – Onde não se pode mesmo fugir ao tratamento destes doentes é nos lares. Tem sido uma batalha de especialistas e associações conseguir que os lares tenham, pelo menos, um médico. Ter um médico com formação adequada é um passo ainda maior. Pode falar um pouco dos desafios e da importância de ter nos lares médicos com formação em medicina geriátrica?
MA – São muitas barreiras que se podem identificar nesta questão dos médicos dos lares e a primeira delas é que quem tutela as ERPI não é o Ministério da Saúde, é o Ministério da Segurança Social. Logo isso gera dificuldades de se estar a fazer algum tipo de imposição, mesmo que se articule com o Ministério da Saúde. Recentemente foi criada a Associação dos Médicos dos Idosos Institucionalizados (AMIDI) e, basicamente, é essa a sua grande luta, à qual também me associo, também sou sócia desta associação e colaboro ativamente. De acordo com o decreto-lei, só é obrigatório ter um enfermeiro e nem precisa de ser 24 horas. Tive oportunidade de acompanhar o Professor Gorjão Clara ao Ministério para falar sobre estas dificuldades e alertar para este problema, que tem imensas consequências. Os lares são vistos como depósitos de doentes idosos, e não deveria ser assim. O lar é visto como uma coisa negativa porque, efetivamente, os cuidados que aí são prestados não são os ideais para uma população idosa que precisa de se reabilitar, quer seja física, quer seja cognitivamente. O idoso tem que estar integrado num ambiente social adequado; não é para estar sentado a ver televisão; nem é para estar parado, sedado ou, às vezes, até mesmo imobilizado. Tudo isto são problemas graves das ERPI que têm que ser discutidos e falados abertamente.
Quando falámos disto, o que nos foi dito no Ministério, um pouco informalmente, foi que isso vai encarecer o preço dos lares, e os preços dos lares já são tão altos, que não é suportável para as famílias. Eu reconheço esta dificuldade e sem dúvida que isto é um problema, mas temos que arranjar uma alternativa para superar isto. Há agora uma via verde do doente idoso frágil do Serviço de Urgência do Hospital de Santa Maria que pretende fazer esta articulação com as ERPI e tentar evitar que o doente vá à urgência sofrer a iatrogenia que é agravada nesse serviço. Sem dúvida nenhuma que os lares precisam de ter, pelo menos, um médico de contacto que vá lá, pelo menos, uma vez por semana para poder fazer uma avaliação precoce aos doentes, idealmente proativa, portanto, evitar que eles descompensem ou apanhá-los numa fase inicial da descompensação para que não tenham as consequências médicas de um ambiente hospital.
Num contexto preventivo, também seria fundamental ter a presença de um médico porque, naturalmente, não podemos ter a expetativa de que os cuidados de saúde primários consigam dar resposta a todas as necessidades dos doentes institucionalizados em lar, que ainda por cima muitas vezes têm uma morada que não é a do lar e, portanto, estão alocados aos cuidados de saúde primários de outro local. Honestamente, perante a quantidade de dificuldades que vejo pela presença de um médico no lar, parece-me difícil, nesta fase, estarmos a equacionar a hipótese de ter médicos com competência em geriatria. Que isso seria uma mais-valia e faria toda a diferença não tenho qualquer dúvida, mas, infelizmente, em Portugal – e, na verdade, isto é uma carência mundial –, os geriatras são muitíssimo poucos. Vai haver a necessidade de serem outros médicos, com um treino básico em geriatria, a prestarem cuidados aos doentes idosos também, posteriormente com a orientação e com o apoio dos geriatras, naturalmente.
HN – No caso da pediatria, houve uma aceitação mais fácil de que a criança é um indivíduo com necessidades específicas?
MA – Foi um caminho mais precoce, porque no tempo em que a pediatria foi criada as pessoas viviam até aos 50, 60 anos, nem chegaria bem a existir a velhice que nós conhecemos agora. As pessoas morriam de doenças infectocontagiosas precocemente e ainda mantendo a sua autonomia e sem as complicações que nós atualmente conhecemos do envelhecimento. Mas, agora, acho que o caminho da geriatria vai ser semelhante ao da pediatria. Da mesma maneira que existe nos cuidados de saúde primários um plano de saúde infantil, deveria existir um plano de saúde do idoso. Seria fundamental essa prestação individualizada de cuidados. Da mesma maneira que todas as crianças têm um pediatra, se calhar, todos os idosos, idealmente, deveriam ter um geriatra. Ainda faço mais um paralelismo neste contexto, que é o ambiente hospitalar. Temos hospitais que lutam por ser hospitais reconhecidos como amigos da criança ou amigos do bebé, no entanto há poucos hospitais a tentarem ser amigos dos idosos, sendo que mais de 90% dos doentes que lá estão internados são, seguramente, idosos. E, portanto, há todas estas diferenças, mas eu acho que o caminho vai ter que ser o mesmo.
HN – As quedas são um exemplo de uma situação que é diferente e mais complexa no idoso. Como é que podemos preveni-las e, quando elas acontecem, como é que o idoso deve ser acompanhado?
MA – As quedas no doente idoso são um evento trágico. Um doente idoso que cai é sempre um evento grave e, portanto, como disse, nós queremos preveni-lo a todo o custo. A prevenção das quedas é multifatorial, porque nós mantermos o nosso ortostatismo é um resultado de ações de vários órgãos e sistemas, portanto, é preciso ver bem, é preciso ouvir bem, é preciso reconhecermos onde é que está o nosso corpo, é preciso, idealmente, termos a sensibilidade mantida, e, portanto, há condições intrínsecas do doente a que devemos estar atentos para tentar minimizar o risco de queda. Mas, depois, também há aquelas extrínsecas ao doente: há as questões das barreiras arquitetónicas, como por exemplo os tapetes, vasos decorativos no chão de domicílio, fios elétricos em locais de passagem, até a calçada portuguesa pode ser promotora de quedas; mas também os sapatos, a roupa do doente, os medicamentos que o doente está a fazer. Há medicamentos que aumentam brutalmente o risco de queda, e é preciso reavaliar isso e ver se os doentes precisam mesmo de os tomar. Se forem medicamentos essenciais, temos que deixar este alerta ao doente: aumenta o risco de quedas. Ainda neste contexto dos medicamentos, temos aqueles que estão relacionados com as alterações da pressão arterial. As hipotensões também são causas de quedas que podem ser prevenidas e têm que ser avaliadas. Portanto, falando de prevenção, há uma série de estratégias de educação do doente, de otimização clínica, de treino do doente. Quanto mais ativo for o nosso doente, melhor. Um doente que faça caminhadas diárias, que não esteja muito tempo parado, deitado ou sentado a perder músculo, está mais protegido.
Num doente que já teve quedas, um dos fatores básicos de avaliação é o doseamento da vitamina D e deve fazer suplementação com vitamina D se houver défice, porque isto diminui o risco de quedas. E, portanto, há todo um conjunto de medidas farmacológicas e não farmacológicas que têm de ser implementadas para prevenir as quedas.
Respondendo à segunda parte da pergunta, após uma queda, é fundamental perceber porque é que o doente caiu, precisamos de saber quais foram as consequências dessa queda, se teve fraturas ou não, e deve gerar uma avaliação global do doente, que não precisa de ser feita em contexto de internamento, mas, pelo menos, deve ser feita em contexto de consulta, precocemente, para evitar que tenha uma segunda queda. Porque se caiu uma vez e tudo continuar igual, é muito possível que volte a cair mais vezes.
HN – Essa forma de acompanhamento é aquela que está estabelecida no nosso país ou há muitos doentes que não são avaliados com tanto detalhe e atempadamente?
MA – Infelizmente, não. A maior parte dos doentes ainda não tem o encaminhamento necessário, porque também há escassez de resposta nesse sentido. O ideal seria os doentes serem encaminhados para consultas de geriatria ou consultas de medicina interna com elementos com formação em geriatria, ou, pelo menos, uma carta de sensibilização ao médico de família para que possa fazer uma avaliação.
A estratégia que a Organização Mundial de Saúde recomenda, que é a estratégia ICOPE, de avaliação integrada do nosso doente, foca muitos destes fatores (não tanto num evento após quedas; idealmente seria mais preventivo): a questão da nutrição, do equilíbrio, da parte cognitiva e emocional, que também é muito importante para o risco de quedas e que eu ainda não tinha referido. É uma das estratégias de prevenção, que também ainda não está implementada no nosso país, mas que seria uma mais-valia para prevenir, não só as quedas, mas todos os eventos associados ao doente idoso e à sua perda de funcionalidade.
HN – No cuidado ao idoso, há algum outro desafio ou alguma outra área que também deva ser priorizada pelo novo executivo?
MA – O cuidado ao idoso implica que haja formação. A formação é o elemento básico e inicial. Temos também outra área que está relacionada com isto, que são as unidades de ortogeriatria, que deveriam ser generalizadas e, na verdade, deveriam ser obrigatórias em todos os hospitais. Na Alemanha, os hospitais com serviços de ortopedia só podem operar se tiverem um geriatra, caso contrário não estão reunidas as melhores práticas e os seguros recusam-se a pagar porque sabem que vão ter mais complicações naquele hospital que não tem geriatra. Eu acho que esta é uma área crítica, com mais do que demonstração efetiva na literatura do benefício das unidades de ortogeriatria para o tratamento dos doentes com fratura da extremidade proximal do fémur. Sabemos que estes doentes com fratura morrem mais e perdem a sua autonomia, que é tudo o que nós não queremos. Nós somos um país, como disse no início, com grande taxa de envelhecimento, mas o problema não é os nossos idosos viverem muitos anos – isso é uma coisa boa –, mas sim 2/3 do tempo em que estão vivos após os 65 anos serem passados com perda de autonomia, com menos qualidade de vida. E não é isso que nós queremos, nós queremos inverter isto.
Entrevista de Rita Antunes
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