“As civilizações envelhecem; as barbáries renovam-se”
Andrés Rabago Garcia

O espectro de variedade cultural nos EUA é de tal modo alargado que atinge o paroxismo, como, seguramente, em mais sítio nenhum. A diversidade cruza domínios tão diversos, dos quais estava apenas excluído, até há pouco, o status político, que se movia entre os limites relativamente estreitos da democracia liberal representativa. Pelo menos a nível federal, já que ao nível dos estados a conversa é outra. O ambiente de liberdade de pensamento era levado muito a sério entre os americanos e permitiu um progresso notável no domínio científico e tecnológico, que catapultou o país para a vanguarda e lhe proporcionou prestígio e poder a nível internacional. Curiosamente, por outro lado, e fazendo jus à tal diversidade, os EUA têm um histórico de obscurantismo científico colossal, que desabrochou com as catastróficas consequências que se desenham. Em 1897, no estado do Indiana, um pensador “fora da caixa” resolveu “reinventar a pólvora”: nada menos que uma versão alternativa para o número Pi! A coisa foi levada tão a sério que acabou por ser aprovada na câmara baixa do parlamento estadual, já que a intenção (pasme-se!) era dar-lhe força de lei. A tolice desvaneceu-se quando alguém sugeriu a consulta da Academia (num tempo em que os políticos americanos respeitavam os académicos). Em 1987 o Supremo Tribunal dos EUA decidiu proibir o ensino do creacionismo (quando o Supremo era independente e nos EUA havia efetiva separação de poderes). A teoria da Terra Plana tem milhões de adeptos no país do tio Trump. Enfim! Poderíamos citar outras tantas estultícias bizarras, mas recordemos apenas os movimentos antivacinas, que, como é sabido, conseguiram nomear para secretário da pasta da saúde alguém tão boçal e impreparado como R. Kennedy Junior.

A longo de meio século de vida profissional, conheci variegados ministros da saúde. Alguns com pouca sensibilidade ou aptidões reduzidas para o cargo, uma até nem escondeu a sua antipatia pela classe médica. Mas, nunca nenhum caiu no ridículo de tentar ensinar medicina aos médicos, como este tosco Júnior. Dificilmente, em qualquer obscuro estado falhado das profundezas de África, um personagem mais desadequado para arcar com responsabilidades governativas idênticas às que este incompetente assumiu. Sendo público o seu passado de abuso de estupefacientes, é lícito interrogarmo-nos: mantém o consumo ou são as sequelas que justificam o chorrilho de disparates que debita de forma alucinante? E o que mais choca é que este inapto foi confirmado para tão importante cargo pelos senadores republicanos, autênticos papagaios acéfalos (sem ofensa para os psitacídeos). Veja-se onde chegou a subserviência e irresponsabilidade dos representantes do povo da mais poderosa nação à face do planeta!

Segundo a edição de 15 do corrente do New York Times, o surto de sarampo soma e segue: ultrapassou os 600 casos, de que resultaram já três mortes, nomeadamente duas crianças (não vacinadas, claro), perto de sessenta internamentos e, como brinde tem havido casos de intoxicação por vitamina A a necessitar de assistência hospitalar. É que as estrelas ascendentes chamadas a lidar com esta epidemia são dois charlatães que promovem o óleo de fígado de bacalhau como a “bala de prata” para a cura o sarampo e defendem que “Deus forneceu a doença como meio de vacinação”!

Entretanto, o “prócere”, em entrevista à NBC admitia desconhecer que dez mil funcionários do seu próprio departamento de saúde, do CDC e FDA tinham sido despedidos (1). Outros tantos despediram-se por discordância da nova orientação estratégica do CDC: nada mais que reavaliar a relação vacina/autismo, ou seja, martelar os dados até conseguirem reescrever a farmacologia, microbiologia e epidemiologia. Algo semelhante à falsificação de Lyssenko, que tentou reescrever a biologia! Recuando quase um século, é notório o paralelismo com o tal Lyssenko, fundador da “biologia proletária”, durante a nebulosa era estalinista. Tanto mais quanto ambos têm em comum a negação da genética. Nas suas declarações públicas, Junior não hesita em falsear a verdade de forma escandalosa (2). Elegeu como menina dos seus olhos o autismo e decidiu já que a hereditariedade não tem qualquer papel na patogénese da doença. Por isso deu ordens para que se procurem os tóxicos responsáveis pela doença, fazendo tábua rasa do que se sabe neste domínio (3). Nem de propósito: artigo recente da Medscape levanta suspeitas sobre a possível associação de diabetes 2 materna (não a diabetes gestacional) e às perturbações do espectro do autismo (4).

Todavia, se observarmos com mais atenção o que vai pelos os EUA nos dias de hoje, a URSS de Estaline não será o melhor termo de comparação. Os dirigentes comunistas foram suficientemente sensatos para não interferir com algumas áreas científicas, como sejam a matemática e a física. Não descoraram a formação de excelentes cientistas nestas áreas, o que lhes permitiu, por exemplo, manter a URSS na vanguarda da exploração espacial por mais de uma década. Contudo, no país de Trump: a recente investida contra universidades e centros de investigação científica (onde os americanos são pioneiros e indispensáveis atores para benefício próprio e de toda a humanidade) não poupa quaisquer áreas do conhecimento e é cega, insensata. Estas caraterísticas diferenciam-na do modelo soviético e assemelham-no mais com a Revolução dita “Cultural” ocorrida na China de Mao e com a sua arremetida obscurantista contra tudo o que fosse ciência ou humanidades. Nem a proveta e riquíssima tradição filosófica chinesa foi poupada.

Estes acontecimentos além Atlântico, vêm corroborar a advertência bem conhecida segundo a qual não podemos ter nada como adquirido, nem a civilização. Aliás, não é inédito. Huang Di, fundador do Império Chinês no século III AC, mandou exterminar os intelectuais e sábios. O imperador Teodósio, nos finais do século V, na sua senha contra o paganismo, reprimiu o conhecimento, perseguiu as escolas filosóficas que não fossem cristãs (isto é, virtualmente todas) e mandou arrasar e enterrar o estádio de Olimpo. A Omar I, em 647, é atribuída a responsabilidade do incêndio da biblioteca de Alexandria. Os sacerdotes espanhóis encarregaram-se, no século XVI, de levar a cabo o genocídio cultural das civilizações mesoamericanos. O nazismo foi responsável por queima de livros e êxodo de cientistas e intelectuais. O macartismo perseguiu intelectuais nos EUA, na primeira metade dos anos 50. Chegou a vez do MAGA de Trump.

Mas se Kennedy é o rosto da ignorância e da grosseria, já o vice Vance incarna a face violenta e fanática do obscurantismo MAGA. Evoca o inquisidor Torquemada ou o exterminador dos cátaros, Simon de Monfort.

https://www.medscape.com/s/viewarticle/study-strengthens-link-between-maternal-diabetes-and-autism-2025a10008c7?ecd=WNL_mdpls_250415_mscpedit_fmed_etid7362660&uac=113723MT&spon=34&impID=7362660