O senhor João tem um burro. Há quem diga que é burro, o senhor João, por andar um burro, que não o João, a transportá-lo pela cidade. Ele não se importa desde que o transporte das batatas seja pontual. Chamou João ao burro, para uniformizar a coisa. Evita a superioridade de um e quando os chamarem, olham os dois. Fê-lo por uma questão de tempo, para o economizar. Ter de decidir quem é que olha em função de um nome, desperdiça-lhes preciosos minutos e tem horários a cumprir. Ele sabe que anda demasiado depressa dentro das localidades. Já o avisaram que o burro não é novo e arrisca-se a ficar a pé.
O senhor João vive das terras. Não tem registo biométrico mas é um exímio trabalhador e não precisa dessas modernices para saber a que horas tem de se levantar. É um profissional como há poucos, mas ele não quer saber disso. Nesta sua correria com o burro dentro das localidades, foi mandado parar pela Autoridade Tributária e pela GNR. Pelos vistos, estavam a interceptar condutores com dívidas às Finanças, convidavam-nos a regularizar a situação, forneciam-lhes a oportunidade de pagar e, no caso de não terem condições, eles estariam em condições de penhorar a viatura. O senhor João agradeceu logo a amabilidade. Quem "convida" e dá "oportunidades" só pode ser alguém que lhe quer bem e o senhor João não esquece isso.
Haja alguém que meta ordem no País, para não se cair no facilitismo de achar que os Salgados ou Berardos desta vida é que mandam nisto
Não pôde deixar de ficar intrigado. Como é que sabiam que estava em incumprimento se nem ele fazia ideia? Informaram-no que tinham um sistema informático montado em mesas estacionadas numa rotunda (mas não pagaram multa por cumprirem aquela lei que está acima da lei, sabem?) que cruzava os dados das matrículas com a existência de dívidas ao fisco. O João não era burro, nem o burro do João o era. Percebeu de imediato que, se o jerico não tinha matrícula e só tinha as batatas, a Autoridade Tributária e a GNR tinham-lhe identificado os tubérculos e isso era, única e exclusivamente, ver o seu trabalho reconhecido.
O senhor João não parava de enaltecer a iniciativa. Haja alguém que meta ordem no País, para não se cair no facilitismo de achar que os Salgados ou Berardos desta vida é que mandam nisto.
A autoridade tentou ver o que levava nos sacos e o senhor João ia desinteressadamente mostrar os tubérculos, quando se lembrou que o relatório do Banco de Portugal relativo a instituições de crédito que recorreram a fundos públicos não divulga os nomes dos grandes credores da banca, para proteger o financiamento da economia e a estabilidade financeira. Fechou de imediato os sacos e, até hoje, ninguém soube se levava batata nova ou batata velha.
Em 75 anos de vida, nunca tinha visto uma operação stop ser mandada parar
O senhor João foi convidado a regularizar a sua situação, sendo-lhe dada a oportunidade de pagar a dívida. Depois de um sentido agradecimento, o João (que não o burro, o outro) disse ser impossível, dado que nunca anda com muito dinheiro por causa dos assaltos, longe de pensar que era a autoridade que o faria à mão armada. Foi informado de que lhe iriam penhorar o burro. Com tamanho desgosto, o senhor João perguntou se isto era caso único no país, ao que lhe terão dito que já houve, pelo menos, outras duas operações deste tipo este mês: uma na Trofa e outra em Santo Tirso. Certo é que em nenhuma delas conseguiu interceptar os presidentes das câmaras de Santo Tirso, Barcelos ou o Presidente do IPO do Porto, muito provavelmente porque as viaturas não serão destes influencers do norte. Uma coincidência, portanto.
Quando estava prestes a ter o seu burro penhorado, soube que o Secretário de Estado tinha mandado parar a operação stop. Em 75 anos de vida, nunca tinha visto uma operação stop ser mandada parar. Diz, com pena, que não ficou para ver pedir os documentos, soprar ao balão ou penhorar-lhes a dignidade.
Enquanto seguiam viagem, despediram-se todos do João. Olharam os dois. É que o João não é burro, por vezes tem é um país que o quer fazer ser.
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