“A guerra é assim mesmo, como na minha ficha dizia que eu tinha alguma prática de psiquiatria, de repente, no meio daquilo tudo, recebo uma ordem para me apresentar ao diretor do hospital, que era um tenente-coronel médico”, contou o patologista, em entrevista à Lusa.
O responsável confrontou-o com a informação inscrita na ficha pessoal: “O colega tem aqui uma coisa a dizer que chegou a andar em psiquiatria”.
Germano de Sousa confirmou, mas alertou que não era psiquiatra. Em vão. Os dois psiquiatras de serviço na unidade tinham viajado para Lisboa para acompanhar um grupo de doentes psiquiátricos militares e a decisão do superior hierárquico foi atribuir ao jovem médico a tarefa de “tomar conta da psiquiatria do hospital”, sob a recomendação “tenha paciência”.
“E lá fui para o hospital psiquiátrico militar. Aquilo estava realmente cercado de muros altos, teoricamente só se podia entrar por uma porta onde havia guardas. O primeiro dia lá correu, o segundo dia lá correu, ao terceiro tinham fugido um doente ou dois doentes”, recordou.
Depois de questionar como seria possível alguém fugir daquele lugar, chegou naturalmente a resposta de alguém familiarizado com a situação – “Ah, doutor, é que lá atrás há um buraco por onde eles fogem”.
Suturada a brecha que permitia a fuga, os dias prosseguiram com outras dificuldades, que levam o médico a considerar o mês que lá passou como o “mais difícil e complicado” que viveu.
“Dei por mim à frente de um hospital psiquiátrico, com algum treino, porque felizmente tinha passado por onde passei em Coimbra e a partir daí…aquilo era quase uma loucura lá dentro, porque os doentes pegavam-se uns com os outros, não havia capacidade de conter aquilo”, admitiu.
“De vez em quando pegava em dois, três doentes daqueles, metia-os nas celas, iam para as celas, fechava-se a porta, há de ser o que Deus quiser! E foi assim que me aguentei naqueles dias de loucura, em que, ainda por cima, tinha de dar consultas de psiquiatria a esposas de militares, que também andavam perturbadas com tudo aquilo. E eu, sozinho, passei as passas do Algarve. Fui louvado pelo que fiz, mas passei as passas do Algarve”, garantiu Germano de Sousa.
Deu “graças a Deus” quando os psiquiatras regressaram da metrópole e voltou ao Luso, onde estava colocado. “Era uma cidadezinha engraçada toda cheia de arame farpado, onde estava um hospital civil e um militar”, na descrição do patologista. Entre 10 a 11 médicos, ao todo, atendiam tanto a população militar, como civil.
Chegava a dar “para cima e 150 consultas” de clínica geral por dia, muitas com recurso a uma interprete para conseguir perceber as queixas da população que se expressava em dialeto. “Era uma coisa de loucos”, afiançou.
No regresso ao Luso, deparou-se com a mulher, que entretanto tinha viajado para Angola, prestes a ter bebé.
“A minha mulher – entretanto eu tinha casado e chego lá e ela deu-lhe a saudade – apareceu-me lá grávida de seis meses da minha primeira filha”, referiu.
Aproximava-se o natal e as habituais licenças, pelo que começou a ficar preocupado. “O único colega que percebia de obstetrícia era o delegado de saúde, que também tinha ido de férias.
“Havia as parteiras, eu tinha feito alguns partos durante o estágio, porque em Coimbra não se passava a cadeira de obstetrícia, nessa altura, sem a gente fazer seis partos, era tudo muito diferente do que é agora, e eu fiz alguns partos até enquanto estive em Tomar”, relatou, ao recordar o tempo em que fez a preparação militar antes de seguir para Angola, no final dos anos 60.
Acabou por ser “o parteiro” da filha.
Para trás ficaram outras histórias, como as viagens no rebenta minas, das quais saiu ileso e os únicos disparos de Walther que teve de fazer quando se encontrou debaixo de fogo. “Espero não ter matado ninguém, penso que não”.
Das várias situações de guerra a que teve de acorrer guarda na memória as autópsias que teve de fazer a amigos e a queda de um helicóptero junto ao hospital, num acidente menos trágico e para o qual havia alertado das enormes probabilidades de ocorrer.
“Os tipos das transmissões também eram malucos. Resolveram pôr uma antena ao pé do heliporto. A gente tinha lá ao pé da enfermaria uma zona onde os helicópteros com feridos pousavam e os tipos das transmissões resolveram pôr uma antena ali relativamente perto, mesmo muito perto, e eu até perguntei a um deles ´Eh pá se amanhã vem um helicóptero e há uma rajada de vento, o tipo dá aí com essa coisa e vai-se´”, explicou.
A resposta foi que estava “tudo controlado”.
“Passou um tempo e um dia sou chamado: ´Ai doutor que desgraça, ó doutor venha, caiu um helicóptero´”.
O médico percebeu de imediato o que tinha acontecido. “Com o vento, tinha batido no raio da antena das transmissões, estatela-se no chão e vou imediatamente ver os feridos, trazia um ferido, já tinha recebido a informação no rádio”, precisou.
Chegado ao local, deparou-se com o comandante do aparelho com uma perna partida. Foi retirado de maca para o hospital. O copiloto também estava “magoado” e foi igualmente retirado.
“Depois começamos a ver, então e o ferido? E o tipo, no meio daquele circo, estava a ver o desastre, disse – O ferido sou eu. Vinha deitado, não sofreu praticamente grande coisa, conseguiu arrastar-se para o lado”, conclui.
Germano de Sousa viajou para Angola a bordo do navio “Vera Cruz”, na companhia do também médico e músico José Niza, numa viagem que durou cerca de 12 dias, depois de alguns meses de preparação militar em Mafra (1968), e em Tomar. Seguiu para Abrantes para se integrar na companhia que seguiria para Angola, desconhecendo então o destino.
Regressou a Portugal em 1971, tendo finalmente concorrido ao internato que lhe havia sido vedado pela PIDE quando concluiu o curso de medicina e optou pela especialidade de patologista que ainda hoje desenvolve.
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