Estacionando na letra Z no dicionário de língua portuguesa lemos que Zunzum é rumor, zunido, mexerico. Em suma, palavra com tendência para alguma inquietude. Em Lisboa, Zunzum é desde agosto deste ano, lugar de comeres portugueses, o novo restaurante da chefe de cozinha Marlene Vieira. Sem passar a rasteira à palavra que lhe está no berço, este Zunzum da mulher que se fez a pulso na cozinha, não é casa para se acomodar a uma ementa confortavelmente refastelada no porto de abrigo da mesa lusa.

Sem faltarem à chamada na carta, as amêijoas, o berbigão, o choco, o porco alentejano, o polvo, o novilho, Marlene Vieira ginastica-os em pratos com a sua dose de volte-face. Porque não umas salsichas de choco e camarão? Ou uns filhós de berbigão à Bulhão Pato? Ou uns milhos fritos, a acompanhar uma presa de porco preto grelhada? A todas as sugestões, Marlene Vieira responde com um “sim” na carta do seu novo Zunzum e junta-lhe um elenco com perto de 20 pratos das entradas aos principais. As sobremesas são, no restaurante instalado no Terminal Internacional de Cruzeiros de Lisboa, um mundo à parte, pensadas e laboradas para integrar aquele que seria o primeiro “dessert bar” do país. Um sexteto guloso que nos oferece Arroz Doce (5 euros) com uma textura inusitada, Enrolado de ananás dos Açores (5 euros) e Papos de Anjo e hortelã (6 euros).

Há Zunzum em Lisboa e a culpa é da chefe de cozinha Marlene Vieira
Tarteletes de bacalhau J.M.A.

Marlene Vieira não quis somente dar-nos Zunzum, também o fez Gastrobar (está no nome de batismo da casa), com um périplo largo na carta de cocktails com e sem álcool. Tal como a congénere dos comíveis, os bebíveis navegam em carta náutica de ingredientes portugueses, como medronho, aguardente de cana da Madeira, Porto Tawny, Vinho Madeira. Bebidas a casar em sugestões como um “Bombarral Oeste” (onde não falta redução de pera bêbeda/11 euros), “Tique-taque” (com Porto Grahams Tawny 10 anos/13 euros), “Ronaldini” (numa alusão ao nosso craque de futebol de origem madeirense e que escusa menção ao nome/10 euros) ou um  “São Miguel 1996” (6 euros), o cocktail que experimentamos nesta visita ao Zunzum e onde cabe sumo de limão, xarope de gengibre, ananás dos Açores, cardamomo negro e hortelã.

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Filhós de berbigão à Bulhão Pato. créditos: Zunzum Gastrobar/Chefs Agency

Zunzum é palavra que também mexe, tal como a vida e, com ela, a reviravolta que o nosso destino comum tomou no início de 2020. A COVID-19 alterou-nos os calendários. A Marlene Vieira, adiou-lhe por meses a abertura do restaurante que acumula com o espaço que gere no Mercado da Ribeira em Lisboa. Uma capital ainda em modo adormecido mesmo aqui, à beira Tejo, com a estação de Santa Apolónia, o Museu Militar, o Museu do Lactário e todo o casario da cidade antiga a emoldurarem a vista ampla que se tem a partir do restaurante.

A chefe de cozinha, com carreira feita em Portugal e nos Estados Unidos, recorda-nos um capítulo da sua vida que teve de reescrever: “em março preparava-me para abrir o Zunzum e, ao mesmo tempo, o meu restaurante de fine dining, o Marlene. Deu-se o que sabemos e tive de aguardar”. Por agora o Marlene, que ocupa espaço contíguo ao Zunzum, mantém-se em suspenso. A chefe de cozinha não nos aponta data para a abertura da casa onde quer fazer mostra de toda a sua maturidade na cozinha. “No passado, antes de me dedicar ao fine dining era muito acelerada”, confessa Marlene com boa disposição.

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A sala do Zunzum Gastrobar acomoda 48 pessoa, mais dez ao balcão. créditos: Zunzum Gastrobar/Chefs Agency

Ainda sem o seu Marlene de portas abertas, no Zunzum Gastrobar, a mulher nascida em 1981, na Maia, espraia os seus dotes culinários, descobertos quando jovem, aos 12 anos, num restaurante da sua região natal. “Nada fazia crer que teria carreira na cozinha. Adorava desporto e não ligava à cozinha. O meu pai tinha um negócio de carne e eu, nos tempos livres, ajudava-o. Certo dia, vou fazer uma entrega ao restaurante Costa Brava e não havia ali aquele caos que via noutras cozinhas. Havia uma equipa, alguém que comandava, pessoas a trabalharem nas suas secções”. Aquele dia mudou o rumo de vida a Marlene Vieira. Iniciou-se nos pratos no Costa Brava, frequentou a Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira, fez carreira em restaurantes de hotel, num estabelecimento português em Nova Iorque, lançou-se em negócio próprio, apaixonou-se pelos comeres portugueses e pela doçaria nacional. Não esquece episódios como os “seis meses a ensinar a um chefe de pastelaria francês as caldas de açúcar. Não as conseguia perceber [risos]. Mas aprendi com ele, por exemplo, a identificar com os dedos a densidade dos gelados”. Marlene mimetiza em gestos a técnica para tomar a textura dos gelados.

Zunzum Gastrobar
Arroz de pato. créditos: Zunzum Gastrobar/Chefs Agency

Da mesa que ocupamos temos vista para a sala ampla (com 48 lugares sentados, acrescidos de dez lugares ao balcão), com paredes feitas de enormes vidraças para o exterior. A decoração apresenta-se despojada, com apontamentos de vermelho, por entre o cinza do aço escovado. Tal como na carta, “com produtos nacionais, do dia e da estação”, como nos relta a anfitriã, tudo o que marca a identidade do restaurante é português: mesas de mármore, cadeiras de madeira, louças. Até mesmo os robustos guarda-sóis que emolduram a esplanada de 37 lugares são fabrico nacional e descobertos por Marlene.

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A Corvina a protagonizar o prato do dia. créditos: J.M.A.

A chuva miudinha que teima sobre Lisboa no dia desta nossa visita, “empurra-nos” para a sala do restaurante. A mesa pede aconchego. Este chega sob a forma de uns Chips de peixe (couvert inclui ainda pão, brioche, manteiga e pasta de chouriço/5 euros) que não ficam a dever ao estaladiço; umas Tarteletes de bacalhau (duas unidades 9 euros); uma retemperadora Feijoada de carabineiro, nutrida de feijão branco, enchidos e coentros (21 euros); Filhós de berbigão à Bulhão Pato, com creme daquele bivalve, apaladado com coentros e limão (duas unidades por 9 euros).

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Enrolado de ananás dos Açores. créditos: Zunzum Gastrobar/Chefs Agency

O prato do dia também não falta à chamada de uma mesa com apontamentos internacionais, aqui representada numa Corvina confitada, regada com caldo Nage. Nas carnes, representação entregue à Espetada de porco preto grelhada, milhos frutos, ketchup de pimento picante, salada de legumes e pickles (duas unidades por 12 euros).

Zunzum Gastrobar

Edifício Norte, Doca do Jardim do Tabaco, Terminal de Cruzeiros de Lisboa

Contactos: tel. 210 500 347

Palatos mais dados ao rol clássico encontram nesta carta do Zunzum Gastrobar a Francesinha (12 euros), o Arroz de pato (10 euros) ou uma Salada do dia (7 euros), com os vegetais a chegarem diretamente do mercado. Não perderão, contudo, estes apetites menos afoitos em navegarem por uma Carbonara de aipo, com esparguete do mesmo, legumes da época assados e molho carbonara (10 euros), ou por uns Ovos com ervilhas e farinheira, aqui em versão Holandês de farinheira, crumble e estufado de ervilhas (9 euros).

Há inquietude em Marlene Vieira. O restaurante está com uma boa sala de clientes para o almoço. A cozinha vive o afã da equipa que pede a presença da comandante. “Gosto disto, do trabalho em equipa, com estratégia, algo que não se via no passado nas cozinhas”. Tudo tem o seu tempo e lugar.