
O que se altera no cérebro quando nos apaixonamos? E quando sofremos um desgosto amoroso? Existem diferenças biológicas entre homens e mulheres na forma como experienciam o amor? A neurocientista Luísa V. Lopes aborda estas e outras questões no livro Programados para Amar, uma edição da Contraponto. Uma obra prefaciada pelo psiquiatra Júlio Machado Vaz.
Investigadora na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e na Fundação Gulbenkian de Medicina Molecular, Luísa V. Lopes dedica-se ao estudo do envelhecimento cerebral, mas tem-se destacado também na divulgação científica. Neste livro, parte de evidência neurobiológica para explicar os mecanismos cerebrais associados à paixão, ao apego, à infidelidade e à perda amorosa.
Na presente entrevista, a investigadora aborda questões como plasticidade cerebral, circuitos neuronais ligados ao afeto, diferenças culturais na forma de amar, e o impacto da tecnologia nas relações. A conversa percorre ainda temas como a expressão emocional nas várias fases da vida, o papel da terapia de casal à luz da neurociência e as fronteiras entre amor e ódio na atividade cerebral.
Procuramos decifrar o amor através de poemas, canções, filmes, diagnósticos e silêncios. O seu livro explica-nos esse mesmo amor com sinapses, dopamina e plasticidade cerebral. O que a levou, como neurocientista, a aventurar-se neste território?
Como neurocientista, tenho sempre bastante curiosidade e interesse acerca do modo como funciona o cérebro, seja qual for o tema, e sobretudo como pode ter impacto nas relações humanas. A ideia original partiu da Editora Contraponto após ler uma entrevista minha, onde comentava um estudo de neuroimagem cerebral que analisava a possibilidade de alguns casais sentirem desejo e afeto mesmo após 20 anos de relacionamento. Percebemos que era um tema que interessava a muita gente, recebi muitas perguntas nessa altura e teve uma visibilidade inesperada.
Embora a minha área de trabalho seja a neurobiologia do envelhecimento e o impacto na função cognitiva, a ideia de explorar este tema para divulgação ao público pareceu-me muito interessante. Por outro lado, quando participei no podcast [In]Pertinente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o episódio que gravámos sobre a neurobiologia do amor foi um dos mais ouvidos e estimulou ainda mais esta ideia. Também me atraiu poder escrever de uma forma mais criativa do que faço na vida profissional, que tem de ser obrigatoriamente uma escrita mais rigorosa e objetiva. Neste formato posso explorar o lado sociológico, mais anedótico e ainda incorporar as minhas impressões pessoais, mesmo a descrever estes processos de forma científica.
Mais do que um fenómeno de mimetismo induzido pela literatura ou pelo cinema — as famosas “borboletas no estômago” ou as insónias de amor —, o seu livro sublinha que o enamoramento implica alterações neurobiológicas reais. Pode, de forma sucinta, descrever essas alterações?
Sim, essas alterações são exploradas nos dois primeiros capítulos. De forma resumida, o enamoramento ativa fortemente o sistema de recompensa cerebral, particularmente regiões como o núcleo accumbens e a área tegmental ventral, que libertam dopamina — a “hormona do prazer” — gerando sensações de euforia e motivando a proximidade com o parceiro. Ao mesmo tempo, há uma diminuição da atividade no córtex pré-frontal, o que pode justificar algumas decisões impulsivas e a idealização do parceiro. A amígdala e o hipocampo também participam, reforçando o vínculo emocional e criando memórias afetivas associadas ao outro.
Estudos com neuroimagem funcional (fMRI) demonstram que, mesmo em relações duradouras, continua a observar-se ativação em áreas cerebrais associadas à recompensa e ao apego, sugerindo que, em algumas pessoas, o amor mais duradouro pode manter componentes neurobiológicos semelhantes aos da paixão inicial.
Estas mudanças no padrão cerebral seguem um padrão mais ou menos universal, ou variam significativamente de pessoa para pessoa? Fatores como a idade ou o historial emocional alteram a forma como nos apaixonamos?
Embora as áreas ativadas sejam as mesmas e se consigam ver padrões muito conservados, a amplitude desta ativação depende de características individuais biológicas, quer genéticas quer de estrutura cerebral, influenciados pela idade, pelo estado emocional, pelo sistema endócrino, entre outros.
Parece-me legítimo especular que alterações culturais têm um impacto no funcionamento de algumas áreas do cérebro a longo-prazo, sobretudo na forma como as emoções e os impulsos são vividas.
O amor tem expressão neurológica. Mas até que ponto o contexto cultural em que vivemos modula a forma como o cérebro experiencia o amor? Mudam os circuitos, ou apenas a forma como os expressamos?
Essa é uma questão que me intrigou e um dos capítulos é exatamente dedicado a esse tema. Embora sejam estudos difíceis de padronizar, dos quais é sempre difícil tirar conclusões indiscutíveis, estas áreas cerebrais e padrões de ativação cerebral são muito semelhantes. Mas há depois bastantes subtilezas no comportamento que daí resulta, que derivam de condicionantes culturais que modulam por exemplo o córtex pré-frontal, uma das regiões mais evoluídas do cérebro humano e que desempenha um papel crucial no condicionamento social e cultural. A sua principal função, nesse contexto, é permitir que ajustemos o nosso comportamento com base em normas sociais, valores culturais e expectativas do ambiente social.
Sendo assim, parece-me legítimo especular que alterações culturais têm um impacto no funcionamento de algumas áreas do cérebro a longo-prazo, sobretudo na forma como as emoções e os impulsos são vividas em realidades culturais diferentes. Basta pensar que a ideia de amor romântico, trovadoresco, é muito recente, começou durante a Idade Média, especialmente nos séculos XII e XIII, por exemplo e condiciona a forma de comportamento nas relações que antes não existia.
O padrão cerebral que se ativa no chamado “amor romântico” é distinto daquele que se ativa no amor parental, fraternal ou de amizade profunda? Há circuitos próprios para cada forma de amar?
Sim, os estudos de neuroimagem indicam que diferentes formas de amor ativam redes cerebrais parcialmente sobrepostas, mas também distintas. No amor romântico, há uma ativação marcante do sistema de recompensa — especialmente da área tegmental ventral e do núcleo accumbens — que é associada ao prazer, motivação e euforia. Este padrão é diferente do amor parental, que ativa mais fortemente áreas associadas ao cuidado, empatia e apego, como a ínsula, o córtex pré-frontal medial e o giro angular. Em comum, todos envolvem a oxitocina e a dopamina, mas a intensidade e o circuito específico variam consoante o tipo de vínculo afetivo.
Os estudos de neuroimagem indicam que diferentes formas de amor ativam redes cerebrais parcialmente sobrepostas, mas também distintas.
Conhecendo melhor o funcionamento do cérebro durante uma relação amorosa, é possível aplicar este conhecimento na terapia de casal? A neurociência pode ajudar a “reacender” uma ligação emocional?
Sim, ainda que a ciência esteja numa fase muito embrionária inicial nesse campo. Alguns estudos com ressonância magnética funcional (fMRI) mostraram que a terapia de casal pode modificar a atividade em regiões cerebrais relacionadas com a empatia, a regulação emocional e o apego — como o córtex pré-frontal e a ínsula. Há também evidência de que o contacto físico com o parceiro após a terapia (como segurar a mão) reduz o stresse e aumenta a sensação de segurança. Isso sugere que, embora a neurobiologia não ofereça uma “receita” para reacender a paixão, pode ajudar a compreender os mecanismos de ligação emocional e orientar intervenções mais eficazes.

Do ponto de vista cerebral, o amor funciona da mesma forma em homens e mulheres? Ou há diferenças biológicas que justificam abordagens distintas?
Há semelhanças fundamentais, mas também algumas diferenças subtis. Em geral, os homens tendem a mostrar maior ativação nas áreas relacionadas com o desejo e recompensa, enquanto mulheres podem apresentar maior ativação nas regiões associadas à empatia e avaliação emocional. Essas variações estão ligadas, em parte, a diferenças hormonais — como oscilação de estrogénio nas mulheres ou os níveis de testosterona nos homens. Mas pode também haver uma componente que resulta da educação e condicionamento cultural, temos de ser cuidadosos nessa interpretação, exatamente para que estas observações não possam servir para justificar desigualdades de género: são apenas processos que refletem a complexidade biológica e cultural da experiência amorosa.
Substâncias como a oxitocina, dopamina e feniletilamina podem influenciar a atração ou empatia, mas o amor verdadeiro é um fenómeno multifatorial, que envolve história de vida, contexto social, emoções e escolhas.
Há milénios que o ser humano procura a famosa “poção do amor”. Hoje, a neurociência começa a perceber os mecanismos cerebrais que regulam o afeto e a ligação emocional. Estamos mais perto de “fabricar” artificialmente o amor?
A ideia é sedutora, mas ainda muito longe da realidade — e eticamente controversa.
Substâncias como a oxitocina, dopamina e feniletilamina podem influenciar a atração ou empatia, mas o amor verdadeiro é um fenómeno multifatorial, que envolve história de vida, contexto social, emoções e escolhas. Mesmo que se conseguisse replicar a química do amor, restaria a questão do livre arbítrio. Na minha perspetiva, o amor genuíno exige consentimento e autenticidade — não pode, nem deve ser reduzido a um cocktail neuroquímico.
Por vezes diz-se que o amor e o ódio estão separados por uma linha ténue. Do ponto de vista neurobiológico, há mais proximidade entre estas emoções do que à partida suporíamos?
Sim. Estudos de neuroimagem mostram que tanto o amor quanto o ódio ativam áreas semelhantes no cérebro, como a ínsula e o putamen — regiões ligadas a emoções intensas e comportamentos impulsivos. Ambos podem coexistir e até alternar-se em relações afetivas complexas. O oposto do amor, neurobiologicamente, não é o ódio, mas a indiferença: esta não ativa as regiões emocionais, e por isso representa o verdadeiro afastamento afetivo.
Num tempo em que se pode “gostar” de alguém com o polegar, através de um like, o amor parece ter-se tornado instantâneo, descartável, até quantificável. Como neurocientista, quando olha para esse gesto tão banal de deslizar num ecrã, o que vê: uma ameaça à ligação humana ou apenas uma nova forma de amar?
Diria que ambos, mas precisamos de alguma distância para saber com certeza. As plataformas digitais podem facilitar encontros, permitir aproximação geográfica e expandir o acesso a potenciais parceiros, mas também estimulam o chamado "paradoxo da escolha" — quanto mais opções temos, mais difícil é comprometer-se. O cérebro responde a esta lógica com ativação constante do sistema de recompensa, mas sem profundidade emocional. Isso pode gerar frustração e relações superficiais. O que sabemos é que em estudos com pessoas mais velhas, o essencial para a sua vida continua a ser a qualidade e a consistência da conexão humana — seja ela feita ao vivo ou à distância.
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