A terra chama-se Apelação e era, até 2013, uma das freguesias do concelho de Loures. Não há muito que enganar: trata-se de um ambiente típico de arredores de Lisboa, com uma mistura de casas antigas e muitos prédios modernos, especialmente de construção económica. Pelo meio, um enorme terreno murado alberga a Quinta Rainha dos Apóstolos. É aqui que estão as instalações da congregação Paulista. No seio da igreja católica, os Paulistas estão encarregues da comunicação, incluindo edições em papel. “Ou seja, evangelizamos através da comunicação”, diz-nos o padre José Carlos Nunes, à frente desta congregação. Os Paulistas possuem várias edições, em vários formatos (veja aqui) e uma rede de seis livrarias.

Ora, calhou que o padre José Carlos, em diversos eventos, fosse conhecendo dois técnicos ligados à vinha e ao vinho. E as conversas iam surgindo, ao mesmo tempo que a amizade. Como diz o sacerdote, “a amizade traz bons frutos”, e desta vez deu mesmo: Um belo dia, António Cláudio, especialista em viticultura, e Filipe Sevinate Pinto, enólogo, desafiaram o padre Nunes a plantar vinha na quinta. Afinal, a congregação, que é internacional, presente em 38 países, precisa de vinho de missa. E, à parte a água, o vinho, convém não esquecer, é o líquido mais referenciado na Bíblia (a seguir à água). E, como se isso não bastasse, foi o vinho que constituiu o primeiro milagre de Jesus, que transformou água em, note-se, bom vinho. Ora, havendo espaço e fundos para isso, porque não avançar para uma vinha?

Nasce uma vinha

Regressemos um pouco atrás: houve de facto uma vinha neste local, mas apenas para subsistência dos locais. Nesta quinta chegaram a viver, nos anos 50, cerca de 70 seminaristas e 12 padres; existiam mesmo dois caseiros, um para o gado, outro para a agricultura. Nos anos 80 começaram a escassear as vocações, os caseiros foram-se embora e a vinha ficou ao abandono.

E eis que chega 2014. Decidida a plantação, António e Filipe escolheram as castas a plantar, no pressuposto de que as uvas teriam de ir para dois lados: vinhos de consumo (branco e tinto), e vinhos de missa (licoroso). Antes da decisão final, os técnicos provaram alguns vinhos de missa, só para verem o estilo. E a escolha foi para a casta branca Malvasia, num clone “muito amoscatelado”, isto é, a pender para aromas mais intensos e adocicados. António sabe do que fala porque é ele o distribuidor dos Viveiros Rauscedo, um dos fornecedores de plantas mais prestigiados do mundo, com origem em Itália. “Esta Malvasia é uma casta terpénica, que nos permite fazer macerações longas e vinhos com longevidade”, adianta Filipe. Ao lado da Malvasia, entrou a cada vez mais popular Alvarinho, direcionada sobretudo para o vinho não-generoso. Nos tintos ficou a casta Merlot e um bocadinho de Alicante Bouschet. Esta última faz um pouco o papel do Cabernet Franc no lote com Merlot, tão típico de Saint Emillion. Filipe tem excelentes experiências com Merlot na Quinta de São Sebastião e achou que aqui se iria dar bem.

A Congregação Paulista já faz vinho de inspiração divina
créditos: Ricardo Gomez

Não foi planeado, mas o primeiro pé de videira foi plantado a 13 de maio de 2014, 97 anos depois da primeira aparição em Fátima. Foi escolhida a parte mais fácil, mais plana e desmatada. Pareceu milagre, mas as plantas pegaram muitíssimo bem e já houve uvas no ano seguinte! O entusiasmo foi tanto que ficou decidido plantar mais vinha, que entrou na encosta, que teve de ser desmatada. O padre José Carlos explica: “o reino de Deus, simbolizado com vinha, tem que ser expandido”. No total estão agora quatro hectares mas existe mais algum terreno para ampliações. A comunidade, de apenas nove membros permanentes, ajuda no que pode no amanho da vinha e na vindima. Menos mal que António Cláudio, que supervisiona a vinha, mora a cinco minutos, e existe ainda uma espécie de feitor, que trata de todos os espaços verdes. Nos trabalhos maiores contrata-se gente, até porque alguns membros da congregação são já de idade avançada. Em contrapartida, reza-se muito no seio da vinha e a mesma é benzida todos os anos. Talvez por isso seja tudo muito natural: “evitamos ao máximo o uso de produtos químicos; queremos tudo o mais biológico possível”, refere o padre José Carlos. António Cláudio reforça: “esta zona é boa e a vinha não é problemática; aliás, as maturações mostram-se até agora muito homogéneas”. Tudo a correr de feição, portanto.

Falta a adega

A quinta teve em tempos uma adega e os restos ainda por lá estão, incluindo algumas velhas pipas em ruínas. Enquanto a adega não é restaurada (se é que alguma vez irá acontecer), as uvas para os brancos e tintos são vinificadas na Quinta de São Sebastião, onde Filipe dirige a enologia. As uvas para o vinho de missa vão para a Quinta do Piloto, em Palmela, onde existem melhores condições para o trabalho com a aguardente. Diz Filipe Sevinate Pinto que a designação “vinho de missa é um bocado genérica e simples; é um vinho puro, sem aditivos, que normalmente se faz como um licoroso, para não se estragar”. Não leva, portanto, qualquer aditivo salvo aguardente: nem sulfuroso, corretores de acidez ou de outros, etc. Este é o primeiro vinho de missa feito por uma congregação.

Neste momento, António e Filipe estão em processo de aprendizagem e vão variando estilos e lotes. O primeiro vinho para o mercado será o de 2017, que será disponibilizado nas livrarias da congregação (só vinho de missa) e outros mercados (branco e tinto). No caso do vinho de missa, e segundo as leis canónicas, faltava a autorização do Cardeal Patriarca de Lisboa. A marca já foi decidida e será Vinha de São Paulo mas os rótulos estão em fase de produção.

O ideal agora era trazer cá o Papa Francisco, para abençoar a vinha. Pode parecer uma quimera, mas nunca se sabe: afinal, o padre José Carlos é o tradutor do Papa em Portugal e depois, quem sabe os desígnios de Deus?

A Congregação Paulista já faz vinho de inspiração divina
Equipa abençoada: Filipe Sevinate Pinto, António Cláudio e o padre José Carlos Nunes. créditos: Ricardo Gomez

Em Prova

Notas de prova: João Paulo Martins

Vinha de São Paulo -Vinho branco 2017

Um toque de redução no aroma dá-lhe um caráter sério e algo fechado, de traço mineral e com a fruta em segundo plano. Boa prova de boca, com volume com a fruta madura (maçã, alperce e melão) a darem aqui boa conta de si. Acidez ajustada para equilibrar o conjunto, de perfil rústico, mas bem interessante. Quer conhecer mais detalhes deste vinho? Clique aqui.

Vinha de São Paulo - Vinho tinto 2017

Média concentração, aroma vivo com abundantes notas florais a algum pimento verde, resultando com caráter e frescura de juventude. Bastante leve na boca, carecia aqui de mais textura para responder ao impacto olfativo. Ainda assim no conjunto será gastronómico e agradável à mesa. Mais informação sobre este vinho aqui.

Vinha de São Paulo -  Vinho licoroso (Vinho de Missa) 2017

A Congregação Paulista já faz vinho de inspiração divina

Muito carregado na cor, aroma oxidado com a fruta em compota a surgir em evidência, a lembrar um licoroso envelhecido em casco. Ligeiro na boca, doçura evidente, aqui num registo que sugere que a falta do álcool não o beneficia especialmente. Não deixa de ser uma curiosidade. Mais informações aqui.

Artigo publicado na Revista Grandes Escolhas, Edição nº26, junho de 2019