
Passam poucos minutos das 20h, quando cruzamos a porta da loja A Padaria Portuguesa escolhida, e na qual sou cliente habitual. Pela hora, não há grandes dúvidas para quem está ao balcão: “Too Good To Go?”. Respondemos afirmativamente. Imediatamente nos entregam o excedente destinado para não ir “para o lixo” nesse dia.
A história da Too Good To Go começa em 2015 num restaurante buffet em Copenhaga. No final do jantar, um grupo de amigos reparou que toda aquela comida que ainda estava em boas condições simplesmente já não ia ser aproveitada. Foi aí que surgiu a pergunta: “E se existisse uma forma de dar um destino melhor a esta comida?” Essa ideia — tão simples quanto urgente — deu origem à app, com a missão de ajudar a salvar excedentes alimentares e inspirar mais pessoas a fazer parte desta mudança.
Ao balcão está uma cliente que se mostra curiosa com o processo: “Do que se trata?”, questiona. O gerente explica o conceito por detrás do evitar de desperdício: por um valor mais interessante, um cliente pode levar pão ou bolos para casa. A pessoa parece não acreditar à primeira. “Estamos numa padaria, é normal que um produto que sobre muito seja pão”, responde outro funcionário, que acrescenta a sua própria experiência: “já comprei a surprise bag do Minipreço e trouxe um rolo de carne, daqueles recheados, entre outras coisas. Não podemos escolher, mas os produtos surpreendem sempre”.
Perguntamos ao gerente há quanto tempo fazem parte da rede Too Good To Go. “Há pelo menos uns quatro anos”, afiança-nos. “Hoje tinha quatro surprise bags, mas só houve dois pedidos. Assim acaba por haver menos distribuição”. Analisamos o que nos calhou “em sorte”: três croissaints de pistácio, três croissants brioche, um pão artesanal de 5 farinhas e 5 sementes e um pão artesanal de centeio. Um cliente que levasse esse recheio umas horas antes pagaria 18,05€ (3,10€ cada pão, 2,50€ por cada croissant de pistácio e 1,45€ por cada croissant brioche). Nós pagámos 4,99€, numa poupança de mais de 70%.
“O nosso objetivo é evitar que produtos perfeitamente bons acabem no lixo. Todos os dias, infelizmente, toneladas de alimentos são desperdiçados só porque não foram vendidos a tempo”, explica Maria Tolentino, da Too Good To Go, em entrevista ao SAPO Lifestyle.
Esta preocupação com o reaproveitamento de alimentos, contudo, não é nova. Antes das apps, os supermercados já tentavam escoar os seus excedentes com descontos aplicados a produtos em fim de validade, como iogurtes, carne embalada ou refeições prontas. Ainda hoje, muitos clientes procuram essas etiquetas coloridas como oportunidade de poupança. A diferença está no formato: as aplicações digitais como a Too Good To Go sistematizaram o processo, transformando-o numa experiência prática, acessível e com um toque de surpresa.
Repetimos o mesmo gesto, dias depois, mas numa empanadaria. À hora marcada aparecemos para fazer a recolha da nossa surprise bag. Por 4,99€ recebemos um mix de cinco empanadas argentinas. Olhamos para o preçário: se fossemos um cliente regular pagaríamos 11€. “É um bom custo benefício”, diz-nos a empregada que nos entrega a caixa.
Entre as opções de escolha, há algumas que nos suscitam curiosidade como as possíveis sobras de pequeno-almoço de hotel. Experimentamos um dos disponíveis, perto do local de trabalho, para perceber o que ali vem. Talvez as expectativas fossem muito elevadas tendo em conta os pequenos-almoços buffet, mas dentro da surprise box estão oito pastéis de nata e três bananas. Se pensarmos que esta box nos ficou apenas a 2,99€, percebemos que não é mau negócio, apesar de não ser propriamente aquilo que esperamos. Mas é mesmo essa a ideia: o que vem lá dentro é surpresa. Se é boa ou má, cabe ao utilizador avaliar, atribuindo estrelas na app.
A experiência ajuda-nos a perceber melhor o que move os mais de dois milhões de utilizadores portugueses da Too Good To Go: a promessa de boa comida a um preço justo. E, de caminho, um pequeno contributo contra o desperdício. Mas será que todos os que utilizam a app têm real consciência do impacto das suas ações?
A empresa acredita que sim, embora reconheça que ainda há muito por fazer. “Ao usarem a aplicação, não estão apenas a aproveitar uma oportunidade para poupar. Estão a fazer parte de um movimento com impacto ambiental, social e económico real”, sublinha Maria Tolentino.
Os utilizadores têm oportunidade de ver o impacto positivo das suas ações, com a app a mostrar refeições salvas e CO₂ evitado, tornando-o mais concreto. Para além disso, há um investimento em campanhas de sensibilização e partilha de dicas nas redes sociais para se evitar o desperdício alimentar em casa.
Desde que chegou a Portugal, em outubro de 2019, a plataforma que começou na Dinamarca em 2016 já ajudou a salvar mais de seis milhões de refeições, o que se traduz em 6.000 toneladas de alimentos recuperados, 16.200 toneladas de CO₂ evitadas e mais de 4.800 milhões de litros de água poupados. Tudo isto através da interligação entre estabelecimentos parceiros e utilizadores que, diariamente, recorrem à app para resgatar sacos-surpresa de padarias, restaurantes, hotéis ou supermercados.
Entre as marcas mais conhecidas que aderiram à iniciativa em Portugal estão o Continente, Auchan, Padaria Portuguesa, Pizza Hut ou o grupo Vila Galé, num total de mais de 4.000 parceiros comerciais inscritos em todo o país. A aposta tem vindo também a ser feita na educação alimentar, com campanhas como “Observar, Cheirar, Provar”, que procura combater o desperdício baseado exclusivamente na data de validade.
Apesar de a maioria das reservas ocorrerem entre as 18h e as 22h, com a sexta-feira como o dia mais movimentado, a app regista atividade constante ao longo da semana. “Há utilizadores que sabem a que horas os seus estabelecimentos preferidos colocam os sacos à venda e chegam a pôr alarmes no telemóvel”, conta.
E quem são estes utilizadores? Na sua maioria, adultos entre os 25 e os 40 anos, urbanos, atentos à poupança e à sustentabilidade. Mas há de tudo: estudantes, famílias, reformados. O denominador comum? A vontade de fazer escolhas mais conscientes, e de transformar uma simples compra numa ação com significado.
No entanto, nem todas as experiências são iguais, como comprovámos. Se, numa padaria, o saco trouxe um conjunto variado e de valor claramente superior ao preço pago, já no caso de um hotel a surpresa foi mais modesta. Mas isso faz parte do conceito: o cliente compra a ideia de resgatar excedentes, e não de escolher o que quer levar para casa.
E isso parece fazer sentido. Um estudo realizado pela Too Good To Go em parceria com a Appinio, em 2023, revelou que oito em cada dez portugueses estão preocupados com o desperdício alimentar. O impacto económico é uma das principais razões apontadas, sobretudo numa altura em que o custo de vida sobe e cada cêntimo conta.
“A nossa missão é garantir que qualquer estabelecimento, em qualquer localidade, possa dar uma segunda vida ao seu excedente”, reforça. E essa expansão passa, também, por novas funcionalidades, parcerias estratégicas e até pelo uso de inteligência artificial, como a nova Too Good To Go Platform, uma solução digital que ajuda os supermercados a identificar produtos perto do fim do prazo, a aplicar descontos automáticos ou a encaminhá-los para a app.
A verdade é que, mais do que uma aplicação, a Too Good To Go parece querer afirmar-se como um movimento, que procura mudar hábitos, mentalidades e rotinas. E tem vindo a conquistar terreno: opera atualmente em 19 países da Europa, América e Austrália, com uma comunidade em crescimento de 100 milhões de utilizadores registados e 180.000 empresas parceiras ativas em todo o mundo. De acordo com dados fornecidos pela empresa, a app já ajudou a salvar mais de 450 milhões de refeições do desperdício, o equivalente a mais de 450 mil toneladas de alimentos. Tudo porque um pequeno grupo de jovens acreditou que podia mudar o mundo.
Maria Tolentino sublinha que, apesar de a aplicação manter uma linha de comunicação global coerente com os seus valores, há um esforço claro de adaptação a cada mercado: “No caso de Portugal, apostámos numa linguagem próxima, positiva e acessível, com referências culturais que criam identificação e com ações educativas ajustadas à realidade local. Acreditamos que essa adaptação é essencial para envolver verdadeiramente a comunidade e reforçar o impacto da nossa missão.”
Em Portugal, o desperdício alimentar é um problema persistente, com tendência a crescer. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2020 foram desperdiçadas cerca de 1,9 milhões de toneladas de alimentos. A cada minuto, são deitados fora aproximadamente 3 kg de comida. Números que são corroborados pelo estudo realizado em 2023 pela empresa Appinio para a Too Good To Go, que apontam valores semelhantes e destacam que este desperdício representa um custo superior a 3,3 mil milhões de euros por ano para os portugueses.
Apesar das várias campanhas e iniciativas para reduzir este desperdício, Portugal continua a ocupar um dos primeiros lugares na União Europeia em desperdício alimentar per capita. Segundo dados do Eurostat, em 2024, o facto de cada português desperdiçar em média 184 kg de alimentos por ano, coloca o país em 3.º lugar entre os Estados-membros da UE, apenas atrás de Chipre (294 kg) e Dinamarca (254 kg). Este cenário reforça a necessidade urgente de ação e de mudança de hábitos, com a participação ativa de consumidores, empresas e entidades públicas.
“Estes números mostram bem a urgência do problema. Em Portugal, sentimos uma consciência ambiental crescente e um forte sentido de comunidade, o que tem sido essencial para a boa receção do projeto”, afirma Maria Tolentino, concluindo que "queremos que, no futuro, o desperdício alimentar deixe de ser visto como algo normal e passe a ser encarado como algo inaceitável".
No fim das contas, mudar mentalidades é o verdadeiro passo para garantir que o excesso de comida não acabe no lixo.
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