
HealthNews (HN) – Professor Fernandes e Fernandes, o evento do dia 26 de junho celebrou o seu percurso singular. O que representa para si, pessoal e profissionalmente, esta homenagem focada no “Homem, Académico e Cirurgião”?
Professor José Fernandes e Fernandes (JFF) – Realmente não se tratou de nenhuma homenagem. O que aconteceu foi ter surgido a oportunidade de apresentar um livro escrito recentemente “Tempo de Diálogo e Tempo de Acção Memórias dum Cirurgião na Academia e Cidade”, na Faculdade de Medicina de Lisboa em colaboração estreita com o Hospital de Santa Maria, instituições onde trabalhei desde o meu regresso de Inglaterra em outubro de 1978.
E com o apoio do Fórum Saúde XXI alargou-se o âmbito da sessão para incluir uma Conferência Magistral pelo Prof. Eduardo Marçal Grilo sobre os difíceis tempos que vivemos. E numa época tão desafiadora e imprevisível como a actual.
A sessão de abertura foi presidida pela Senhora Ministra da Saúde que foi uma honra que nos sensibilizou.
O livro é o produto do diálogo dum cirurgião com o seu passado, algumas vivências com os seus doentes, as instituições que serviu na saúde e na academia e também com o dever de cidadania informada, que foi assumido como uma responsabilidade pública irrecusável, perante a evolução da medicina, da arte cirúrgica e da organização da saúde nestas cinco décadas de ofício.
E sobre a educação médica, que ocupou um lugar relevante e prioritário na minha actividade. Por vezes, foi um diálogo quase impossível, um desafio improvável com conflitos inesperados e cujo resultado final só o tempo poderá apreciar com rigor.
Mas com propósito assumido: promover o fundamental – a Medicina humanista –assumir a sua continuidade para enquadrar e incorporar as mudanças desejáveis e possíveis que marcaram a Medicina contemporânea e a Cirurgia Vascular, que foi o meu ofício e a minha arte.
A sua elaboração impôs viagem pelo Passado que vivi, pelas circunstâncias que conduziram à definição e afirmação duma identidade profissional numa época tão desafiante para a ciência, para a técnica, para a organização dos serviços de Saúde e para a sua disponibilização aos cidadãos.
No meu percurso profissional vivi três revoluções que mudaram a Medicina e a Cirurgia e que analiso no livro.
A da Biologia Molecular que sucedeu à descoberta e identificação do ADN, ácido desoxirribonucleico, e do ARN, ácido ribonucleico, o mensageiro no diálogo entre a ordem genética e o meio.
A segunda que conduziu à identificação completa do genoma humano, possível pela moderna tecnologia de tratamento da informação. Trouxe novas perspectivas para o conhecimento do risco eventual de algumas doenças e para uma Medicina dita de Precisão, isto é mais dirigida, reduzindo efeitos secundários indesejáveis de algumas terapêuticas.
E, finalmente, a terceira revolução, associada à tecnologia e transformação digital em curso, à convergência das engenharias com as biociências, cujo impacto na profissão médica Desafiará a autonomia e continuidade de uma identidade profissional iniciada na Grécia Antiga, manter-se-á a relação médico-doente personalizada e a confiança dos doentes nos seus médicos? E como será a educação e formação dos médicos e dos cirurgiões no futuro próximo?
São questões apaixonantes e desafiadoras que relato no livro, e também como interagi e procurei acomodar inovação e contribuir para uma actuação moderna, eficaz, melhor tolerada pelos doentes e assente no conhecimento científico e na utilização judiciosa da inovação tecnológica. E na necessidade de assegurar a perenidade dos valores éticos do Murmúrio do Vento de Cós, a nossa herança hipocrática.
HN – O título da homenagem sugere uma vida dedicada tanto à Academia como à prática cirúrgica. Como conciliou, ao longo da sua carreira, estas duas vertentes aparentemente distintas – o mundo do conhecimento e o ato cirúrgico concreto?
JFF – O meu combate com as minhas circunstâncias, permitiu-me aproveitar os acasos felizes para concretizar os meus projectos e salvar-me, isto é, realizar-me pessoal e profissionalmente.
A Cirurgia Académica foi o meu propósito, o meu objectivo prioritário. Nunca se tratou de acumular títulos académicos, mas sim de preservar uma visão baseada na cultura científica, de avaliação permanente e continuada dos resultados da nossa actividade, para confirmar a vantagem e ganhos de saúde para os doentes.
A Cirurgia, seja qual for o seu ramo, impõe a exigência de fazer bem e a obrigação de prestar contas, que foi imperativo que marcou a educação desde o convívio familiar e social, do liceu à universidade e à vida.
Accountability foi conceito reforçado nos anos de Inglaterra ao qual procurei ser fiel, como o dever de cada um de nós fazer o seu melhor, independentemente do seu estatuto profissional, e assumir essa responsabilidade como um dever indeclinável.
A Cirurgia não é só uma arte, feita com as mãos com origem etimológica no grego kheirourgia, de kheír, mão + érgon, trabalho.
É profundamente influenciada pela ciência, pelo conhecimento, pela objectividade na avaliação dos problemas; acreditar no que se vê, mais do que ver aquilo em se acredita como escreveu Ambroise Paré no século XVI, que ocupou a primeira cátedra de Cirurgia na Universidade de Paris. Por isso a independência mental e o rigor têm que ser atributos do cirurgião, porque a Cirurgia é também una cosa mentale servida e concretizada pela actuação manual e instrumental.
Defender e promover a Cirurgia Académica foi um dos meus objectivos. Por isso incluí relatos da vida clínica que intersectaram a minha acção, que foram desafiantes e exigentes, e que o leitor apreciará. E como agi para poder concretizar os meus objectivos, ultrapassando limitações e obstáculos, alguns inesperados.
Talvez uma das mensagens que procurei afirmar no livro e pela actuação continuada e diária, foi promover uma Cirurgia profundamente enraizada e fundamentada no conhecimento científico, na adequação das indicações, na avaliação dos resultados, na disponibilidade permanente ao serviço dos doentes, seguindo a máxima hipocrática o médico é o Servo da Arte e a sua Arte está ao serviço dos doentes sobre a fama e a fortuna!
Houve outra razão irrecusável que me levou a escrever desde reflexões publicadas na imprensa e um livro de 2009, intitulado Nó Górdio e a Cumplicidade Escondida que revisitei. E essa motivação resultou da dificuldade de mudarmos o País, reduzir desigualdades sociais, bolsas de pobreza e ineficiências na sociedade, resolver problemas que se arrastam durante décadas e nos têm separado da Europa mais desenvolvida. Configuram um combate necessário, que é um imperativo de intervenção cívica, mas sobretudo um exercício contra a indiferença, que me parece ir corroendo a objectividade, a racionalidade e a capacidade de decisão na nossa vida colectiva.
De facto, convergimos mais facilmente para destruir pessoas, ideias, obras e realizações, alimentamos a crítica fácil e ligeira em detrimento do ofício e dever de pensar e construir. E daí resultou o empobrecimento do diálogo informado que é necessário para um compromisso de mudança que assuma caminho novo para ultrapassarmos limitações colectivas como na Saúde e noutras áreas da nossa vida colectiva. Bem mais exigente do que o consenso entre contrários, que tende a esfumar-se na primeira dificuldade.
Esta realidade dificultou a implementação de uma cultura de avaliação e de meritocracia essencial para a prossecução do Bem Comum e para a governação em todos os seus níveis de decisão. É uma circunstância muito preocupante!
Autonomia, independência, espírito prático e decisão são parte integrante do nosso ethos cirúrgico, da tribo à qual pertenci e que caracterizam uma postura mais intervencionista no âmbito da Medicina Clínica. São a nossa herança, a Memória que não devemos ignorar, a Continuidade que é necessário assegurar perante os desafios que a Mudança nos impõe no século XXI.
HN – A conferência “O Desafio do Tempo” é um dos pontos altos do programa. Na sua experiência, qual foi o maior desafio relacionado com o tempo – seja na investigação, na sala de operações, na formação ou na vida pessoal?
JFF – Vivemos uma época difícil onde a imprevisibilidade parece irromper na vida quotidiana desafiando regras, princípios e até valores que nos pareciam intocáveis.
Desde os meus tempos de liceu que me fui interessando por aspectos que marcaram a evolução da Ciência Física e da Biologia, desde a incerteza, ao relativismo e desvalorização da dimensão biológica fundamental de cada ser humano na sua individualidade. São tempos conturbados, em que precisamos de defender os valores essenciais da Humanidade e simultaneamente ter a capacidade de mudar e enquadrar a inovação e as novas dimensões de intervenção que a Tecnologia nos propõe.
Preocupa-me a emergência de um falso conhecimento que parece excluir o pensamento crítico e a reflexão, que promove uma visão simplista, acrítica, sem o filtro da razão e do conhecimento, e cuja contrapartida social é a emergência de populismo e extremismo, com alienação de valores fundamentais da solidariedade e do sentimento de partilha comunitária.
Revi obras que balizaram a minha evolução intelectual que me parecem importantes para compreender desvios autoritários que julgava definitivamente enterrados na poeira do tempo. A vontade de ordem, que Aldous Huxley chamou nos anos 50 the will of order a alguma predisposição autoritária que tornaria fértil o apelo totalitário. E o risco para uma sociedade rígida, biologicamente estratificada pela manipulação genética e segundo as necessidades da economia, como nesse livro surpreendente e talvez premonitório que é O Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.
Obviamente que tudo isso tem impacto na Medicina e na Cirurgia, na absoluta necessidade de rigor na incorporação da inovação para serviço do doente e da comunidade.
Vivi esse período na minha vida cirúrgica, na avaliação dos resultados e na definição de critérios de intervenção em algumas áreas, como na introdução da cirurgia endovascular no tratamento dos aneurismas e das obstruções vasculares que pude estimular na minha prática e no país. Acho que contribuí para mudar a realidade e incorporar de forma séria e rigorosa a inovação.
Mas a conferência sobre O Desafio do Tempo realizada pelo Prof. Doutor Eduardo Marçal Grilo, uma personalidade de grande relevo humano, científico e ético trouxe-nos a Sabedoria indispensável para modular o ruído do tempo.
HN – “Tempo de Diálogo e Tempo de Ação, Memórias de um Cirurgião na Academia e na Cidade”: O seu livro, apresentado no evento, tem este título muito sugestivo. Poderia partilhar brevemente qual a ideia central que quis transmitir com esta obra sobre a sua vivência na Academia e na Cidade?
A Medicina Portuguesa vive uma crise enquanto organização colectiva para o serviço da população. Parece existir divórcio entre a realidade e as proclamações de responsáveis políticos do sector, uma barreira que parece intransponível entre as ideias e a sua concretização. São exemplos as listas de espera para consultas, para cirurgias e exames de diagnóstico, a pletora dos serviços de urgência hospitalar, as insuficiências reconhecidas num sistema de saúde que trouxe tantos benefícios aos Portugueses. Mas não devemos ignorar os relatórios internacionais que evidenciam um contraponto à narrativa político-ideológica que prefere ver o que acredita. Há uma percepção pública de crise, que infelizmente se prolongou no tempo, vem do passado, mas com afloramentos e agravamento inesperado nos últimos anos.
Uma mudança parece necessária. E essa mudança requer um Tempo para Diálogo informado, sério, rigoroso e fundamentado, mas é preciso um Tempo para a Acção, para agir com consequência e resolver os problemas.
A evolução do Sistema de Saúde em Portugal é muito interessante, desde o regime ditatorial e corporativo, à implementação e à evolução do SNS, e fazer uma avaliação comparativa com outras realidades na Europa em que estamos integrados.
Sugeri alguns caminhos para a Mudança. E recordei um conceito que me foi transmitido por uma grande personalidade de outro tempo político que um dia me disse: “Os portugueses querem as vantagens duma Política e da outra diametralmente oposta”.
Reformar é um grande desafio, na Saúde, na Educação Médica a qual procurei reformular como director da Faculdade de Medicina, numa perspectiva integrada desde o acesso à escola médica, ao curso de Medicina, à formação pós-graduada e à absoluta necessidade de programas rigorosas de Educação Médica Continuada e, defendo quase como voz isolada, a necessidade recertificação profissional dos médicos.
Como fazê-lo? Primeiro com Informação e Conhecimento, depois, com abertura de espírito e diálogo que permitam compromisso para uma acção coerente e continuada sem o que nunca se conseguirá concretizar a mudança necessária e que se impõe.
HN – Olhando para o seu longo e diversificado percurso, qual seria o conselho mais essencial que daria a um jovem médico que ambicione também uma carreira marcante, tanto clinicamente como academicamente?
Uma pergunta interessante e difícil.
Há uma década, a associação de estudantes da Faculdade de Medicina propôs-me um debate com um tema desafiante: Mudar o País ou Mudar de País, cuja mensagem resumida foi publicada no jornal Expresso em 28/6/2014. Nesse início da segunda década do século XXI, vivia-se uma realidade dolorosa, desconhecida para essa geração, mas que reapareceu anos depois com dimensão insuspeitada – a emigração de médicos e outros profissionais de Saúde.
A palestra foi um pretexto para uma viagem pelo pesadelo da nossa decadência começada nos séculos XVI e XVII, quando o furor inquisitorial prevaleceu sobre cultura e a ciência. Ou talvez mais cedo, com a morte do Infante D. Pedro em Alfarrobeira e a incapacidade de seguir o caminho que propusera ao Rei na Carta de Bruges: fazer da educação do povo o grande objectivo do ofício de governar, que deveria realizar-se com justiça, isenção e eficácia.
E, como contraponto, dei como exemplo a acção reformadora da geração de 1911 – estrangeirados que tinham feito a sua formação na Europa – e que marcaram o começo da medicina científica moderna em Portugal; foram âncora para a reforma da Universidade promovida na primeira década da República e que é importante revisitar no ano em que se celebram os duzentos anos das escolas médicas de Lisboa e Porto.
Nessa palestra e no diálogo travado, procurei sensibilizá-los para a ousadia do desconforto, da desinstalação, contra o carreirismo obediente e submisso, para que se abrissem ao mundo, porque às vezes é necessário sair e mudar de país para depois voltar e contribuir para mudar o País.
Essa foi a minha bússola, a qual emanou da convicção profunda de que – mesmo em tempo de comunicação instantânea e fácil – há uma forma de estar, agir e viver que só se aprende e interioriza, vivendo! Para depois regressar e contribuir para ajudar a fazer a mudança necessária!
E foi no murmúrio do vento que sopra da ilha de Cós que procurei encontrar inspiração, alento e convicção para enfrentar os desafios na profissão e na academia.
HN – O evento incluiu vários momentos de debate e intervenção. Qual considera ser a importância do diálogo constante entre diferentes áreas e gerações, como simbolizado neste encontro, para o futuro da Medicina e da Cirurgia?
Diálogo como exercício de tolerância, respeito pelo outro e objectividade na análise dos problemas, baseado no conhecimento, na informação e porque não, abertura à sabedoria que poderá vir da experiência, da vida e da cultura.
Essencial, na Ciência, na Medicina, na Arte, na Cultura, na Vida Social e na Política.
Mas Diálogo que conduza a uma Acção concertada e coerente, baseada nos valores essenciais da Ética, da Moral e com Continuidade no Tempo.
Há um tempo para a acção, e as oportunidades perdem-se…
Na Medicina e na Cirurgia a Revolução Tecnológica e Digital pode pôr em causa a própria identidade médica. Na minha experiência e da qual dou testemunho, não se trata de um fenómeno de destruição criativa em que o novo erradica o tradicional, pelo contrário, influenciam-se de uma forma criadora e potenciadora.
As novas técnicas de cirurgia laparoscópica, endovascular key-hole surgery substituiram cirurgias tradicionais com igual ou até melhores resultados e maior tolerância pelos doentes. São novos instrumentos de acção que precisamos compreender, usar e modular.
Mas há uma Sabedoria da Tribo que radica no Conhecimento, na Compreensão da doença e do doente, na capacidade de preservar e continuar as técnicas convencionais que continuam a ser necessárias, a Humanidade no trato e na atitude perante o Doente.
Obrigará a adequar a Educação e a Formação Profissional, a implementar modelos organizacionais que promovam qualidade, experiência e expertise, impor-se-ão decisões que requerem Coragem política e institucional.
Mas este é o Tempo de Acção para a Mudança necessária!
Entrevista de MMM
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