É tal a habituação ao sofrimento, que chega a ser muitas vezes necessário que este tome uma proporção mais severa e disfuncional, para que haja consciência da sua existência e da maneira como este tem atuado como pano de fundo nas suas vidas. Até aí, é como se tivesse aprendido que o “normal” é uma vida que implica dor e dificuldades e nada se pode fazer em relação a tal, a não ser ignorar e viver uma encenação cativante de que está (sempre) tudo bem.

É fácil perceber como este tipo de aprendizagem acontece, tendo em conta as exigências de um contexto que parece não ter tempo para esperar – pois “a vida continua” -, mas também, face à facilidade momentânea que representa evitar a dor que é estar em contacto com o que nos faz sofrer. É fácil compreender como este processo é atrativo e permite viver de forma aparentemente funcional, por ajudar a atender e responder de forma automática, seletiva e económica aos muitos estímulos que são recebidos em simultâneo.

O processo de habituação ocorre nas mais simples e diversificadas situações do nosso dia a dia. Para tornar mais fácil a sua compreensão, abaixo será descrita uma situação exemplo que pode ser facilmente experienciada por todos e tão bem ilustra este tipo de aprendizagem que pode ser necessário e inevitável.

Vamos imaginar que nos dirigimos a um café com a intenção de trabalhar sobre as nossas leituras e escritas. Numa primeira instância, os milhares de sons e interações que ocorrem ao nosso redor começam por ser notados – por exemplo as conversas paralelas, as chávenas e pratos de porcelana a serem arrumados, os pedidos e atendimentos, as teclas de computadores, a porta a abrir e a fechar, a música a tocar, as preocupações da nossa mente, entre outros. No entanto, ao final de algum tempo, com o intuito de nos envolvermos/ao envolvermo-nos nesta tarefa, deixamos de prestar tanta atenção a esta quantidade de estímulos envolvente (menos reação visual e auditiva), e estes tornam-se apenas num ruído habituado e pouco discriminado.

Imaginemos ainda que, já a meio da tarefa, de repente, um prato cai ao chão e faz um barulho diferente dos sons habituais (do ruído), mais agressivo aos nossos ouvidos. Por ser diferente e intenso, faz com que paremos e nos apercebamos novamente dos outros sons, assim como, do esforço acrescido que tem sido feito para nos habituarmos a estes. É tomada consciência que, embora nos tenhamos envolvido neste processo que não permite ter noção do que constitui o ruído, ou mesma da sua existência, o ruído não deixou de ser ruído e de forma subtil e crescente, veio perturbar a nossa atenção e reduzir a motivação e tolerância para concretizar a tarefa pensada. Por termos consciência de tal, novas decisões podem ser tomadas, inclusive decisões que nos ajudem a perceber e lidar com o ruído, como por exemplo, sair do café e ir para um lugar mais sossegado onde possamos descansar e recuperar energias.

Imagine-se que este ruído equivale ao sofrimento habituado nas nossas vidas. Podemos não nos dar conta da sua existência, mas subtilmente a sua influência vai-se fazendo notar na maneira enviesadamente negativa como processamos a informação (a selecionamos, interpretamos e recuperamos) e na maneira como nos sentimos (por exemplo, pouco motivados, menos tolerantes, cansados, apáticos ou preocupados excessivamente, tristes, angustiados, stressados).

Por se andar frequentemente em modo piloto automático, torna-se mais difícil perceber que isto está a acontecer, sendo preciso que “um prato caia” e provoque um barulho mais agressivo – por exemplo experiência de pânico, depressão, burnout, ou um evento significativo - para ser notada a existência de tal sofrimento. Ainda assim, o esforço (mesmo inconsciente) para o evitar aliado a este automatismo, faz com que tal experiência seja notada de forma pouco diferenciada, sem noção dos eventos, dores emocionais e dificuldades que a desencadearam, ficando para muitos apenas o susto e a incompreensão sobre aquilo que está a ser vivido.

Sem intenção alguma de julgar este tipo de aprendizagem, o presente texto pretende apenas alertar para a facilidade em que se envolve neste tipo de processo, e simultaneamente, para a consequente necessidade de sair deste automatismo, de parar e notar nas sensações, emoções e pensamentos experienciados em cada momento ou fase de vida. Deste modo, a aceitação, cuidado e processamento dessa experiência poderão ser mais facilmente promovidos dentro do espaço e tempo que esta o requer, reduzindo a probabilidade de tal culminar em algo mais disruptivo e perturbador a longo prazo.

Sofia Sousa de Macedo - Psicologia Clínica