“Algures nessa travessia, sem dia e hora que consiga partilhar, dei por mim a pensar no que me estaria a manter viva”. A frase tem o poder de se fixar nas nossas reflexões. Para Rosário Carmona e Costa, a expressão destas palavras teve a força da realidade, a de enfrentar e superar a morte numa cama de hospital, onde padeceu durante semanas de uma infeção generalizada. Rosário Carmona lutava pela vida numa época em que a psicóloga clínica estudava e compilava material para o livro que se propunha entregar aos escaparates. Matéria-prima que a também psicóloga pela Associação Portuguesa de Terapia Cognitiva e Comportamental não imaginaria que lhe entregaria competências para superar um momento limite. Superada a adversidade, Rosário Carmona anteviu como natural levar para o título do seu novo livro o termo Salva-Vidas (edição Oficina do Livro) e juntar-lhe um subtítulo que apela à exploração: descubra como a Inteligência Emocional o pode salvar e aprenda a aplicá-la para viver mais feliz.

A obra, um testemunho na primeira pessoa, conjuga as pistas necessárias para o desenvolvimento da inteligência emocional, uma valência que, de forma mais ou menos consciente, mais ou menos apurada, amiúde adormecida, existe em todos nós.

À conversa com o SAPO Lifestyle, Rosário Carmona deslinda os porquês de encontramos na inteligência emocional a explicação para muitas das questões que teimamos em apelidar de “não resolvidas”. Uma descoberta que, de acordo com a psicóloga clínica, se faz de um caminho em várias etapas na nossa relação com o eu e com os outros: autoconsciência, autorregulação, empatia, habilidade social, motivação e resiliência.

“A inteligência emocional deve ser a força de gravidade que nos puxa para a terra: conhecer-nos deve trazer consigo uma dose acrescida de realismo e de humildade. Quais as minhas forças, mas também quais as minhas fragilidades? Quais os meus sonhos, mas também quais os meus recursos?” Palavras que citamos a partir do livro de Rosário Carmona. Um bom pretexto para iniciarmos esta conversa com a fundadora e diretora da clínica do Belong – Instituto do Desenvolvimento e Saúde.

O livro da qual é autora traz para a capa uma boia e a palavra salva-vidas. Escrevê-lo foi uma forma de voltar a entrar no quarto 348 e resgatar uma história de superação, a sua?  Quer contar-nos brevemente essa história?

Sim. Por um lado, foi esta ideia do que me deu força. A essa pergunta cheguei com a resposta na própria cama do hospital. Certo dia, naquela cama, entubada e sem me poder mexer, ou falar, com idas constantes para os cuidados intermédios e intensivos, pensei o que me fazia seguir em frente? Aquilo que me fez seguir em frente foram os conceitos que estava a estudar, pois estava a escrever um manual de inteligência emocional.

Por outro lado, senti também que era algo que precisava de tirar de mim. Por um lado, foi uma reflexão, um paralelo entre o que se estava a passar e a aprender; por outro, um exercício quase terapêutico, que convido os meus pacientes a fazerem. Praticamente, toda a parte de diário do livro foi escrita nos 30 a 35 dias imediatos à saída do hospital.

"Inteligência Emocional é a capacidade de a pessoa se motivar a si mesma e persistir a despeito das frustrações; de controlar os impulsos e adiar a recompensa; de regular o seu próprio estado de espírito e impedir que o desânimo subjugue a faculdade de pensar; de sentir empatia e esperança".

Livro Inteligência Emocional (1997) de Daniel Goleman, citado em Salva-Vidas, de Rosário Carmona

Como contexto a esta conversa pode explicar-nos brevemente o que é a inteligência emocional?

O conceito de inteligência emocional nasce com Daniel Goleman nos anos de 1990 e liga-se, sobretudo, à consciência de que encontramos trabalhadores que não são brilhantes do ponto de vista cognitivo e também não o foram nos estudos. Trabalhadores que não são grades teóricos, mas que são excelentes nas suas funções, que ativam a sua rede social. E o oposto também acontece. Os melhores alunos, recrutados das melhores universidades, podem não fazer as empresas crescerem. Quando começa a haver essa consciência nasce a busca do que determina o sucesso. Os estudos sobre a inteligência emocional nascem neste âmbito.

Há 13 ou 14 anos que trabalho nesta área clínica, e houve uma necessidade muito grande de compreender a dependência da internet, a tecnologia, os ecrãs. Na altura, abracei esta temática e fui trabalhar com uma equipa para Singapura, no Extremo Oriente. Há dez anos, o continente asiático já se debatia com as dependências à internet. Constatei que todos os programas de intervenção que por lá fazíamos se centravam na capacidade dos indivíduos gerirem emoções, de as reconhecerem, de se motivarem a si mesmo para o trabalho, empatizarem com os que estavam ao lado, serem resilientes nas suas atividades. E foi um pouco disto que trouxe. Ou seja, o que estava a ser aplicado a nível das empresas, poderia fazê-lo com os meus pacientes num contexto clínico e nas mais diversas problemáticas.

Da teoria passou à prática em Portugal…

Ao chegar a Portugal analisei mais de 300 processos de pacientes que já acompanhara e constatei, independentemente da problemática que trazia um deprimido, um ansioso, um caso de bullying, de competências sociais, perturbações da personalidade,que  trabalhava sempre várias competências, entre elas, a consciência das emoções, a capacidade de se regularem as emoções e o comportamento, o virarem-se para fora e cultivarem as suas redes sociais, de se motivarem.

Se é um miúdo cheio de criatividade, de ideias, que quer experimentar algo novo, encontra uma sala em modo autocarro, virado para a frente durante horas.

No seu livro, há uma citação de Daniel Goleman que nos faz pensar: “O QI contribui com cerca de 20% para os fatores que determinam o êxito na nossa vida”. Gostaria de dividir esta citação em duas perguntas, se estiver de acordo.

Claro.

Como definiria o êxito na nossa vida?

Toca num ponto muito interessante. Muitas vezes olhamos para o resultado e não para o processo. Como se explicaria que CEOs de sucesso, a liderarem empresas, trouxessem para as consultas crises de angústia e existenciais tão profundas? Se a produtividade explicasse o êxito e o sucesso, não teríamos sofrimentos tão subjacentes. Isto preocupa-me, pois se é um miúdo cheio de criatividade, de ideias, que quer experimentar algo novo, encontra uma sala em modo autocarro, virado para a frente durante horas. Porque não permitir que a criança desenhe enquanto escuta o professor? Mas isso é castrado.

Em consulta, é interessante quando tenho pais que me dizem que um dos filhos não estuda nada e tem bons resultados, enquanto o outro estuda muito, mas sem apresentar resultados tão bons. Pergunto: na verdade o que queremos ensinar? Como definimos os nossos objetivos? Como vamos em busca deles? Este segundo processo [o do filho que estuda muito] é muito mais construtor de carácter e de personalidade do que o primeiro. A brincar digo: “traga-me esse filho que pouco estuda e não o outro, porque é o que lhe vai dar problemas no futuro”. Porquê? Porque não está habituado a imprimir esforço naquilo que busca. Quando um dia se confrontar com o aumento da complexidade do objetivo e aplicar o mesmo nível de esforço, vai reduzir o seu resultado e isso vai ser muito ansiogénico. De maneira nenhuma a produtividade é sinónimo de êxito ou sucesso, pois somos muito mais do que o nosso produto. Somos uma pluralidade de esferas.

“Um erro que os pais cometem é acharem que as crianças não intuem e que não têm o ‘radar’ emocional instalado” - Rosário Carmona e Costa, psicóloga clínica
créditos: Pexels

Tocando, agora, na segunda questão, onde param as restantes forças que contribuem com 80% para o êxito na nossa vida?

De que me serve ser um estudante brilhante se, depois, estou muito frustrado e nem me reconheço? Estou tão desconectado das minhas emoções que entro nos famosos burnout. Receber repetidamente sinais de que está a precisar de parar e não o fazer é uma falta de autoconsciência. De que me serve ser o melhor na sua universidade, se trabalho durante um ano e passo outro tanto tempo a soro? De que me serve um QI brilhante, mas depois não sou convidado para uma festa, não sei o nome dos colegas, não sei estabelecer e manter relações sociais, estabelecer objetivos? Aí, residem os 80% de que falo.

Diz-nos no seu livro que a comunidade científica portuguesa ainda apresenta alguma resistência à abordagem à inteligência emocional. Porquê?

A Psicologia é uma ciência que precisou de lutar muito para ser vista como tal. Como lida com temas que são entendíveis pelas pessoas, durante muito tempo foi vista como senso comum. Na verdade, estamos a estudar o comportamento humano, o cérebro humano. Há teorias muito consolidadas sobre o que acontece em cada quadro e padrão de comportamento. Acontece que a inteligência emocional não é algo que opere sozinho. Ou seja, é tudo aquilo que referi. E quando passa a assim ser, pode fazer alguma confusão e levantar a questão: “porque lhe estamos a dar um nome?” E isso cria resistências. Será que estamos a dar nome à “coisa” para a tornar pop e vendê-la? Será que isso descredibiliza o que a terapia faz? Entendo que, sobretudo, académicos mais residentes na nossa área da ciência, se perguntem porque estamos a atribuir este nome, se é um construto científico ou se é um construto que se aproveita de nomes que por cá andavam e o fazemos para “vender pipocas”.

É bom que os homens chorem, caso contrário adoecem

Sim, mas há autores que referem a Inteligência Emocional há décadas, como, aliás, refere no seu livro…

Sem dúvida. Por isso acho que estou a ser corajosa. Até agora a comunidade clínica vivia bem com isto, porque era dirigido às empresas, dizia respeito à psicologia organizacional e, de repente, alguns começaram a aplicar à clínica. O que os da velha-guarda dizem é que sempre trabalhámos isto com os pacientes. Isto não invalida que, calhando, dentro de quatro anos serei eu a dizer que não se trata de inteligência emocional, será outra coisa. Mas, agora, encontro-lhe sentido, até mesmo por uma questão de psicoeducação do público. Preciso que as pessoas entendam que isto é também uma forma de inteligência. Como temos um paradigma de sociedade tão fixado na importância da inteligência, isto cumpre uma função educativa. Logo, se tiver de lhe chamar inteligência emocional transitoriamente, sublinhando que olharmos para nós é uma forma de inteligência, então que assim seja.

Serão as nossas emoções imutáveis e o que muda é a nossa perceção sobre elas?

Essa resposta poderá ser um sim em casos saudáveis. De facto, se eu achar que o meu marido não fez o jantar porque não quer saber de mim, entende que eu é que tenho de o servir, esse pensamento vai fazer com que eu sinta raiva, revolta, necessidade de me impor. Se eu mudar a minha perceção e achar que o meu marido não preparou o jantar porque esteve com os miúdos, porque chegou atrasado, provavelmente sinto empatia, compreensão. Eventualmente, em casos de saúde mental que pressuponham essa reflexibilidade, concordo com a sua afirmação ao dizer que aquilo que sentimos está muito dependente da forma como percecionamos. Acontece que, muitas vezes, não é só assim, porque não conseguimos mudar a perspetiva, sentimos aquilo e não temos pressa de sair daquele sentimento e daquela emoção.

“Algo está a falhar quando encontro crianças que 'trabalham' mais horas diárias do que eu” – Cristina Valente, psicóloga
“Algo está a falhar quando encontro crianças que 'trabalham' mais horas diárias do que eu” – Cristina Valente, psicóloga
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Ou seja, há desconforto e, mesmo assim, perpetuamos esses comportamentos…

Sim, e se os perpetuarmos é porque, de alguma forma, estão a cumprir uma função e isso é mais produtivo se for trabalhado em clínica ou neste âmbito da inteligência emocional. Se todos os dias acaba a discutir com a sua mulher por algum assunto, no limite tem de se perguntar: “qual é a função que esta zanga está a cumprir?” Calhando, descobrimos que discutindo ambos acabam mais ‘agarradinhos’ ou que jantam fora no dia seguinte. Ou seja, o que descobrimos é que há ganhos secundários nestes comportamentos.

Quando me fala na perpetuação de alguns estados, temos dois caminhos. Um, porque está a cumprir alguma função [satisfação de necessidades] e temos de descobrir e encontrar formas mais ajustadas de chegar ao mesmo objetivo. Ou seja, no exemplo que lhe dei, imagine que tem a necessidade básica, como todos os seres humanos, de atenção e que uma discussão diária com a sua mulher é o que a traz para a relação. Isso satisfaz a necessidade de atenção da pessoa que ama. Quando descobrimos isto em clínica, procuramos satisfazer essa necessidade sem o comportamento disfuncional.

Se permanecemos neste estado, ou existe uma necessidade psicológica e emocional por resolver, ou, num outro caminho, estamos perante um quadro de rigidez e de psicopatologia para resolver. Estes últimos quadros não têm esta flexibilidade mental que pressupõem a saúde mental.

“Um erro que os pais cometem é acharem que as crianças não intuem e que não têm o ‘radar’ emocional instalado” - Rosário Carmona e Costa, psicóloga clínica
créditos: Pexels

Compreender as nossas emoções pode ir contra os modelos/estereótipos gerados pela nossa sociedade? Estou, por exemplo, a pensar na expressão “um homem nunca chora”.

É bom que os homens chorem, caso contrário adoecem [risos]. O paradigma da nossa sociedade reside, neste momento, não só nos estereótipos de género, como também no paradigma educacional, põe o foco no desempenho, no sucesso, e encara trabalhar as emoções como uma perda de tempo. Não obstante, sinto que devagarinho vamos evoluindo. O facto de ter em consulta adolescentes e adultos sem uma queixa concreta, mas para se conhecerem melhor, é positivo. Ou seja, não chegam à consulta numa perspetiva de tratamento. Mas, sim, há um conjunto de impeditivos. Por exemplo, quando temos os miúdos a chorar afirmarmos, “estás a chorar com medo porquê?”. Estamos constantemente com a pressa de subtrair emoções desagradáveis aos outros, quando temos de as sentir, de lhes tirar o significado, conseguir gerir e lidar com estas emoções e fecharmos o ciclo. Ou seja, que exista esta estabilidade absolutamente essencial para o desenvolvimento.

Estamos constantemente com a pressa de subtrair emoções desagradáveis aos outros, quando temos de as sentir, de lhes tirar o significado.

O modo como os nossos pais lidam com as suas emoções vai afetar o desenvolvimento da inteligência emocional na criança, futuro adulto?

Vai. Um erro que os pais cometem é acharem que as crianças não intuem e que não têm o ‘radar’ emocional instalado desde que nascem. Quando temos uma mãe que esteve a chorar e a criança pergunta: “o que tens mãe, estás triste?” e a mãe lhe responde “não”, isto invalida a expressão emocional junto da criança, que passa a acreditar que faz mal estar triste ou chorar; em segundo lugar, lesa este mar intuitivo da criança e a construção da empatia. Constata que alguém chora, mas a pessoa está a dizer-lhe que não. Isto é confuso.

Em segundo lugar, perdemos uma excelente oportunidade para dizer: “sim, a mãe está triste, preciso de um tempo para chorar, para estar sozinha”. Mergulhamos nesta emoção, mas também saímos dela. Ou seja, podemos ser um modelo de autorregulação. Provavelmente a criança será colaborante nesse dia e compreenderá que pode ter um papel perante o outro. Percebe que sobrevive à tristeza, como acontecerá com as zangas. Dou-lhe outro exemplo no que dizer à criança: “hoje passou-se uma coisa muito desagradável no trabalho, mas está tudo bem”. No fundo, estamos a criar familiaridade com as emoções, com a gestão do comportamento, com a reação, serão bons condutores para o desenvolvimento emocional das crianças.

Compreender os estados emocionais da criança é a oportunidade de estabelecer uma melhor relação com ela?

Sim, até diria que é um ótimo preditor de reduzir os conflitos que chegam com a adolescência. Ou seja, uma grande parte dos conflitos na adolescência dos filhos com os pais é começarem a olhar para estes como pessoas reais. Há um conceito que é a desidealização dos pais e isso acontece na adolescência. O facto dos pais se mostrarem humanos, vulneráveis, desde sempre, provavelmente será um bom preditor quando chegarem à adolescência e perceberem que os pais, berram, choram, cometem injustiças. Provavelmente os jovens estarão mais conectados com a naturalidade de todas as características do ser humano.

“Um erro que os pais cometem é acharem que as crianças não intuem e que não têm o ‘radar’ emocional instalado” - Rosário Carmona e Costa, psicóloga clínica
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A Inteligência Emocional devia ser trabalhada nas escolas?

Sem dúvida, sou profundamente crente de que haveria uma diminuição dos diagnósticos formais que hoje em dia vemos, sobretudo nas crianças com hiperatividade e déficit de atenção. Como já referi, em vez de obrigar a criança a estar quieta, porque não desafiá-la a fazer um recado? Quando estamos a trabalhar esta questão da inteligência emocional, o impacto dos sintomas já não é tão exuberante e, de repente, já não precisamos de enviar a criança para o médico ou psicólogo, porque teria uma escola que daria resposta à dimensão da pessoa e não só do aluno. Em suma, julgo que diminuiria a quantidade de diagnósticos que hoje em dia se encontram. Até porque muitos destes diagnósticos prendem-se com dificuldade de adaptação ao contexto. Ora, se o contexto fosse mais promotor, eventualmente não víamos tantas dificuldades de adaptação ao mesmo.

Não precisa de um workshop de consciência das emoções para dizer, 'hoje sinto-me triste, preciso de falar com alguém'.

As escolas deviam contar com profissionais na área da psicologia a trabalhar as questões que refere?

Pelo menos deviam estar abertas a isso. Contudo, quando falo destas competências, não estou a referir-me a nada que careça de uma especialização. Estamos a falar de algo que, intuitivamente, estamos preparados para fazer. Não precisa de um workshop de empatia para chegar junto do outro e dizer, “sinto que não estás bem”. Não precisa de um workshop de consciência das emoções para dizer, “hoje sinto-me triste, preciso de falar com alguém”. Julgo que os professores, por serem naturalmente, seres humanos têm em si este hardware. Temos é de encontrar espaço para isto. Os professores deparam-se com burocracias para tratar e resultados para apresentar, o que os faz entrar em modo automático: há um programa a ministrar e os alunos embarcam nesse comboio até ao final da escolaridade. Contudo, o que lhes vai ser apresentado mais tarde, no mundo laborar, é saberem estar numa entrevista de emprego, saberem trabalhar em equipa, chegarem a uma reunião de brainstorming e terem ideias próprias. Falta esta mudança do paradigma.

“Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
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É muito crítica em relação à utilização dos ecrãs, nomeadamente nas crianças. O digital subtrai-lhes empatia e habilidade social tão presentes na inteligência emocional?

O problema tem a ver com o uso não controlado ou desadequado. O digital tem aspetos extraordinários, aproxima culturas, possibilita-nos olhar para os outros na sua diversidade, há jogos digitais que são jogos de papéis, a capacidade de estarmos nos outros. Tudo isto, deve entrar na vida de qualquer um de nós como mais uma coisa, não pode ser a coisa. Tenho um adolescente que joga, mas também tem de fazer desporto, estar em família, com os amigos. O digital não tem, necessariamente, de ter impacto negativo na empatia ou competências, mas como um complemento na vida offline.

Nas palestras que dou nesta área da utilização dos ecrãs, quando os pais perguntam: “mas as novas tecnologias estão cá e é com isto que lidam [as crianças e jovens]”. Sim, mas não sabemos o que nos vai ser pedido daqui a 10 ou 20 anos. Somos de um tempo em que considerávamos único levar informação de um computador para outro numa disquete. Onde isto já vai?  Não sabemos o que nos espera, mas sabemos que continuaremos a ser pessoas, e temos de manter essa humanidade, conectar-nos às emoções, ao outro, prevalecer perante a adversidade, criar empatia, saber dizer ao próximo que está ao seu lado.

“Um erro que os pais cometem é acharem que as crianças não intuem e que não têm o ‘radar’ emocional instalado” - Rosário Carmona e Costa, psicóloga clínica
A autora na apresentação do livro ao lado de Catarina Furtado.

Conseguimos treinar a empatia?

Conseguimos. Se pensarmos na empatia como esta capacidade de compreender o que os outros sentem e qual é a nossa resposta para essa compreensão. Tendo em conta as características da plasticidade cerebral, podemos treinar a empatia e fazemo-lo desde crianças. Estas são egocêntricas por natureza, mas se lhe dissermos, por exemplo. “já reparaste, está ali uma criança a chorar”, estamos a treinar a empatia.

A Rosário leva ao seu livro a questão da motivação. A motivação para algo está associada a uma recompensa?

Acho que a motivação está sempre associada a uma recompensa, a questão é se é externa ou interna. Em pequenos, a motivação é extrínseca, fazemos isto para ganhar um chupa-chupa, um abraço. O que é saudável é caminharmos no sentido de a recompensa ser de bem-estar, de orgulho pessoal. Como nos motivamos para algo que nos aborrece? Por exemplo, pensarmos que isso vai ser positivo para alguém.

Tendo em conta as características da plasticidade cerebral, podemos treinar a empatia e fazemo-lo desde crianças.

Resiliência é uma palavra atualmente muito utilizada. Ser resiliente equivale a dizer que somos pacientes, resistentes ou lutadores?

A resiliência é muitas vezes confundida com a paciência e com a capacidade de suportar. Tenho pacientes que me dizem, “tenho todos estes problemas, mas sou muito resiliente, vou aguentar”. Resiliência não é isto, não é aguentar, não é suportar. Não vamos dizer a uma vítima de violência ou de agressores que é resiliente, que permanece ali. Suportar não é necessariamente uma coisa boa. A resiliência pressupõe desenvolvimento, que passámos por situações adversas, emocionalmente desgastantes, mas que crescemos depois delas. Trabalhava muito com miúdos institucionalizados, que passavam por coisas dificílimas, mas que passaram pelas adversidades e que me diziam que não queriam que mais nenhuma criança passasse por isso. Ou seja, a capacidade de passarmos pelas maiores dificuldades e sairmos disso.

No final do livro deixa uma mensagem aos seus filhos. É uma espécie de caixa do tempo onde, um dia eles encontrarão uma mulher que mudou ou uma mulher que resgatou algo que sempre esteve lá?

Acho que a mulher que resgatou algo que sempre esteve lá. Muitas dessas características, tenho-as muito naturalmente. Vivendo na sociedade em que vivo, por vezes precisava de me desligar, de me desconectar, vivendo neste lado mais mecânico e mais automático, precisamente por uma questão de sobrevivência. Tive muitos anos como sendo a única referência em Portugal para as dependências da internet, chegava a ter três palestras por semana, entre outros compromissos. Misturava-se o meu sentido de missão com a necessidade de sobrevivência e desconectava. De repente, vejo-me dois ou três meses “fora”, numa cama de hospital. Parei e pensei. Concordo que fui resgatada e é uma mensagem que quero passar no meu livro: ditarmos as regras de como queremos viver.