Cantor, compositor e multi-instrumentista, David Fonseca é, assumidamente, tímido, mas qualquer pessoa que já tenha assistido aos seus espetáculos, em que não raras vezes se transfigura em personagens excêntricas, teria dificuldade em confirmá-lo. Foi precisamente esta dualidade que nos motivou a conversar com o músico. Seria a timidez um obstáculo que teve de transpor ou, pelo contrário, uma ferramenta que colocou ao serviço da criatividade, nas diversas áreas em que a exerce? A resposta, como tantas vezes sucede, encontra-se algures entre as duas hipóteses. «O mundo é mais interessante quando uma pessoa não se fecha tanto», assegura.
Fazendo um balanço destes anos de carreira e lembrando-se do adolescente que foi, a timidez foi mais um obstáculo que teve de superar ou uma ferramenta que pôs ao serviço do trabalho?
Hoje, obviamente, não sou nem um décimo tímido do que era há 15 anos porque esta profissão obrigou-me, de alguma forma, a ter de agir contra a timidez. Mas, no fundo, continuo a ser um tímido clássico, aquela pessoa que tem medo de falar com os outros e que não sabe o que dizer na primeira frase. Esta profissão que acabei por ter… Não foi bem uma coisa que escolhi, acabou por vir a acontecer-me ao longo do tempo…
Eu não tinha outra forma de lhe reagir senão tentar empurrar a timidez o mais rápido possível para outro lado. Nos primeiros anos de palco, nunca tirava os olhos do chão. Entrava, cantava, dizia obrigado no fim e ia-me embora. Ao longo dos anos, tenho perdido muita dessa timidez porque faz com que o espetáculo fique melhor e com que eu aproveite mais, mas foi algo feito muito lentamente, não foi um processo simples.
Nesses anos em que começou a pisar o palco, era algo que o preocupava?
Não, porque comecei a fazer música com os Silence 4 e tivemos logo muito êxito, o que quer dizer que o quer que eu estivesse a fazer estava bem, não tinha nenhum dado que me dissesse que podia ser mais interessante... No primeiro ano ou dois em que comecei a trabalhar a solo as coisas não eram muito diferentes mas, de repente, comecei a querer fazer outras coisas e tive, efetivamente, que ultrapassar a timidez para conseguir. Porque sentia que tinha muitas ideias que gostaria de por em prática, mas que não estava a fazê-lo porque eu próprio me derrotava e pensava «Ah, mas não vou ser capaz de fazer isto»...
Houve um momento de viragem?
Acho que tudo começou quando fiz um concerto na Aula Magna, em 2005 talvez, e decidi que era engraçado cantar uma canção de Roy Orbison. Gosto muito de Roy Orbison, é uma figura muito curiosa e achei que a melhor maneira de lhe fazer um tributo era, a meio do espetáculo, entrar vestido todo de branco e cantar a música em cima de um piano. Ora, isso era completamente contra as regras de um tímido clássico, eu não podia fazer isso.
Mas foi a primeira vez que disse «Vou mesmo fazer isto, ainda que seja uma maluquice e vá sentir muita vergonha, quero tanto que vou fazer». E aquilo correu tão bem que, a partir desse momento, pensei «Vou fazer tudo o que me passa pela cabeça» e essa timidez começou, muito lentamente, a dar lugar a uma espécie de desafio. No fundo, tentei desafiá-la mais e mais e mais e levar-me um bocadinho para lá dela.
Esse lado mais ousado só se manifesta quando sobe ao palco?
Sim, no fundo, por mais louco que consiga ser na vida artística, a timidez nunca desaparece. É ela que me faz regressar ao chão- Por isso, consigo conviver bem com ela. Acabei por me tornar uma pessoa muito sociável, mas não vivo a pensar que tenho de sair e estar com pessoas sistematicamente, gosto muito de me afastar. Acho que uma parte da minha timidez vai trazer-me sempre de volta para um local mais sossegado. Mas, sim, existe essa dualidade entre o que se é em palco e no dia a dia. Já me vesti de boxeur, com luvas e os olhos pintados de preto, entre muitas outras coisas. E eu não faço isso na minha vida normal (risos).
Por que é que é tão importante esse contraste?
Acho que estar em cima do palco é como dar corpo a uma peça de fantasia que acaba por se tornar real durante aquelas duas horas. Uma das maravilhas da música é as pessoas poderem ir a um sítio e fazerem parte dessa festa que não é habitual no dia a dia. É muito mais importante fazer uma festa hiperbolizada no palco do que reproduzir a nossa vida.
As pessoas já veem a sua vida todos os dias, a ideia é que esteja lá uma coisa completamente diferente e mais enérgica. Por isso é que havia tanta coisa que eu queria fazer que não podia deixar que a timidez me dissuadisse. Agora, realmente vai uma distância muito longínqua entre aquele miúdo de 19 anos que era um nerd típico…
Se pudesse voltar atrás no tempo e falar com esse David, o que é que lhe diria?
Olhe, que ia ficar tudo bem (risos). Porque, no fundo, a tipologia de um nerd é de um miúdo um bocadinho excluído face à ação à sua volta. Eu sempre achei que ia estar junto das pessoas excluídas dessa ação, embora já tivesse uma vontade muito grande de que acontecessem outras coisas. Às vezes, vejo miúdos que são tal e qual como eu era no liceu e acho impressionante como a pessoa que eles foram ver era exatamente igual a eles, muito tímida.
E é muito bom sair dessa timidez, o mundo é mais interessante quando uma pessoa não se fecha tanto. Se alguém visitasse o meu liceu, eu era o último que diriam que ia ser músico e vestir-se de boxeur. O que revela que as pessoas, às vezes, são uma surpresa e eu considero que a minha vida foi uma surpresa também para mim.
O facto de ser introvertido contribuiu para o artista em que se tornou?
Sim, imenso, porque quando uma pessoa é tímida e introvertida usa o tempo de forma menos social, mas acaba por fazer mais coisas. Devo ter visto mais 300 filmes do que os meus amigos da adolescência ou mais mil ou dois mil, porque ir ao cinema era das coisas que gostava mais de fazer. Ainda hoje vou quase todas as semanas. Lia e fotografava muito, andava sempre com a câmara e passava semanas no laboratório a revelar...
E também foi por isso que comecei a compor. Como era muito introvertido, acabava por transformar em canções as ideias que queria expor de alguma forma. Grande parte das canções que fiz para os Silence 4 são fruto de uma certa melancolia introspetiva que tem a ver com essa forma mais tímida de olhar o mundo. No fundo, era uma espécie de mundo secreto que eu tinha e explorava nas canções.
A timidez foi um catalisador da sua criatividade?
Sim, há uma série de coisas que a introspeção me trouxe. E digo introspeção porque acho que um tímido é, também, uma pessoa mais introspetiva. Acho que arranjei uma maneira de esta timidez introspetiva sair de forma positiva e ter um peso grande na minha vida artística. Digamos que não peguei nela e pensei «Sou um desgraçado, sou tímido». Não, pensei «O que é que vou fazer com este tempo e com estas coisas todas que penso e sinto» e acabei por transformá-las em canções, em fotografias e no meu gosto por cinema.
Eu vivia a introspeção de forma muito ativa, tinha muita curiosidade quanto ao que ela me traria. Era como construir sistematicamente um mundo, estava sempre a subir a pirâmide e a ver o que conseguia avistar. Ainda hoje, quando componho e escrevo, a imagem que tenho é de uma pessoa a descer um poço. Tenho curiosidade em saber o que se retira lá do fundo.
Nunca sentiu isso como algo negativo?
Não acho que seja negativo, muito pelo contrário. Tenho de ter alguma fibra para conseguir lidar com sensações e sentimentos fortes. Houve uma fase em que a introspeção e a timidez não foram muito positivas, mas acho que tem a ver com o crescimento, com a ideia de nos questionarmos a nós próprios. Comigo foi um bocadinho tardio, aos vinte e tal anos. Mas não acho que tenha sido alguma vez extremamente infeliz por isso, sempre consegui identificar alguma coisa útil nesses estados de espírito.
Na entrevista que deu ao Daniel Oliveira no programa «Alta Definição» falou da sua avó, de como era uma pessoa aberta ao mundo, em descoberta e evolução contínuas. Apesar da introspeção, também sempre olhou para o mundo com muita curiosidade...
Sim... A minha avó era filha de faroleiros e, na infância, viveu na ilha das Berlengas. E esta imagem decorrente de ela ter de remar quatro horas até à costa para comprar hortaliça ou o que quer que fosse é muito viva. Quando se vive e nasce numa condição em que estes são os princípios de vida, tudo o resto só pode vir a ser interessante. Ela sempre simplificou a vida dessa forma. Algo tão simples como ir comprar uma coisa é muito complicado, mas nada é um problema.
Vi, muitas vezes, a forma como a minha avó e o meu avô reagiam e não sei se herdei isso mas, pelo menos, quero muito fortemente exercer o mesmo tipo de ação perante o mundo. Porque a minha avó foi muito feliz, teve imensos dissabores na vida, mas sempre os enfrentou de forma muito positiva e proativa. A única forma de ser, a única escolha que se tem, é fazer. Não é ficar a contemplar a própria tristeza ou timidez. Mas fazer alguma coisa com isso, fazer o que quer que seja com o que se tem nas mãos… Essa foi uma lição muito grande que aprendi com ela.
Texto: Rita Miguel
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