No dia em que conquistou a certificação em sushi, atribuída pela entidade nipónica All Japan Sushi Association, Anna Lins sentiu o sabor da justiça. Do estrangeiro chegava a confirmação de que a decisão de estudar cozinha, depois de um curso em artes gráficas e de uma bolsa para estudar fotografia em Inglaterra tinha dado frutos. Os anos de trabalho duro e a paixão pela cultura gastronómica asiática, mais concretamente a japonesa, desaguavam em reconhecimento. Anna tornava-se a primeira sushiwoman nacional, provando como imerecida a frase que muitas vezes escutou: “O sushi não é para as mulheres”.

Um reconhecimento que, em 2016, levou Anna, a par de outras 11 mulheres que se destacaram na sociedade portuguesa, a receber em mãos uma réplica personalizada da figura de uma das bonecas mais icónicas do mundo: a Barbie.

Um apontamento num percurso que arrola profissionalmente o trabalho em restaurantes como o Midori (Penha Longa Resort, em Sintra), o Tsuru (Quinta do Lago, no Algarve), o Bica do Sapato (Lisboa), o QB Essence (Oeiras) ou o Umai (Lisboa) que dará lugar ao Izakaya.

Chefe Anna Lins: a estória de superação da primeira sushiwoman portuguesa
créditos: @Mediterannean Diet and Gastronomy

Anna mantém-se, atualmente, como Chefe Executiva do Grupo Go Natural, acumulando com a docência na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE) onde leciona as disciplinas de Cozinhas do Mundo e Cozinha Dietética. Uma mulher de agenda preenchida que a “obrigou” a passar para Rui Santos a pasta da chefia da cozinha do restaurante Miss Jappa onde exerceu desde 2016. Para a primeira sushiwoman portuguesa o tempo é um bem precioso. Tempo para crescer na aprendizagem e para viajar. Em breve irá fazê-lo. Vinte dias de imersão gastronómica na China, país asiático que fascina a empreendedora.

Um fascínio que verte para esta conversa onde não faltam alguns dos temas que preocupam Anna como a sustentabilidade alimentar e a educação para uma mesa equilibrada, nomeadamente a das crianças e jovens. Também não faltam as palavras de evocação das memórias de infância, estas de proximidade ao meio rural e à fonte dos alimentos. Um apego que a nossa interlocutora sente ainda hoje, vertendo para a sua cozinha.

Anna apesar de ter presente tudo o que conquistou sabe que continua em processo de aprendizagem. “Posso assumir-me como reprodutora das receitas asiáticas. Nunca serei parte integrante das culturas que elas representam”, confidencia-nos com a humildade de quem vai continuar a investir numa paixão com mais de duas décadas.

Anna Lins
Em 2016, Anna, a par de outras 11 mulheres que se destacaram na sociedade portuguesa, a receber em mãos uma réplica personalizada da figura de uma das bonecas mais icónicas do mundo, a Barbie. créditos: Mattel

Como é que uma aspirante a fotógrafa acaba embrenhada na cozinha japonesa? É uma questão de estética?

Julgo que foi uma oportunidade de vida. Quando fiz o meu curso de fotografia fui fazer um intercâmbio com um colégio, em Inglaterra. Quando regressei ao nosso país vinha com uma cabeça muito londrina e pouco portuguesa. Estamos a falar de 1995, o mercado fotográfico em Portugal era pouco avançado e não me consegui inserir. O caminho passou por dedicar-me a outra coisa que fazia bem. Todos os meus amigos me diziam, “vai fazer um curso de cozinha”. Fiz o curso da Pontinha, no Centro de Formação Profissional para o Sector Alimentar e depois a licenciatura na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril.

Achei na altura que faltava alguma componente prática ao curso. Assim, no segundo ano lancei-me num part time na Quinta da Penha Longa. Na época havia uma vaga no Midori, o restaurante japonês do Penha Longa Resort. E aí comecei. Tornei-me a primeira mulher a trabalhar no Midori, uma casa com um diretor de Food and Beverage japonês e muitos clientes nipónicos. Não raro questionavam: “Uma mulher na cozinha?”.

Independentemente desta questão, de facto, a estética estava muito presente o que fazia a ponte com a minha experiência anterior nas artes gráficas e fotografia. Por exemplo, antes de ir para o Sushi Bar, tive uma semana a fazer Ikebana [arte japonesa dos arranjos florais]. O meu diretor avaliava-me para perceber se tinha sentido estético. Só depois desta etapa é que fui para o Sushi Bar para trabalhar com o peixe.

Anna Lins.
créditos: Tânia Fernandes

Como a Anna refere, a cozinha japonesa aparece como uma oportunidade de vida. Mas as coisas só nos agarram se nos fascinarem. Em concreto, para além da estética, o que a fascinou?

O produto e a qualidade. Os japoneses não acrescentam muitos molhos, temperos, máscaras aos alimentos. A escolha do produto base é muito criteriosa e bem pensada. Ali não vai encontrar loucuras de temperos com pimentas e ketchup para disfarçar tempero. Eles são muito simples. Confesso que, por vezes, até me trazia alguma confusão certos pratos que para nós ocidentais são difíceis de ingerir mas que para um nipónico são naturais. Por exemplo, o Yayako, um tofu muito macio mergulhado em molho de soja. Tinha alguma dificuldade em perceber como o tofu, algo tão insípido, se tornava supremo mergulhado em soja diluída. Na altura comecei também a provar os legumes crus. Diziam-me “agora prova a abóbora em cru”. E descobri que era fantástica. Ou seja, traz-nos uma nova dimensão do produto e isso faz-nos pensar em novos caminhos.

Os japoneses não acrescentam muitos molhos, temperos, máscaras aos alimentos. A escolha do produto base é muito criteriosa e bem pensada. Ali não vai encontrar loucuras de temperos com pimentas e ketchup para disfarçar tempero.

Ainda falando de origens... no seu caso podemos dizer que a semente para a cozinha também está no seio familiar?

Julgo que sim. Cresci numa casa agrícola, com hortas. A minha avó ia à horta buscar os alimentos, muitas vezes mesmo antes da refeição. Essa mesma avó, quando arranjava a Couve Penca, dava-nos os talos para os provarmos. Eram sumarentos e doces. Depois, quando crescemos, tendemos a esquecer e a dar menos importância a estas questões. Só mais tarde as retomamos. Refleti muito sobre os gestos do quotidiano de que nos esquecemos mas que nos deixam ´mossa`.

A Anna refere amiúde a questão da perda da nossa memória coletiva. Afastámo-nos dos territórios e das origens dos produtos. Estamos a perder a nossa identidade?

Há 10 ou 15 anos dizia isso com alguma certeza. Hoje julgo que está a ocorrer um certo retorno às origens. Nas pessoas que estão a ser formadas na Escola [Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril] percebe-se que há uma reaproximação. Julgo que, em muitos casos, as pessoas não têm consciência de que estão afastadas dessas origens. Atualmente, quando não têm avós que lhes sirvam de referência, vão à procura do produto e dos produtores locais. Atenção, não digo com isto que estamos a recuperar o que perdemos mas damos passos positivos.

Paulo Morais e Anna Lins
Anna Lins e Paulo Morais, uma parceria na vida e também em restaurantes como o Izakaya. créditos: AGENCIA ZERO

Por exemplo, este ano criei um grupo de WhatsApp com os alunos do primeiro ano. Dei um nome a este projeto, chamamos-lhe Food Diaries , e nele os meus alunos têm de fazer posts com fotografias dos pratos que comem. Durante o ano vemos as fotos no shopping, no sushi bar e quando chegam as férias começamos a ver coisas diferentes, nas casas dos pais, dos avós. Inicialmente havia uma certa vergonha nesse tipo de produto ou prato, mas incentivei-os e vejo agora que as alheiras ou as migas com carapaus fritos já os motivam. Ou seja, ainda há a capacidade para os motivar e os fazer ir à procura. Por exemplo, os alunos que vieram após as férias da Páscoa trouxeram-me chouriças e alheiras para os colegas provarem em ambiente de sala de aula.

A Anna acha que é possível praticar em Portugal uma restauração assente em produto local?

Considero que falar de local, em Portugal, é falar de todo o nosso espaço territorial dada a nossa dimensão. A narrativa dos norte-americanos que afirma que local é o que está num raio de 40 quilómetros é uma utopia. No arranque, esta lógica que afirmo não é assim tão fácil porque não estão identificados todos os produtores nem criados os canais para fazer chegar a todos os lugares os produtos. Contudo, se houver algum reforço no que respeita à agricultura, ganhamos com isso. Não quero entrar em discurso politizado mas quando entrámos para a atual União Europeia e esta determinou que Portugal era o grande produtor de tomate e pimento, perdemos alguns produtos nossos. Devíamos reconquistar a autossuficiência e fazer o que fazíamos há 40 anos para podermos, de facto, falar em local e não estarmos dependentes, por exemplo, de produtos da China.

Considero que falar de local, em Portugal, é falar de todo o nosso espaço territorial dada a nossa dimensão. A narrativa dos norte-americanos que afirma que local é o que está num raio de 40 quilómetros é uma utopia.

Como se faz então a síntese entre as nossas memórias portuguesas e a apresentação de uma cozinha nos antípodas da nossa?

Foi muito difícil. Senti assim que comecei a trabalhar. Tinha facilidade na reprodução das receitas pois já estavam em livro. Era mais difícil criar receitas de raíz na lógica dos sabores daqueles países pois não tinha memórias sobre as cozinhas tailandesa, japonesa, chinesa. Foi um trabalho de grande dedicação e, não obstante, ficamos longe do original. Nunca hei-de chegar ao detalhe e compreensão de quem nasceu naquelas paragens. Há que perceber as bases para compreender os sabores daqueles países. Em Portugal pego em azeite, cebola, em alho e uma folha de louro e tenho um refogado. Não posso fazer o mesmo em relação ao Japão, onde vou usar óleo de sésamo e ervas aromáticas mais suaves. O que posso fazer é trabalhar muito para me aproximar desses outros sabores. Posso assumir-me como reprodutora das receitas de lá. Nunca serei parte integrante daquelas culturas.

anna lins
Sushi que Anna Lins desenvolveu ainda no seu percurso no restaurante Miss Japa.

Em concreto, que cozinha desenvolve, considerando que esta gastronomia é um mundo?

Durante muitos anos dediquei-me à cozinha japonesa e depois, em conjunto com o Paulo Morais [restaurantes Kanasawa e Tsukiji], viajámos por outros sabores do Sudeste Asiático. Hoje sinto-me confortável com a cozinha japonesa e tailandesa. Tive uma grande paixão pelas cozinhas chinesa e coreana. Mas ainda há tanto para aprender, há tantos substratos e fundamentos históricos. De tal ordem grandes que é difícil lá chegar.

A atribuição da certificação pela principal associação japonesa de sushi significou para si a afirmação da mulher num mundo ainda dominado por homens?

Não tomei tanto como uma questão relacionada com o ser Mulher, mas antes como um porta-estandarte da Anna. Ao longo do percurso sentimos algumas coisas na pele. O Midori, de dois em dois anos, mandava dois cozinheiros para hotéis congéneres no Japão para formação. Quando chegou o meu ano não me quiseram enviar porque, como era mulher, não me iam ensinar nada no Japão. Acresce que a todos os clientes japoneses, sempre que lhes dizia que ia passar para o Sushi Bar, mostravam uma expressão de negação. Porque sou mulher. Foram muitos anos a ouvir dizer que as mulheres têm as mãos quentes para o sushi. Mitos. Quando finalmente fui certificada e me tornei a primeira mulher portuguesa a fazer sushi, vi-o como uma glória.

A obtenção da certificação é um processo complexo?

Julgo que era mais no início das atribuições. As últimas certificações banalizaram-se. No arranque tínhamos um representante japonês, numa primeira sessão na Escola de Hotelaria e Turismo de Lisboa. Em concreto, hoje em dia está muito centrada na Segurança e Higiene Alimentar, o que é muitíssimo importante, mas menos na técnica.

A cozinha japonesa está a ser bem tratada em Portugal?

As coisas acabam por tomar proporções quando entregues ao domínio público. O Governo japonês queria, inicialmente, ter um número de fiscais que iriam mundo fora, um pouco como acontece com as estrelas Michelin, para atribuir um selo de qualidade aos restaurantes que, de facto, representassem a cozinha daquele país asiático. Depois, a opção caiu nas certificações e formações. Em síntese, julgo que a cozinha japonesa encontra estabelecimentos onde é bem tratada e noutros é completamente chacinada. É como tudo: se formos comer uma feijoada ao Nepal, não terá nada a ver com a nossa [risos].

No fundo acabamos por ocidentalizar estas cozinhas, certo?

Sim, como em todas as cozinhas. Por exemplo, o arroz do sushi é o elemento fundamental. O próprio termo significa “arroz avinagrado”. No Japão, nos territórios do sul do país, este arroz é mais avinagrado, e nos do norte, mais adocicado. Quando chegamos à Europa o sabor é parecido, já os brasileiros adoçam-no e na Noruega parece um arroz-doce. Há uma aculturação e modificações que vão adaptar os pratos a cada país. Também fomos buscar à Índia as especiarias no século XV e hoje, entre nós, são como as vemos. Não podemos dizer que o sushi que aqui comemos é o japonês. É um sushi que saiu do Japão. No meu caso, se me sentar à mesa de um restaurante sou purista e se não me agradar, não o como. Faço como os japoneses. Antes da refeição peço uma bolinha de arroz: se gostar então peço o sushi; se não me agradar há outros caminhos.

Não podemos dizer que o sushi que aqui comemos é o japonês. É um sushi que saiu do Japão.

Os portugueses gostam de arriscar em novas cozinhas ou cingem-se ao elenco habitual?

Demorou muito tempo para que estas cozinhas asiáticas entrassem na cultura portuguesa. Como analogia, gosto de dizer que nestas questões metemos a pontinha do pé para ver se a água está fria [risos]. Tínhamos muitos preconceitos. Se provávamos e não gostávamos estava posto de lado. Agora as pessoas acham giro experimentar, consideram uma boa atitude. Há um público mais aberto à descoberta. Mas não sei se dariam o mesmo passo se entrasse cá a cozinha da Islândia [risos].

Tóquio
Jardim em Tóquio, um dos destinos de viagem no caderno de concretizações futuras de Anna Lins.

O que é para a Anna um prato de cozinha nipónica audacioso?

Algo que tenha texturas diferentes das que estamos habituados. Por exemplo, o Natto, o feijão de soja em início de fermentação a meio caminho da pasta Miso em que se começa a degradar colando-se um pouco à boca quando o ingerimos. Cheira a queijo fermentado muito intenso. É só um ingrediente, não é um prato, e que nunca arrisquei a levar à mesa portuguesa. Exceções feitas, no Midori, com clientes nipónicos.

É intenso para uma portuguesa apresentar uma refeição japonesa frente a clientes nipónicos?

É sempre. Há uma tensão muito grande e é um papel que assumo pessoalmente. Se há um cliente japonês no restaurante sou eu que cuido dessa mesa. Ao menos se correr mal a responsabilidade é minha.

A Anna tem mostrado preocupação pela questão da sustentabilidade alimentar e, já agora, o desperdício alimentar. Gostaria de a escutar a este propósito, percebendo como os transporta para a sua cozinha?

A cozinha que pratico mais, a japonesa, é regrada e com pouco desperdício. No peixe é aproveitada a pele, as escamas, tudo. Para mais, como referi antes, cresci na casa dos meus avós, uma casa de agricultores onde nada se desperdiçava. Por exemplo, gostava dos segundos pratos, aqueles que a minha avó fazia com os restos das refeições. Recordo-me de como era aproveitado o bacalhau cozido com batatas. Com as sobras fazia-se o bacalhau à Gomes de Sá o que, pessoalmente, achava muito mais interessante do a versão cozida. Isto foi transposto para a minha vida profissional, ou seja, tudo tem de ter uma segunda vida. Dou um exemplo habitual aos meus alunos. No Miss Japa [Anna passou recentemente a chefia da cozinha a Rui Santos] usamos o pepino nos recheios de sushi e a casca é cortada em juliana para fazemos um pickle para esse mesmo recheio. Por sua vez, o bartender faz um cocktail onde precisa do sumo de pepino e usa também os caroços. Se pensarmos como estamos a estruturar a nossa carta conseguimos, de certo modo, utilizar tudo.

A cozinha que pratico mais, a japonesa, é regrada e com pouco desperdício. No peixe é aproveitada a pele, as escamas, tudo.

Outra das preocupações da Anna prende-se com a alimentação saudável. Neste aspeto, em Portugal, não considera que se fala muito e se faz pouco?

Sim, fala-se muito. O fazer é mais difícil. Estive a conceber pratos para servir em âmbito escolar. A Go Natural [Anna Lins é a Chefe Executiva da marca] tem cantinas escolares. Equilibrar uma refeição que está estudada cientificamente no que respeita a macronutrientes, proteínas, hidratos e legumes, por exemplo, é complexo. Temos de dar muitos passos para voltarmos a pôr as crianças a comerem bem. Naturalmente também tem de sair de casa a educação alimentar, não basta tirar o mau produto dos lineares das superfícies comerciais. Aliás, a família é o pilar de toda esta estrutura.

Sei que ainda não visitou o Japão. Mas, se lhe fosse dada a oportunidade de visitar este país, que lugares elegeria para uma experiência gastronómica?

[Risos] Nunca fiz um planeamento do que iria visitar no Japão. Gostaria de ir a Tóquio e a Osaka e também ao bairro de Shibuya, na capital. E claro visitar o interior rural, com os templos budistas e a cozinha tradicional com os menus kaiseki e todos os seus preceitos.

Não lhe vou perguntar que projetos tem para o futuro, pois este é um lugar incerto. Pergunto-lhe o que está a concretizar neste momento e de que forma terá expressão no futuro?

Essa é uma questão muito filosófica. Gostaria de ter tempo para concretizar os meus projetos. Em hotelaria é difícil. Na prática, um bom plano seria o de arranjar tempo para mim, para crescer intelectualmente. Vou fazer em novembro uma viagem gastronómica de 20 dias à China. E continuo empenhada na docência e projetos na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril.