Em apenas 10 meses, o Adega, projeto de assinatura que o chef David Costa foi liderar em San José, na Califórnia, conseguiu chamar a atenção dos inspetores do Guia Michelin, e a estrela chegou nesse ano. Até há pouco tempo, era o único restaurante português nos Estados Unidos presente no famoso guia, tendo agora a companhia do Frevo, em Nova Iorque.

Desde 2019 que gere também a Pastelaria e o Petiscos, um restaurante onde consegue cozinhar da forma como a avó o ensinou. Natural de Santarém, foi em Lisboa que começou a construir a sua identidade gastronómica, aprendendo com chefs como Joachim Koerper, do Eleven, ou Henrique Mouro, do Assinatura.

O regresso a uma cozinha portuguesa aconteceu no Matiz, graças ao convite para participar no Les Dîners Sofitel, com o chef Daniel Schlaipfer.

O chef passou por várias cozinhas conhecidas, em Lisboa, até ter a oportunidade de ir para os Estados Unidos. Existem diferenças desse David que esteve por Lisboa do David de hoje?

O David de Lisboa era um cozinheiro e continua a ser cozinheiro. Chef não é uma profissão, é só o oposto. Era um cozinheiro que estava a tentar construir o meu caminho, aprendendo com os outros chefs e nesse momento eu achei que já estava preparado para seguir sozinho, com uma equipa que depois criei. Nada se faz sozinho nesta área. Esse David estava à procura de tudo e mais alguma coisa, como continuo a procurar, mas são perspetivas diferentes hoje em dia. Na altura era mais como cozinheiro e aprender tudo o que podia, de tudo e de todos, para começar a criar o que eu quero fazer da cozinha. Hoje em dia continuo a aprender, mas já sei o que é que eu quero, qual é a minha identidade e o que pretendo fazer e no dia que disser que já aprendi tudo é mau sinal.

O chef foi para os Estados Unidos, mais precisamente San José, em 2015, pegar num restaurante que já existia.

Sim, era um restaurante familiar português que existia há 33 anos e era o último restaurante português da cidade, no Little Portugal, e nós quisemos dar essa continuidade. Podia ter sido noutros sítios, mas decidimos que seria ali, fazia todo o sentido, porque o principal objetivo era abrir um bom restaurante português. Nunca abrimos a pensar numa Estrela Michelin. Simplesmente apareceu e também não ia dizer que não, como é óbvio.

Chef não é uma profissão, é só o oposto

Voltando um pouco atrás, como surgiu o convite de ir para San José?

Na altura fui com a minha namorada (Jéssica Carreira, chef de pastelaria) porque os pais dela queriam abrir um restaurante. E nós fomos. Ela também trabalha na área. As coisas não funcionaram pessoalmente, mas eu continuo a trabalhar com eles. Ela decidiu sair, hoje em dia está numa outra cidade, num hotel, e eu continuei com o Carlos e com a Fernanda e estamos super bem. Estamos bem de saúde.

E a Estrela Michelin foi uma surpresa?

Ao fim de 10 meses, foi. Eu sabia que eles nos tinham visitado. Nós abrimos em dezembro de 2015 e em abril (de 2016) visitaram-nos e meteram um tweet a dizer que o restaurante tinha excelente comida portuguesa e uma fantástica seleção de vinhos portugueses. Mas jamais pensaria que seria para uma estrela Michelin. Pensei "vieram ver o que se está a fazer". Nunca pensei que fosse para isso. Foi bom, mas foi um bocado trabalhoso.

Disse numa entrevista que o trabalho a partir daí, triplicou.

Sim, e estivemos mais de um ano, acho que foram 14 meses, sem reservas. Estava sempre cheio. Porque nós tínhamos o nosso sistema bloqueado em três meses. Por exemplo, hoje abria para daqui a três meses, amanhã abria mais um dia e assim sucessivamente. E passámos de dar 50 jantares para 100, 120. E os cozinheiros eram os mesmos.

Foi um grande desafio?

Foi. Tinha mais horas de trabalho, principalmente para mim e na altura para a Jéssica. Ao fim de seis anos consegui ter uma equipa em condições. Acho que a pandemia também foi boa por isso. Foi muito difícil em termos de staff, e com a qualidade também. Sobrava sempre para nós. Não se pode trabalhar 12 horas por dia. Ou, poder, pode, mas vai ficar muito mais dispendioso. Lá há regras e têm de ser cumpridas. Não se pode fazer mais de 50 ou 60 horas, por semana. Aqui também devia ser assim.

Sobrou para vocês.

Sim, sobrou um bocadinho mais. Foi exigente, mas foi bom porque faço o que gosto.

Foi uma mais valia ter pegado num restaurante que já tinha 33 anos? Porque o que existia mudou.

Acho que foi um pouco indiferente nesse sentido, em termos de clientes, porque para já (o projeto) era uma coisa totalmente diferente. Era um restaurante português, mas era um restaurante português de travessa, familiar.

Mesmo o nome mudou.

O que agrada às pessoas e aquilo que gostam é da história em si, porque fomos pegar no último restaurante português. Nós não estamos na melhor zona da cidade, e toda a gente diz "porque é que vieram abrir aqui um restaurante estrela Michelin"? Primeiro porque não fui abrir um restaurante estrela Michelin, fui abrir um restaurante português no Little Portugal e no sítio onde ficava o último restaurante português da zona. E há muita gente que não sabe isso. Depois dizem "ok, então isso faz todo o sentido". Veio a estrela, e claro que é bom.

E não mudaram de sítio.

Não. Nem temos planos para mudar.

Como é a dinâmica dessa comunidade?

Há muitos grupos recreativos, principalmente açorianos, porque há muitos açorianos naquela área. Um bocadinho mais envelhecida, infelizmente. Principalmente em termos de negócios. Acho que os filhos, que já nasceram lá, não é que queiram estar ligados a Portugal, mas têm receio em investir e receio em fazer alguma coisa que não dominam tanto. Estou a falar na área da restauração, mas pode ser um bar, pode ser um café, pode ser uma ourivesaria. Há lá uma ourivesaria portuguesa ainda. Mas o senhor já está a ficar velhote e acho que quando ele decidir fechar não vai reabrir. Não sei se algum filho ou alguém vai seguir esse caminho, é difícil. Naquela rua chegou a haver três padarias, pastelarias, três ou quatro restaurantes. E hoje em dia há um restaurante.

Portugal não fica propriamente perto. Para o chef estar aqui, quanto tempo demorou a viagem?

Foram 11 horas para cá e para lá 12 horas. Para cá perde-se praticamente um dia, porque saímos num dia e chegamos no dia a seguir. Para lá ganhamos um dia.

De que forma a crítica norte americana tem olhado para o restaurante?

Por enquanto de uma forma boa e espero que continue. San José é a capital do Silicon Valley e há muitas culturas. Nesse sentido é bom, querem experimentar coisas novas, diferentes. Desde que sejam com qualidade, gostam. E muitos também, porque já estiveram cá, querem matar saudades, alguns querem vir a Portugal e saber o que é que vão comer e às vezes buscar algumas recomendações. Inicialmente acontecia pouco, mas hoje em dia acontece muito, bastante até. Depois temos aquelas ligações com Goa, Macau. E isso é bom.

E há portugueses em Sillicon Valey?

Hoje em dia já há uns emigrantes na Google, no Facebook, na Apple, e são meus clientes no Adega. O pessoal mais velho (comunidade portuguesa em San José) acha que aquilo não é português. Mas no Petiscos já temos essa aceitação, já vão, adoram e voltam muitas vezes. São pessoas que acham inadmissível pagar 200 dólares por um jantar, são coisas pequeninas, um menu de sete pratos. No fim, com os complementos, acabam por ser 13 ou 14 momentos. Mas o que a pessoa paga são sete pratos. E acham ridículo pagar-se tanto dinheiro. Mas são capazes de comer um pedaço de carne por 150 ou 200 dólares. São prioridades. No Petiscos vão, adoram, voltam, é outra mentalidade. Também é muito mais tradicional. Depois, esse pessoal da Google, Facebook, vai aos dois porque são mais novos.

Como é a cena gastronómica na Califórnia?

Na Califórnia há muito o que eles chamam de cozinha californiana, que também é um bocadinho mais ligada à terra. Porque também têm produção de praticamente tudo, conseguem ter bons produtos. E há uma preocupação com a sustentabilidade, com o biológico. Mas continuava a haver muita fast food. Porque (a área) é enorme. San José tem um milhão de habitantes, 10% de Portugal. É a décima maior cidade dos Estados Unidos. A área metropolitana de Los Angeles são 15, 16 milhões. É muita gente e há mercado para tudo.

Falando em produtos, tiveram que fazer alguma cedência em termos de prato? Algo que o público norte americano não goste?

Uma coisa que defini e algo que me disseram foi "não americanizes a cozinha portuguesa". Pensei, “não vou pôr mais doce, para os americanos quase tudo é mais doce. Vou tentar não o fazer, mas não sei se eu vou conseguir”. E até hoje nunca tive que mudar nada. Há coisas que faço como a minha avó fazia, como ela me ensinou a fazer, sobretudo no Petiscos. Há coisas que faço como se estivesse em minha casa, com os meus pais, ou com a minha avó, só mudo alguns produtos.

Há facilidade em conseguir encontrar os produtos?

Tudo o que consigo trabalhar português, trabalho. Azeite, azeitonas, tremoços, sal, flor de sal, atum... Na pastelaria temos uma tosta de atum, por exemplo, e o atum é português. No Petiscos tenho um budget mais curto, mas no Adega compro produtos biológicos, com outra qualidade. Depois da pandemia ficou um pouco mais complicado gerir os stocks. O que antes demorava três semanas, agora está a demorar oito ou nove.

Não dá para trabalhar com produtos frescos.

Já recebi peixe dos Açores, por exemplo, através de uma empresa porque há um voo que vai da Terceira para Auckland, em São Francisco, que é mais ou menos a 45 minutos. Como daqui (Lisboa) a Santarém. Mas na altura só tinha o Adega. Isso é uma coisa vou tentar fazer novamente, porque agora também já tenho outro restaurante e já consigo conciliar as coisas.

Uma coisa que não pode faltar na carta de um restaurante português é o bacalhau. Como tem sido a reação?

Há pessoas que falam que a textura é um pouco estranha, mas de uma maneira geral a reação é boa. Hoje em dia mais, porque também há muitas pessoas que já vieram a Portugal.

Portugal continua na moda.

Há muito tempo e é bom sinal.

Até para dar a conhecer a nossa gastronomia.

É das melhores do mundo, na minha opinião. Mas se calhar sou um pouco suspeito. Posso dizer que se quero comer coreano, arranjo um bom restaurante coreano, se quero comer tailandês, arranjo um bom restaurante tailandês, indiano, de tudo e mais alguma coisa. E por isso é que nós também queríamos ter um bom restaurante português. E pelo que como, a nossa cozinha é muito boa. Se nós não nos valorizarmos, ninguém nos vai valorizar.

E no que toca aos vinhos, o David referiu que os inspetores do Guia Michelin gostaram muito da comida e dos vinhos portugueses.

Sim, no Adega só temos vinhos portugueses, e no Petiscos também. No Adega temos mais ou menos 500 vinhos diferentes, entre brancos, Portos, madeiras, tintos, espumantes. No Wine Spectator somos o único restaurante, acho que no mundo inteiro, que tem dois copos só com vinhos portugueses (Best of Award of Excellence). Com dois copos em Portugal há o Yetman, o Galo D'oro, mas eles também têm vinhos estrangeiros. E isso é mais uma distinção, que às vezes não se fala, mas para mim é um orgulho.

Pelo que como, a nossa cozinha é muito boa. Se nós não nos valorizarmos, ninguém nos vai valorizar.

E como tem sido a reação aos vinhos portugueses? Porque a Califórnia é muito conhecida pela produção de vinho.

Muito boa. A região é um bocadinho diferente, tem vinhos com muita qualidade, e muitas vezes as pessoas que não conhecem vinhos portugueses pedem recomendações idênticas ao Zinfandel, Cabernet, Pinot. Temos as nossas recomendações, normalmente adoram. E em relação ao preço, adoram ainda mais.

E quais são as vossas recomendações?

Depende dos valores, mas normalmente sugerimos um vinho médio na ordem dos 100, 150, 200 dólares. Recomendamos Douro, por exemplo, o Chryseia, Alentejo, o Pintas, do Wine&Soul... Mas normalmente os que recomendamos mais é dentro desta média.

O chef já tem um portfólio diversificado: o Adega, o Petiscos, a Pastelaria. A expansão de conceitos é para continuar?

Sim, quando voltar planeio abrir uma discoteca. Já está tudo pronto, só está à minha espera. É um bocadinho fora da nossa área, mas foi uma boa oportunidade, é mesmo por cima do Petiscos e mais fácil de controlar. Há também o objetivo de expandir a marca Petiscos, mas ainda estamos a estudar o melhor modelo: se mais locais em cidades à volta, a meia hora, vinte minutos, ou mudar para outras cidades, porque também temos tido muito essa procura. É uma expansão que gostaríamos de fazer, mas queremos dar um passo de cada vez.

Estão a ser muito solicitados?

As pessoas que têm restaurantes portugueses nasceram lá e isso é diferente. Mesmo que uma pessoa venha cá todos os anos e passe um mês a ver o que se come, como se faz, é diferente daqueles vivem toda a vida aqui. Só com 28 ou 29 anos é que me fui embora. Então tenho essa vantagem. Também tenho pessoas que vão lá e dizem que o restaurante não é português porque não tem os sabores dos Açores. Portugal não é só os Açores. E eu nunca estive nos Açores, e poucas coisas cozinhei que fossem açorianas, porque também não tenho informação. Posso ir à procura de uma receita e fazer, mas não tenho a garantia que aquilo está bem feito ou não.

Tem saudades de Santarém?

Tenho, da família, dos amigos, principalmente, e da comida da mãe. E depois de Lisboa, porque também vivi aqui muitos anos. Mas são coisas diferentes. Hoje em dia sinto-me muito mais descansado quando venho cá porque não tenho responsabilidades e às vezes apetece-me fugir para aqui. São realidades diferentes. Tenho saudades de andar a pé, por exemplo, porque lá é mais difícil, é tudo muito mais distante, é tudo maior.

O chef tem acompanhado o desenvolvimento gastronómico de Santarém?

Acho que está muito bem, já experimentei todos e se me dissessem há dez anos que isso ia acontecer em Santarém, eu dizia que era mentira. Acho que deve ser das poucas cidades em Portugal, tirando as grandes cidades, que tem uma gastronomia diferente, mais inovadora, com tanta variedade e tanta qualidade como existe em Santarém neste momento.

E uma dúvida: o David já sonha em inglês?

Falo mais espanhol que inglês. Eu também nunca falei muito bem inglês, se bem que está muito melhor. Mas já sonho em espanhol. Quando fui daqui já falava espanhol, porque trabalhei com os Joachim (Koerper), no Eleven, muitos anos, e tinha que o entender. Mas não sei escrever. De vez em quando sonho em inglês. Ainda por cima falo durante a noite e a minha mulher diz que não me entende porque falo português, espanhol e inglês também, falo um bocadinho de tudo. Mas sim, já sonho em espanhol, em português e em inglês.