Nos últimos meses, a produção adicional cirúrgica no Serviço Nacional de Saúde tem marcado a agenda mediática. Este tema, embora não seja novo, suscitou várias perplexidades na opinião pública. Os dados sobre a dimensão dos encargos com as cirurgias e a escassa transparência sobre os seus mecanismos de validação têm levantado dúvidas legítimas sobre o funcionamento do sistema. O modelo atual nasceu da necessidade de responder a longas listas de espera e acabou por instituir práticas que nem sempre são auditadas com o rigor necessário.

Entretanto, foi anunciada a substituição do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC) pelo novo Sistema de Informação Nacional de Acesso a Consulta e Cirurgia (SINACC). Esta mudança, prevista para entrar em vigor em setembro, visa colmatar as lacunas identificadas no SIGIC, incluindo a sua permeabilidade a incentivos desadequados e a desatualização tecnológica das plataformas de gestão e codificação. O SINACC incluirá um manual de boas práticas e mecanismos mais consistentes de monitorização e auditoria, com o objetivo de assegurar uma gestão das listas de espera mais eficaz.

Neste contexto, impõe-se uma reflexão séria sobre a organização e verificação da atividade cirúrgica, nomeadamente no que respeita à codificação dos atos. A codificação é, neste momento, uma função restrita a profissionais médicos, apesar de os enfermeiros acompanharem todo o processo cirúrgico e conhecerem a sequência dos procedimentos realizados.

A codificação clínica, sendo um instrumento essencial de gestão, deve acompanhar a complexidade da prestação de cuidados e a diversidade dos profissionais que nela intervêm. Estudos recentes evidenciam que, frequentemente, a qualidade da codificação é afetada por um fenómeno designado por “viés de codificação” (deturpações sistemáticas na forma como os atos clínicos são registados e traduzidos em códigos). Este fenómeno está associado, por exemplo, à concentração da codificação num único grupo profissional, à formação desatualizada dos codificadores ou à fraca articulação entre quem presta cuidados e quem codifica.

Em vários países, como os Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Canadá e Alemanha, os enfermeiros já participam na codificação de atos clínicos. Esta prática é comum em contextos como os Clinical Documentation Improvement Programs.

A generalização do processo clínico eletrónico veio permitir uma maior clareza, desmaterialização dos registos e facilidade na recolha de dados clínicos elegíveis para codificação. Esta evolução veio diversificar a participação de profissionais na codificação, nomeadamente os enfermeiros, contribuindo para registos mais completos e rigorosos e para a qualidade da informação disponibilizada para efeitos de monitorização, auditoria, financiamento e investigação.

A codificação clínica é uma função técnica que exige conhecimento especializado e formação, mas não deve ser exclusiva de um grupo profissional. Deve envolver diferentes profissionais, incluindo os enfermeiros, cuja participação aumentaria o rigor, atualidade e uniformidade da informação registada, contribuindo para a qualidade dos registos e promovendo uma governação responsável.

A integração dos enfermeiros na codificação é, assim, uma mais-valia demonstrada por estes modelos. Em Portugal, quando excluímos os enfermeiros da codificação clínica, concretamente dos atos cirúrgicos – uma limitação que carece de qualquer fundamento técnico ou científico – estamos a perder a oportunidade de introduzir um segundo nível de análise clínica, baseado numa perspetiva complementar, mas igualmente informada e tecnicamente competente.

Aliás, limitar a codificação a uma única profissão contraria os princípios de governação clínica, que assentam no trabalho em equipa e na responsabilização coletiva.

Incluir os enfermeiros na codificação cirúrgica, sobretudo na produção adicional, seria uma medida sensata e eficaz para assegurar maior responsabilidade na gestão dos meios disponíveis.

A Ordem dos Enfermeiros defende, por isso, que a reforma em curso é uma oportunidade para permitir que os enfermeiros também possam codificar atos cirúrgicos em articulação com os restantes profissionais. Trata-se, acima de tudo, de acrescentar qualidade, prevenir deturpações e garantir que todos os intervenientes têm um papel ativo naquilo que se regista e comunica.

Sempre que está em causa a credibilidade do sistema de saúde, a boa gestão de dinheiros públicos e a equidade e transparência no acesso às cirurgias todas as oportunidades para aumentar o seu controlo e eficiência devem ser consideradas. E esta é uma oportunidade que não podemos perder.