“Apesar de já ter visto situações de fraturas de pulsos ou pernas, o dia 19 de junho ficará marcado para sempre da pior maneira e acho que nunca vou esquecê-lo. Ainda bem que tudo acabou bem”, contou à agência Lusa a juíza da Associação de Futebol de Aveiro (AFA), que esteve acompanhada pelos assistentes André Rodrigues e Diogo Fontes.
O final do encontro entre o AC Famalicão e o Ponte de Vagos-Juveforce (6-0), da oitava jornada do campeonato de sub-20 da AFA, disputado no Campo José Maria Mariz Silva, em Arcos, no concelho de Anadia, foi de sobressalto para Gonçalo Marques, de 17 anos.
“Foi um lance normal, que não esperávamos que acontecesse. O jogador sofreu falta na zona do tornozelo, saiu para ser assistido e começou a ter um ataque de ansiedade. Irá ser seguido e vai ter de fazer mais exames, mas os médicos disseram que o cansaço, o nervosismo do jogo e o facto de ele ter asma desencadeou aquela situação”, partilhou.
Uma enfermeira que estava a assistir à partida acorreu ao local para colocar o corpo do atleta numa posição lateral, como recomendam os protocolos de socorro imediato, até à chegada dos médicos, enquanto as duas equipas aceitaram jogar os minutos em falta.
“O delegado apercebeu-se que, quando o jogador estava de pé, começou a chamá-lo, mas este estava de olhar perdido, não respondia nem reagia. Quando o jogo acabou, fui ajudar naquilo que fosse necessário. Foi precisamente aí que ele teve três paragens cardíacas até à vinda da ambulância, mas conseguimos sempre revertê-las”, descreveu.
Os elementos do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) demoraram “15 a 20 minutos” a chegar e tiveram logo de amparar uma nova falência súbita cardíaca de Gonçalo Marques, que teve de ser transportado para o Centro Hospitalar de Coimbra.
“Todos gostam de estar ali a ver e é difícil conseguir parar os olhares. Mandei logo os miúdos embora para tomarem banho e não assistirem àquilo. Já os bombeiros colocaram o menino na ambulância e não o conseguiram estabilizar, mas sei que se encontraram com o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU)”, explicou Eunice Mortágua.
O jogador recebeu alta na madrugada de domingo, no ocaso de horas atribuladas para a árbitra natural de Aveiro, que viu de manhã um outro jovem jogador do Valonguense, que preferiu não identificar, cair inconsciente perto do fim do duelo com o Taboeira B (1-9), da oitava ronda do Grupo E do torneio de encerramento do campeonato de juniores da AFA, ocorrido no Campo Bastos Xavier, em Valongo do Vouga, vila do município de Águeda.
“Teve um choque contra um adversário na zona abdominal e acabou por cair um pouco inanimado. Como não conseguia respirar, começou a ter convulsões. Abria os olhos e entendia o que lhe dizíamos, mas, de um momento para o outro, começava a ficar muito tenso e a revirar os olhos. Assustámo-nos um bom bocado por causa disto”, recordou.
A par do treinador do Valonguense, Márcio Ferreira, Eunice Mortágua usou as técnicas aprendidas em formações de suporte básico de vida com desfibrilhação automática externa e primeiros socorros para “poder atuar mais rápido e salvar uma vida humana”.
“Começou a ter ataques de ansiedade, que são normais, porque queria respirar e não conseguia. Tentámos acalmar o jogador e pedimos um saco de papel para controlar a respiração. Mesmo assim, não foi fácil, porque esteve assim até chegar a ambulância. Estabilizámos um pouco o atleta, mas depois voltou àquela situação inicial”, enquadrou.
Os bombeiros surgiram “25 minutos depois”, perante “colegas de equipa e adversários bastante apreensivos”, que seriam estimulados a afastarem-se da vítima, mesmo que alguns “tenham resistido e até tocado nela para tentar relaxá-la de alguma maneira”.
“Os bombeiros meteram oxigénio e o corpo relaxou, já que ele não estava a conseguir controlar a respiração com a dor. Melhorou, mas viram que a coisa podia não ser tão simples e chamaram o CODU. O enfermeiro avaliou e disse que não era necessário ir para Aveiro. Seguiu só para o Centro Hospitalar do Baixo Vouga, em Águeda”, referiu.
Algumas horas depois do jogo, Márcio Ferreira tranquilizou Eunice Mortágua em relação ao estado de saúde do atleta do Valonguense, que regressou a casa no próprio dia, ultrapassada uma “situação aflitiva e para a qual nunca ninguém está preparado”.
“Tínhamos alguns pais a ver o jogo, mas não havia mais ninguém que nos pudesse ajudar. Às vezes, temos a sorte de ter ali um bombeiro ou um enfermeiro, mas não foi o caso. Desfibriladores? Raramente encontramos nas equipas que estão nos distritais. Depois, muitas vezes nem toda a gente os pode usar. Se os tivesse, podia”, vincou.
Eunice Mortágua, de 47 anos e a cumprir funções na estrutura diretiva da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), assume nunca ter experienciado idêntico retrato de pânico durante duas décadas e meia de experiência em diversos escalões.
“Todos deviam ter uma formação básica nesse aspeto e não falo só dos clubes. Depois, penso que as pessoas têm de nos começar a ver de outra maneira. Antes de ser árbitra, sou mãe e sou um ser humano. Muitas vezes, esquecem-se que o árbitro é unicamente um ser humano igual a todos e também não fica indiferente a estas situações”, finalizou.
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