HealthNews (HN)- Qual é a importância dos Cuidados Paliativos Pediátricos em Portugal e como esses cuidados impactam a qualidade de vida das crianças e adolescentes com doenças complexas?
Cândida Cancelinha (CC)- Os Cuidados Paliativos Pediátricos (CPP) são uma área especializada da medicina, que se destinam a crianças e adolescentes que enfrentam doenças complexas ou ameaçadoras da vida e que, ao longo da sua trajetória, possam enfrentar períodos de intenso sofrimento. E não se adequam apenas às crianças e adolescentes, como dão também resposta às necessidades da família, que pode incluir pais, irmãos, avós, entre outros
Se pensarmos que, em todo o mundo, existem cerca de 21 milhões de crianças que podem ter necessidade de acesso a este tipo de cuidados, falamos de equipas que controlam sintomas difíceis (como a dor, a falta de ar, sintomas neurológicos complexos, entre outros), que fazem formação e treino dos cuidadores para lidar com diferentes situações, prestam suporte psicológico e espiritual e dão resposta a um conjunto de necessidades sociais que vão surgindo ao longo da evolução da doença. Outra importante área de intervenção é a do treino dos cuidadores (familiares e não só) para manusear os dispositivos de que dependem muitas vezes estas crianças, como sondas, ventiladores, aspiradores, cateteres, etc. Este treino pode possibilitar, tão somente, que esta ou aquela criança possa voltar à escola e permitir que a sua mãe ou pai voltem a poder ir trabalhar.
A literatura internacional é bastante clara no impacto destas equipas na melhoria da qualidade de vida de crianças e famílias, nos níveis de satisfação de utilizadores e profissionais, na melhoria do controlo de sintomas, na redução da utilização de recursos hospitalares e, inclusivamente, no aumento do tempo de sobrevida.
HN- Sabendo que existem apenas cinco equipas especializadas e três equipas generalistas em Portugal, quais considera serem as principais lacunas no sistema de saúde em relação aos Cuidados Paliativos Pediátricos?
CC- Estima-se que existam em Portugal, cerca de 8000 crianças e adolescentes com necessidade de apoio por equipas especializadas de CPP. Segundo os dados mais recentes da Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, existem apenas 5 equipas especializadas (nos grandes centros hospitalares e universitários do Porto, Coimbra e Lisboa) e 3 equipas generalistas (nos IPO do Porto e Lisboa e no H. Garcia de Orta), o que deixa a descoberto toda a região interior e sul de Portugal Continental e Insular. São já vários os serviços de Pediatria que têm profissionais com motivação para constituir equipas, mas temos ainda importantes lacunas quer ao nível da formação prática quer, sobretudo, da alocação real de recursos e de tempo, para que estes profissionais possam exercer a sua atividade de forma estruturada. E esta falta de recursos estende-se também às equipas já reconhecidas que, incompreensivelmente, continuam a ter profissionais que trabalham em várias áreas em simultâneo.
Além disso, temos ainda um sistema de saúde muito hospitalocêntrico e, se queremos acompanhar as tendências de outros países em fases avançadas de organização dos CPP, como o Reino Unido, o Canadá ou os EUA, precisamos mesmo de inverter esta tendência e criar condições às equipas para que a sua atividade se possa desenvolver em todos os contextos onde se encontra a criança, quer a nível hospitalar, quer domiciliário. Muitas das necessidades que surgem podem ser identificadas e trabalhadas de forma antecipada, quando conhecemos a realidade onde se encontram estas crianças e a prestação de cuidados em contexto domiciliário dá-nos essa oportunidade: atuarmos antes das situações que motivam o recurso ao hospital.
Nos últimos anos temos assistido a um importante desenvolvimento das equipas de hospitalização domiciliária em diversos hospitais, mas que continuam vocacionadas sobretudo para adultos e para situações agudas. E são precisamente as pessoas com doença crónica aquelas que, na maioria das vezes, mais precisam de ser cuidadas em casa.
Outra das áreas em que é necessário reforçar o investimento é no apoio pré e perinatal, nas nossas maternidades, tendo em conta que cerca de 30% das situações têm início nesta fase, uma fase de enorme vulnerabilidade para qualquer família.
HN- Quais são os principais desafios que impedem que mais crianças em Portugal tenham acesso aos Cuidados Paliativos Pediátricos de que necessitam?
CC- Tal como referi acima, para prestarmos cuidados de qualidade, precisamos, em primeiro lugar, de ter equipas com profissionais com formação, competência, treino e tempo para exercer a sua atividade nesta área. E precisamos que todos os serviços de pediatria tenham acesso fácil a estas equipas. Por outro lado, precisamos de ultrapassar a barreira da referenciação precoce. Existem muitas crianças a chegar tardiamente às equipas e muitas outras que nunca chegam, sequer, a ser referenciadas. E essa barreira continua, maioritariamente, nos profissionais de saúde. Porque associam os cuidados paliativos a cuidados de fim de vida, sem compreenderem a sua real importância ao longo de toda a vida destas crianças.
HN- Olhando para experiências internacionais, como Canadá, Reino Unido e EUA, que lições podem ser aprendidas para melhorar a situação dos Cuidados Paliativos Pediátricos em Portugal?
CC- Em primeiro lugar, precisamos mesmo de revolucionar a forma como encaramos o doente crónico, permitindo que possa receber cuidados de qualidade em qualquer que seja o seu contexto. E, para isso, precisamos de respostas a nível domiciliário e escolar que sejam, de facto, efetivas. Para ter uma ideia, em qualquer desses países, uma criança com necessidade de cuidados respiratórios complexos (ventilação, traqueostomia, aspiração de secreções) tem, automaticamente, apoio diário garantido por equipas de enfermagem locais. Também nas nossas escolas precisamos de pensar, verdadeiramente o significado da palavra “inclusão” para muitas destas crianças – com que meios, com que formação, com que ganhos? Depois, a necessidade de incluir os cuidados paliativos numa fase precoce da formação pré-graduada, assim como nos currículos do ensino básico e secundário. Precisamos todos de saber que existem milhares de pessoas em Portugal, de todas as idades, que vivem com doenças complexas, e nas quais todos podemos ter um papel fundamental.
HN- Como é que a sociedade, incluindo governantes, profissionais de saúde, escolas e comunidades, pode contribuir para garantir um maior acesso e qualidade nos cuidados paliativos para crianças em Portugal?
CC- Começa, desde logo, por assumir que, mesmo sendo uma minoria da população pediátrica, são crianças e adolescentes que vivem, na sua maioria, durante muitos anos com necessidades muito complexas, mas que não deixam de ter os direitos que tem qualquer criança em Portugal. E ainda são muitas as portas que se fecham as estas famílias, assim como as forças de bloqueio. Pelo medo, pela inexperiência, pelo medo da responsabilização. Mas se pararmos para nos colocarmos do lado de lá, e tentarmos percorrer o caminho que estas crianças e famílias todos os dias percorrem, perceberemos que precisamos mesmo de promover uma sociedade mais justa, que esteja onde precisa de estar – que tenha equipas disponíveis, profissionais com formação, escolas preparadas para integrar estas crianças ou, em casos mais complexos, estabelecimentos que possam ter recursos para suprir todas as suas necessidades, municípios que pensem nestes cidadãos, IPSS que dêem suporte nos cuidados diários, serviços de segurança social humanizados… Se, em adultos, esta tarefa é árdua, o que sentimos na Pediatria é que o medo e a tentativa de afastamento são muito superiores.
HN- Quais as iniciativas da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos para promover o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos Pediátricos no país?
CC- Em 2013 foi criado, pela Dra. Ana Lacerda, o Grupo de Apoio à Pediatria, um grupo de trabalho da APCP que, ao longo destes anos, tem tido um importantíssimo impacto no panorama nacional dos CPP, através da organização de reuniões, encontros científicos, cursos de formação e promoção da literacia nesta área. Além disso, através das bolsas de formação Isabel Correia de Levy, temos proporcionado formação não apenas teórica, como prática, em centros internacionais, a diversos profissionais que pretendem trabalhar nesta área o que possibilitou, entre outros objetivos, que possamos já ter hoje em Portugal, equipas capazes de oferecer também formação prática em CPP.
Para os próximos anos, a APCP espera conseguir ter um papel mais ativo junto da Direção Executiva do SNS, por forma a conseguir que este seja um dos eixos estratégicos na reorganização dos cuidados de saúde em Portugal. Outro dos eixos que urge ser desenvolvido é o da investigação nesta área; a literatura nacional é escassa, e precisamos de mais evidência, para exigirmos melhores cuidados. Além disso, manter obviamente o importante papel de formação da APCP, com o desenvolvimento de workshops e cursos avançados/temáticos, em diferentes áreas dos CPP, assim como o importante trabalho de sensibilização que continua a ser necessário. Fica o convite para que, no próximo mês de Outubro (mês dos Cuidados Paliativos), estejam atentos às ações que a APCP desenvolverá, e que incluem, anualmente, a celebração do Dia Mundial dos CPP, na segunda sexta-feira, 11 de outubro.
HN- Considerando a necessidade de consciencialização, que mensagem gostaria de transmitir à sociedade em relação aos cuidados paliativos para crianças em Portugal, especialmente no Dia Mundial da Criança?
CC- Aproximando-se o Dia Mundial da Criança, ressalvo a necessidade imperiosa de, enquanto Sociedade exigirmos todos mais e melhores cuidados não apenas para as crianças saudáveis, mas sobretudo para as que, diariamente, enfrentam doenças complexas, com necessidades que se estendem muito além daquilo que é o acompanhamento hospitalar, e que devem ser responsabilidade de todos nós. São 8000 crianças no total, em Portugal, e muitos mais milhares de familiares que, todos os dias, vivem cada dia como se pudesse ser o último.
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