Nos últimos anos, a saúde mental deixou de ser um tabu e passou a fazer parte do discurso público — nas escolas, nos serviços de saúde, nas redes sociais e, cada vez mais, nos ecrãs. O cinema e as séries têm aqui um papel crucial: são, simultaneamente, espelhos da realidade e veículos de transformação social. Mas será que essa influência é exercida com responsabilidade?

Séries como Euphoria, de produção norte-americana, abriram caminho para narrativas mais cruas e viscerais sobre os desafios da juventude: vício, depressão, ansiedade, sexualidade e solidão. Mas o que Adolescência — a série britânica que se tornou o fenómeno de 2025 na Netflix — trouxe de novo ao panorama? Uma abordagem bem mais íntima, menos sensacionalista, com personagens que não são estereótipos, mas construções complexas e reconhecíveis. Adolescência não procura apenas chocar — procura entender. E esse talvez seja o ponto diferenciador para um público europeu mais crítico e exigente.

Enquanto Euphoria é excessivamente estilizada e por vezes acusada de "glamourizar" comportamentos auto-destrutivos, Adolescência apresenta os seus protagonistas em queda livre, mas sem filtros nem dramatizações. Mostra-nos as feridas, mas também a possibilidade de recuperação. E fá-lo com um sentido de proximidade emocional que tem eco junto de um público mais atento à saúde mental como tema sério e muito urgente.
No entanto, a representação de temas delicados exige responsabilidade. O caso da série 13 Reasons Why é emblemático: ao retratar o suicídio de forma explícita, suscitou preocupações sobre o chamado "Efeito Werther" — fenómeno em que a exposição mediática de suicídios pode levar a comportamentos imitativos.

Entretanto, no cinema europeu — especialmente no independente — a saúde mental tem sido tratada com um grau de subtileza e humanidade que raramente encontramos nos blockbusters americanos. Filmes como Systemsprenger, Alemanha 2019, de Nora Fingscheidt, que nos mostra o turbilhão interior de uma criança com perturbação de comportamento, ou Un Monde, Recreio / Playground, Bélgica 2021, de Laura Wandel, que retrata o impacto silencioso do bullying nas escolas primárias, oferecem retratos intensamente realistas do sofrimento psicológico. São obras difíceis, mas necessárias, porque nos obrigam a olhar de frente para realidades que preferimos ignorar.

Este tipo de conteúdo tem um valor formativo enorme — não só para os jovens, mas também para pais, professores e cuidadores. Permite compreender comportamentos, reconhecer sinais de alarme e, acima de tudo, promover empatia. Contudo, importa frisar que estas obras não substituem uma política pública de saúde mental nem a presença de profissionais capacitados. São complemento, não cura.

Há também um risco real quando se representa sofrimento psíquico sem o devido enquadramento. A romantização da depressão ou da automutilação pode ser prejudicial, especialmente em audiências jovens. Vários estudos europeus, como o relatório do European Observatory on Health Systems and Policies (2023), alertam para a necessidade de “curadoria emocional” nos media consumidos por adolescentes. Em Portugal, a Coordenação Nacional de Políticas de Saúde Mental tem vindo a reforçar essa mensagem, sublinhando a importância da literacia em saúde mental.

É aqui que eventos como o Festival Mental ganham uma importância acrescida: ao cruzar cinema, arte e debate informado, o Mental propõe uma nova forma de abordar a saúde mental — descomplicada, desestigmatizada e culturalmente ancorada. Não se trata apenas de exibir filmes ou séries, entre outras áreas como música, literatura, teatro e dança, mas de criar espaços seguros de conversa, crítica e sensibilização, com uma curadoria pensada para o contexto nacional.

Num mundo mediático cada vez mais saturado de estímulos e narrativas contraditórias, precisamos de perceber o audiovisual como ferramenta pedagógica — mas, e acima de tudo, também com espírito crítico. O modelo moral e narrativo norte-americano, tantas vezes em conflito com os valores pedagógicos europeus, não pode ser importado sem filtro. Os jovens europeus — e portugueses em particular — merecem representações que os espelhem, mas também os elevem. Que não apenas os entretenham, mas que lhes ofereçam ferramentas para navegar a complexidade emocional do mundo contemporâneo.

É essa a verdadeira força do cinema e da televisão: quando deixam de ser apenas espelhos e se tornam faróis.

Um artigo de Ana Pinto Coelho, Diretora e Curadora do Festival Mental.