“Os utentes vêm com o que denominamos de surto psicótico. É uma desorganização majorada do estado mental do indivíduo por via do consumo intempestivo de droga. O indivíduo tem alucinações e delírios incompatíveis com a normalidade da vida diária. São estados aterradores e constituem um perigo significativo para ele e para terceiros”, explicou à agência Lusa.

Dos 85 internamentos registados até junho, 70 foram compulsivos, processo que decorre em articulação com o Serviço Regional de Saúde e o Tribunal da Comarca da Madeira.

“A pessoa é internada normalmente durante 15 dias. O surto psicótico normaliza entre o quarto e o sexto dia, mas mantemos o utente mais algum tempo para sedimentar esta condição de normalidade”, explicou Eduardo Lemos, adiantando que o doente é depois encaminhado para o Centro de Tratamento de Adições da região ou para as equipas de saúde comunitárias.

O consumo de novas substâncias psicoativas (NSP), também designadas por drogas sintéticas, tornou-se mais expressivo na Região Autónoma da Madeira a partir de 2012, ano em que foram registados 206 internamentos na Casa de Saúde São João de Deus, um estabelecimento de referência na área da psiquiatria, saúde mental, tratamento de toxicodependências e reabilitação psicossocial no arquipélago, inaugurado em 1924 e gerido pela Ordem Hospitaleira de São João de Deus.

Entre janeiro de 2012 e junho de 2023, o total de internamentos devido ao consumo de drogas sintéticas foi de 1.890, dos quais 1.158 compulsivos.

“Há pessoas que já estiveram aqui 20 vezes. Isto assevera, por um lado, a gravidade das drogas e, por outro lado, a fragilidade da natureza humana perante estas drogas, que é maior do que com as drogas tradicionais”, disse Eduardo Lemos, sublinhando que “há um contínuo de majoração dos problemas mentais à medida do percurso nos consumos”.

Por outro lado, a recaída está “mais presente”, situação que implica uma “atitude mais fortificada e mais asseverada” por parte das equipas de tratamento e reabilitação.

Em 2012, os consumidores eram na maioria jovens até aos 20 anos e a droga era adquirida em ‘smart shops’, situação que levou o parlamento da Madeira a criar legislação que as ilegalizou, ao que se seguiu um declínio no número de internamentos, oscilando entre os 122 em 2013 e os 171 em 2019.

No período da pandemia de covid-19, a situação agravou-se, com a Casa de Saúde São João de Deus a registar um total de 604 internamentos entre 2020 e 2022, sendo que o perfil do consumidor também mudou, abarcando agora maioritariamente homens com idade entre os 30 e os 40 anos.

“Em 2020 e 2021, a droga veio às carradas por correio. Percebemos que uma droga nova que aparecia nos Estados Unidos daí a cinco dias estava na Madeira”, disse Eduardo Lemos, referindo que o novo paradigma “apanhou desprevenidos” os serviços competentes e as autoridades regionais.

Do total de indivíduos internados em 2022, 124 estavam desempregados, 11 em condição de sem-abrigo e dois eram estudantes. Por outro lado, 41 trabalhavam no setor secundário, nove no setor primário e seis no terciário. Eram na maioria solteiros, com histórico no consumo de drogas e oriundos dos concelhos do Funchal, Câmara de Lobos, Machico e Santa Cruz, na costa sul da ilha da Madeira.

“A vulnerabilidade humana não é igual para todas as pessoas. Há pessoas que lidam melhor e há pessoas que lidam muito mal com estas drogas”, disse o diretor da Casa de Saúde São João de Deus, vincando que quando a pessoa sai da instituição “seguramente vai capaz de encetar uma vida de relação comunitária e familiar e com o meio do trabalho de normalidade”.

“O que nós recomendamos é que haja uma ligação continuada ao tratamento por equipas especializadas, nomeadamente no Centro de Tratamento de Adições e nas unidades de saúde comunitárias, para que a pessoa não fique desamparada e para que se possa monitorizar o processo de capacitação individual para fazer uma vida construtiva e normal”, reforçou.

Eduardo Lemos afirmou ainda que o problema das NSP “não vai desaparecer”, considerando que o “novo desafio” da Madeira passa pela criação de uma comunidade terapêutica, de casas de reinserção e de equipas comunitárias de saúde mental, que — disse — são fundamentais para a reabilitação dos doentes a longo prazo.