No dia 4 de junho, enquanto milhares de famílias portuguesas entregavam às escolas o cuidado das suas crianças incluindo o lanche da manhã era publicado pela Direção-Geral da Saúde (DGS) o relatório da segunda monitorização ao Despacho n.º 8127/2021. Este documento, produzido em articulação com a Direção-Geral da Educação (DGE), é mais do que um registo estatístico: é um espelho do país real, das suas boas intenções e das fragilidades da sua concretização.

Com uma taxa de resposta de 50,1% (406 Unidades Orgânicas – agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas), os dados revelam um esforço considerável na implementação de medidas para promover ambientes alimentares escolares mais saudáveis. No entanto, evidenciam também uma realidade mista, onde os progressos convivem com omissões e incumprimentos.

Bufetes mais saudáveis: um caminho em construção

Nos bufetes escolares, os sinais de melhoria são evidentes. Cerca de 85% já não disponibilizam produtos considerados desadequados, substituindo-os por alternativas nutricionalmente mais equilibradas. Porém, esta estatística merece ser lida com atenção: em quase metade dos bufetes ainda se identificaram irregularidades, sendo que, em cerca de um terço dos casos, o problema não reside no que é vendido a mais, mas no que está em falta — fruta fresca, leite simples, iogurtes naturais. O essencial está, muitas vezes, ausente. E a ausência do essencial, quando sistemática, acaba por se tornar estrutural.

O caso das máquinas de venda automática é ainda mais paradigmático: uma em cada três escolas continua a acolher equipamentos onde a lei é amplamente desrespeitada. Em 79,7% das situações são vendidos produtos proibidos, e em 100% das máquinas não se disponibiliza o que é obrigatório. Entre 2022 e 2025, longe de melhorar, a situação agravou-se. A máquina que deveria ser exceção tornou-se regra, não por falta de legislação, mas por escassez de fiscalização e ausência de responsabilização.

A força normativa precisa de músculo operacional

Portugal tem demonstrado, ao longo das últimas décadas, uma notável capacidade para produzir orientações estratégicas e Despachos com elevada qualidade técnica. O problema não está na intenção nem na ciência que os sustenta. Está, sim, na operacionalização.

Uma política pública só se concretiza quando é acompanhada de mecanismos claros de implementação, de acompanhamento e de avaliação contínua. No caso dos bufetes escolares, a ausência de um modelo nacional de fiscalização robusto tem sido o elo mais fraco de uma cadeia que depende do compromisso de múltiplas entidades — desde as Direções das escolas às autarquias, passando pelos fornecedores de bens alimentares.

Neste contexto, merece destaque o envolvimento das Equipas de Saúde Escolar, que, de acordo com o relatório, estiveram presentes em 77,7% dos agrupamentos, dinamizando ações de formação, revisões de ementas e oficinas pedagógicas. Esse apoio é relevante, mas não suficiente. Sem um modelo de acompanhamento estruturado, contínuo e integrado, estas intervenções correm o risco de se diluírem no tempo.

A Saúde Pública como aliada estratégica da Educação

As Unidades de Saúde Pública, tradicionalmente chamadas a intervir em situações de risco iminente, possuem uma capacidade instalada que pode e deve ser colocada ao serviço da construção de comunidades escolares mais saudáveis. No domínio da alimentação escolar, estas unidades têm aqui uma oportunidade de alargar o seu contributo, assumindo funções sistemáticas de monitorização e apoio técnico.

Propõe-se, neste âmbito, a criação de um programa nacional de rondas de saúde alimentar escolar, integrando ciclos regulares de visita, auditoria e capacitação. Tal modelo não se limitaria à identificação de falhas, mas contribuiria para a melhoria contínua, promovendo um ecossistema onde escolas, famílias, profissionais de saúde e autoridades educativas atuem de forma coordenada.

As auditorias poderiam culminar na publicação de relatórios regionais de conformidade, com planos de melhoria obrigatórios para os estabelecimentos escolares que não cumpram os critérios mínimos definidos. Esta transparência, aliada a prazos claros e acompanhamento técnico, representaria um passo firme na direção da responsabilização institucional.

Escolas como territórios de coerência

Num tempo em que se invoca com frequência o conceito de One Health sublinhando a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental — dificilmente se encontrará espaço mais apropriado do que a escola para o concretizar. Se quisermos que os alunos desenvolvam uma literacia alimentar robusta e escolhas informadas, temos de garantir um ambiente coerente, onde a oferta nutricional está em consonância com os conteúdos pedagógicos e com os valores que se pretende transmitir.

Não se trata apenas de uma questão de saúde pública. Trata-se, acima de tudo, de justiça social, de igualdade de oportunidades e de combate às desigualdades que se manifestam precocemente nos comportamentos alimentares e, mais tarde, se cristalizam nos indicadores de morbilidade e mortalidade.

O que se vende numa escola é, em muitos sentidos, reflexo da sociedade que estamos a formar. E ao Estado compete não apenas legislar com clareza, mas criar as condições para que a norma seja exequível, fiscalizada e acompanhada. Isso exige vontade política, visão estratégica, recursos adequados e um modelo de governação intersectorial funcional.

A saúde das crianças não começa nas consultas médicas, mas nas decisões quotidianas que os adultos tomam por elas nas ementas que definem, nos produtos que autorizam e nas oportunidades que asseguram. Não basta afirmar o compromisso com a promoção de hábitos saudáveis: é necessário materializá-lo em cada espaço do quotidiano escolar.

O sucesso da reciclagem em Portugal, hoje amplamente reconhecido, teve um ponto de viragem quando a mudança começou nas escolas. Foram os/as alunos/as que aprenderam as novas práticas, interiorizaram os seus fundamentos e os levaram para casa, influenciando os comportamentos das suas famílias. É esse mesmo modelo virtuoso que devemos replicar agora: formar para transformar. Se ensinarmos as crianças a comer melhor, elas próprias se tornarão agentes de mudança nas suas casas, nas suas comunidades e, no futuro, enquanto cidadãos.