Assinalo este ano 25 anos de exercício profissional no Serviço Nacional de Saúde. Fiz esse percurso no terreno, no contacto quotidiano com as populações, exercendo funções como Enfermeiro Especialista em Saúde Pública, integrado na Unidade Local de Saúde de Matosinhos a primeira do género criada em Portugal. O tempo decorrido, e a vivência acumulada, conferem-me não apenas legitimidade, mas também o dever de partilhar uma reflexão serena, fundamentada e crítica sobre o caminho trilhado pelo SNS ao longo destas últimas décadas.

Portugal possui um dos melhores sistemas públicos de saúde da Europa, pelo menos na sua matriz constitucional. Mas entre o que está escrito na Lei de Bases da Saúde e aquilo que se concretiza no dia a dia de quem utiliza e serve o SNS, há uma distância que se tem vindo a alargar perigosamente.

Durante os anos 90, Portugal experimentou modelos assistenciais que, embora não perfeitos, foram eficazes em promover a acessibilidade, a proximidade e a confiança. Os centros de saúde funcionavam em regime pós-laboral e aos fins de semana. Existia a possibilidade de realizar análises clínicas, radiografias e pequenos atos complementares que evitavam deslocações desnecessárias às urgências hospitalares. Foi nesse contexto que surgiram os regimes remuneratórios experimentais e, mais tarde, as Unidades de Saúde Familiar, em particular o modelo B, ainda hoje referência de eficiência.

A realidade atual, no entanto, é bem distinta. Com a fragmentação introduzida pela proliferação das Unidades Locais de Saúde, o país passou a viver sob um regime de “territórios sanitários paralelos”, onde cada unidade se organiza de forma autónoma, com soluções assistenciais díspares, horários divergentes e respostas assimétricas. Em vez de reforçarmos a coesão e a equidade, promovemos a desigualdade e a descontinuidade.

A acessibilidade, um dos pilares do SNS, está comprometida. Os centros de saúde fecham às 20h, não funcionam aos fins de semana e deixaram de garantir horários compatíveis com a vida profissional ativa da população. Hoje, quem trabalha de segunda a sexta-feira entre as 9h e as 18h tem, na prática, um acesso reduzido à saúde primária. E não há qualquer razão técnica, legal ou financeira que justifique esta regressão — sobretudo quando, há mais de duas décadas, o SNS já havia testado e provado a viabilidade de modelos com horário alargado.

Ao mesmo tempo, assiste-se a uma crise silenciosa de liderança técnica. A Direção-Geral da Saúde, outrora pilar da autoridade sanitária nacional, foi progressivamente esvaziada de competências estratégicas, e os programas nacionais de saúde foram entregues a profissionais sem dedicação exclusiva e sem os meios necessários à sua execução. São nomeados como responsáveis, mas não lhes são dadas as ferramentas nem o tempo protegido para gerir eficazmente os programas. A gestão destes programas exige dedicação e responsabilização, sob pena de se tornarem apenas simbólicos.

A ausência de uma contratualização consequente entre a tutela e os prestadores — sejam unidades hospitalares, centros de saúde ou serviços de saúde pública — impede a responsabilização real e o reconhecimento do mérito. Um serviço de obstetrícia que nunca fecha e aumenta a sua atividade, como é o caso de Gaia, deveria ser valorizado objetivamente. Tal como uma unidade comunitária que melhora a cobertura vacinal ou reduz as desigualdades em saúde. Mas tal só será possível se contratualizarmos não apenas volumes de atividade, mas resultados em saúde, e se reconhecermos o contributo de todas as profissões incluindo os enfermeiros e outros técnicos, com indicadores específicos e adequados às suas funções.

As ULS, enquanto novo modelo de organização, não podem continuar a ser desenhadas sem coerência e sem um mínimo denominador comum. É urgente definir uma matriz nacional de serviços mínimos e de organização funcional que cada ULS deve garantir, assegurando que, independentemente da geografia, todas as populações tenham acesso a cuidados essenciais. Simultaneamente, é necessário repensar e reforçar valências de alguns hospitais e centros de saúde, sobretudo no interior, e promover uma reorganização regional baseada em evidência e necessidades populacionais.

Não se trata de uma elegia do passado, mas da recuperação do que fazia sentido. Houve modelos que garantiram acesso, equidade e proximidade. A sua destruição não foi feita com base em evidência, mas por modas organizacionais e decisões erráticas. A improvisação e a instabilidade institucional instalaram-se como norma. A ausência de avaliação tornou-se desculpa para não corrigir os desvios. E o SNS foi-se tornando um campo de experiências, muitas vezes mal desenhadas, onde a coerência sistémica cedeu lugar a agendas pessoais ou conjunturais.

Importa, por isso, recentrar o debate político e técnico sobre o que verdadeiramente importa. Algumas ideias fundamentais impõem-se:

Garantir o funcionamento dos centros de saúde com horário alargado, até às 22h, e ao fim de semana, assegurando cuidados de proximidade à população ativa.

Reforçar o papel da DGS como autoridade técnica e coordenadora nacional, devolvendo-lhe a liderança estratégica em saúde.

Implementar contratualização exigente e transparente, com base em resultados, premiando o mérito e corrigindo desigualdades.

Investir seriamente na Saúde Pública, com equipas multidisciplinares, tempo protegido e interoperabilidade com os sistemas de informação clínica.

Normalizar a oferta assistencial em todas as ULS, com base numa matriz mínima nacional de serviços essenciais.

O SNS é um dos maiores instrumentos de coesão social e justiça intergeracional que Portugal conheceu. Mas está a viver um tempo de esvaziamento funcional, cansaço institucional e desmotivação profissional. Persistir na ilusão de que tudo vai bem, ou que apenas com mais financiamento resolveremos os problemas, é um erro perigoso. Não é apenas uma questão de mais recursos, mas de melhor governação, clareza de objetivos e compromisso com o interesse público, insistam e invistam no SNS!