Todos esperam despedir-se do seu cordão umbilical à nascença. Mas há crianças e adultos que se reencontram com as células estaminais do seu cordão umbilical para tratar doenças, enquanto outros beneficiam das de outras pessoas. Atualmente, o sangue do cordão umbilical é utilizado no tratamento de mais de 80 doenças. A Crioestaminal é uma das empresas interessadas nas potencialidades terapêuticas das células estaminais hematopoiéticas do sangue do cordão umbilical e das células estaminais mesenquimais do tecido do cordão umbilical. Carla Cardoso, responsável de Investigação e Desenvolvimento do Laboratório Crioestaminal, disse ao HealthNews que estas células não devem ser “desperdiçadas” e que os bancos privados e públicos que as armazenam são complementares.

HealthNews (HN) - Qual é o valor terapêutico das células hematopoiéticas do sangue do cordão umbilical e das células mesenquimais do tecido do cordão umbilical?

Carla Cardoso (CC) - O sangue do cordão umbilical é enriquecido em células estaminais hematopoiéticas. Estas células são capazes de originar todos os tipos de glóbulos brancos, os glóbulos vermelhos e as plaquetas. Assim, o sangue do cordão umbilical, à semelhança da medula óssea, pode ser usado no tratamento de doenças do foro hemato‑oncológico, em doenças como leucemias, linfomas, alguns tipos de anemias, entre outras, quando é necessário reconstituir o sistema sanguíneo e imunitário dos doentes. Além disso, pela diversidade celular que é possível encontrar nesta fonte de células estaminais, está a ser testado, no âmbito de ensaios clínicos, noutras áreas, em crianças e em adultos, nomeadamente em doenças do foro neurológico – como autismo, paralisia cerebral e AVC.

O tecido do cordão umbilical é enriquecido noutro tipo de células, as células estaminais mesenquimais. Estas têm a capacidade de se diferenciar em células do tecido adiposo, do osso, ou da cartilagem, entre outros, sendo ainda capazes de regular a atividade do sistema imunitário. As células estaminais mesenquimais podem, assim, ser úteis no tratamento de doenças autoimunes, como lúpus, artrite reumatoide e esclerose múltipla, assim como no contexto da transplantação, como complementares das células estaminais hematopoiéticas.

HN - Como é que fazem a criopreservação das células?
CC - A criopreservação consiste na conservação de células a temperaturas negativas, muito baixas, para que, quando descongeladas, possam prosseguir a sua atividade normal. No laboratório, para se conseguir este tipo de preservação, é necessária a utilização de um agente crioprotetor. Este agente é adicionado após o processamento inicial das amostras, quer de sangue, quer de tecido de cordão umbilical. Depois desta adição, as amostras – enriquecidas em células estaminais – são inicialmente sujeitas a um arrefecimento gradual (até 150ºC negativos) e, depois, são colocadas em contentores abastecidos por azoto líquido, a uma temperatura de cerca de 190ºC negativos, aí permanecendo até serem necessárias.

Este processo é extremamente útil, pois, dado que as células do sangue e do tecido do cordão umbilical podem ser criopreservadas e armazenadas durante anos sem perda significativa de viabilidade, permite que estejam imediatamente disponíveis em caso de necessidade.

HN - Que projetos de investigação estão agora a desenvolver nos vossos laboratórios?
CC - Atualmente, a Crioestaminal tem em curso quatro projetos de investigação. Conjuntamente com o Hospital Pediátrico de Coimbra, estamos a desenvolver um projeto que visa tratar recém-nascidos com encefalopatia hipóxico‑isquémica, recorrendo ao sangue do cordão umbilical dos próprios recém-nascidos. Esta condição, que resulta do insuficiente aporte de oxigénio e sangue ao cérebro, pode ter consequências muito graves, com repercussões para toda a vida, podendo conduzir a paralisia cerebral e até mesmo à morte.

Outro projeto visa a expansão, ou multiplicação, em laboratório de células do tecido do cordão umbilical e do tecido adiposo para poderem ser aplicadas em doenças autoimunes, como, por exemplo, lúpus e esclerose múltipla.

Estamos a terminar um projeto que visava o desenvolvimento e a aplicação de um medicamento à base de células do tecido do cordão umbilical para tratar doentes em situação mais grave de Covid-19; doentes em que a resposta do sistema imunitário à infeção por SARS-CoV-2 é tão exacerbada que pode mesmo pôr em causa a sua vida.

Por fim, em conjunto com o Hospital Rovisco Pais e o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, temos um projeto que inclui um ensaio clínico em adultos que tenham sofrido um AVC, utilizando células da sua medula óssea.

HN - A nível mundial, que inovações destaca na investigação científica nesta área?
CC - A nível mundial, destaco a investigação que tem vindo a ser desenvolvida com o sangue do cordão umbilical no tratamento de doenças do foro neurológico em crianças, nomeadamente na área da paralisia cerebral, do autismo e outras lesões neurológicas.

O maior desafio da transplantação de sangue do cordão umbilical prende-se com a quantidade de células de algumas unidades para tratar doentes com maior peso corporal. Nesse sentido, e para resolver esta limitação, várias abordagens têm sido testadas com o objetivo de aumentar o número de células transplantadas, de modo a facilitar a recuperação hematológica e imunológica dos doentes. A este processo de multiplicação das células em laboratório dá-se o nome de expansão celular. A expansão celular está cada vez mais próxima de se tornar uma realidade na prática clínica, com várias metodologias a apresentarem resultados positivos e uma delas já em ensaios clínicos de fase 3.

Destaco ainda a utilização clínica das células estaminais mesenquimais. Estas células têm sido amplamente testadas para o tratamento de um conjunto alargado de doenças, com resultados muito promissores. A segurança e eficácia da sua administração têm sido claramente documentadas em muitos ensaios clínicos, especialmente em doenças inflamatórias com envolvimento do sistema imunitário, como a Doença do Enxerto contra o Hospedeiro e o Lúpus Eritematoso Sistémico. Admite-se que estas células desempenhem o seu papel através da capacidade de diferenciação e de efeitos imunomoduladores. A capacidade de diferenciação poderá permitir reparar tecidos lesados, enquanto o seu efeito imunomodulador pode levar à regulação da atividade do sistema imunitário. O tecido do cordão umbilical constitui uma das melhores fontes de células estaminais mesenquimais.

HN - Qual é a aplicabilidade na prática médica atualmente?
CC - Atualmente, o sangue do cordão umbilical é utilizado no tratamento de mais de 80 doenças, nomeadamente em doenças do foro hemato-oncológico, em doenças como leucemias, linfomas, alguns tipos de anemias, mas também em doenças metabólicas e imunodeficiências, sendo já mais de 45.000 os transplantes realizados em todo o mundo, em adultos e crianças, com recurso a esta fonte de células estaminais. O sangue do cordão umbilical é considerado uma fonte alternativa à medula óssea no contexto da transplantação hematopoiética.

No que respeita às células estaminais mesenquimais, apesar da sua utilização ser ainda experimental, temos assistido a uma aplicação cada vez maior destas células, nomeadamente em doenças com envolvimento do sistema imunitário.

HN - E quanto aos principais entraves à investigação e utilização destas células?
CC - Na verdade, não vejo entraves à investigação com estas células. Ao contrário de células estaminais embrionárias, a colheita, investigação e utilização de células estaminais do cordão umbilical não está associada a preocupações éticas, religiosas ou políticas complexas, o que as torna mais atrativas para uso na prática clínica.

HN - Tendo em conta o potencial terapêutico, acha importante apostar em bancos públicos acessíveis a todas as pessoas?
CC - Sim, bancos familiares e bancos públicos são complementares. Dadas as aplicações atuais e o crescente número de ensaios clínicos com células estaminais do cordão umbilical, a colheita desta fonte de células estaminais – que, como sabemos, só pode ser feita no momento do parto – e o seu armazenamento podem revelar‑se de enorme importância, por isso estas células devem ser guardadas. Os pais podem optar por guardar para si e para a sua família, em bancos familiares, como a Crioestaminal, ou podem doar ao banco público. Neste [último] caso, estas amostras ficam disponíveis para poderem ser usadas em quem – sendo compatível – delas vier a precisar. Além disso, ainda podem optar por doar para projetos de investigação, contribuindo desse modo para a avanço da ciência nesta área. Eu diria que, dado o seu elevado potencial, estas células não devem mesmo ser “desperdiçadas”.

HN - Que expetativas tem para a Crioestaminal e, por outro lado, para a área à qual se dedica?
CC - Que a Crioestaminal seja, além do maior banco de criopreservação da Península Ibérica, líder no desenvolvimento de terapias celulares e que esteja envolvida em vários ensaios clínicos com produtos celulares desenvolvidos internamente pela nossa equipa da Área de ATMPs (Advanced Therapy Medicinal Products). Nos últimos anos, os projetos de investigação em que temos estado envolvidos têm-se focado muito na aplicação clínica das células estaminais, pois pretendemos contribuir com novas aplicações das células estaminais para doenças em que faltam opções terapêuticas eficazes. E é com o esforço conjunto do nosso departamento de Investigação e Desenvolvimento e da nossa nova Área de ATMPs que pretendemos contribuir para este objetivo.

RA/HN