HealthNews (HN) – A Universidade de Aveiro inaugurou no dia 10 de maio o Centro Português de Ressonância Magnética Nuclear. É verdade que aloja um equipamento único na Península Ibérica?
João Rocha (JR) – Sim, é verdade. Um dos nossos equipamentos, que é um espectrómetro de ressonância magnética nuclear, mas que para além disso tem uma outra valência associada e, por isso, tem um nome um pouco complicado, Dynamic Nuclear Polarization, é único na Península Ibérica, efetivamente. Há cerca de 50 equipamentos no mundo, tanto quanto pude averiguar junto até da empresa que os vende. Existe um na Inglaterra, um no Canadá, um na Austrália, dois no Japão, cerca de 10 nos Estados Unidos. Estamos a falar de à volta de 30 e poucos na Europa, que, aliás, é a zona do mundo onde há mais. Portanto, é realmente um equipamento único.
HN – Portanto, Portugal na vanguarda da tecnologia, da inovação e, também, da saúde.
JR – Sem dúvida. Devo precisar que este equipamento pode ser utilizado para fazer investigação em áreas ligadas à saúde, como também pode ser utilizado para fazer investigação em outro tipo de temáticas, na área dos materiais por exemplo. Alguns dos materiais que estudamos até têm aplicação em saúde. Não tem que ser necessariamente na área da saúde, mas, sim, neste aspeto, Portugal está na vanguarda mundial no que diz respeito à utilização deste tipo de técnica.
HN – Quais são as valências destes equipamentos? De que forma funcionarão?
JR – O princípio físico que está por trás destes equipamentos é exatamente o mesmo que é utilizado na imagem médica por ressonância magnética. Normalmente em medicina não se junta a palavra nuclear, mas na verdade trata-se sempre de ressonância magnética nuclear. Não tem radiações ionizantes, é simplesmente um fenómeno que tem origem nos núcleos de certos átomos. É possível utilizar esta técnica para fazer imagens do interior do corpo humano ou do interior de materiais, por exemplo. Poderia fazer, inclusivamente, imagem do interior de um limão sem o cortar. Nós usamos estes equipamentos sobretudo para perceber qual é a estrutura de um material e a sua composição. Vou-lhe dar um exemplo. Eu posso ter materiais em que os átomos estão empilhados de uma certa maneira, ou seja, têm uma certa estrutura, ou empilhados de uma outra maneira e têm uma outra estrutura diferente. Há uma relação entre a estrutura dos materiais, o tipo de edifício atómico que eles têm, e aquilo para que eles servem; há, pois, uma relação entre a estrutura e as propriedades dos materiais. Para se poder perceber por que um dado material funciona de uma certa maneira, por que emite luz ou por que é um bom material para o têxtil ou para construir uma casa, temos de conhecer a sua estrutura. Fazendo uma analogia, se eu quiser que o “moinho de átomos” moa melhor ou que o “castelo de átomos” defenda melhor, tenho de compreender a relação entre a estrutura destes edifícios atómicos e as suas propriedades. E, portanto, o que um espectrómetro de ressonância magnética nuclear faz, sem entrar nos detalhes técnicos de como é que faz, é permitir determinar a estrutura dos materiais com o objetivo de melhorar a sua função. Na verdade, nós temos oito destes equipamentos, sendo que este especial é só um deles.
O Centro Português de Ressonância Magnética Nuclear está integrado em dois laboratórios associados, o CICECO – Instituto de Materiais de Aveiro e o polo de Aveiro do Laboratório Associado para a Química Verde REQUIMTE. No CICECO, aquele em que estou integrado, desenvolvemos materiais que são utilizados em muitas áreas diferentes – inclusivamente, na área da saúde. Eu próprio desenvolvi há uns anos um material que mais tarde veio a ser um pouco modificado e aplicado por uma empresa americana, que, entretanto, foi comprada pela AstraZeneca, para tratamento do excesso de potássio no sangue, a chamada hipercalemia. Esse material foi estudado também por esta técnica. Quando a empresa procurou ter a autorização das agências regulatórias, da FDA e da EMA, fez um projeto connosco para os ajudar a resolver alguns problemas, e nós usámos bastante estes equipamentos de ressonância magnética nuclear, não no modo de imagem como em medicina, mas no modo a que nós chamamos espectroscopia. Em vez de termos imagens, temos a espécie de um traçado, e é a partir dessa informação que nós determinamos a estrutura do material. Portanto, temos investigação no desenvolvimento de materiais e processos associados a áreas de saúde, mas também a muitas outras áreas: comunicações, energia, cerâmica, têxtil, polímeros, etc. Portanto, é muito variado, porque o CICECO reúne cerca de 500 investigadores a trabalhar da área da química, da física, da ciência e engenharia de materiais.
HN – Que objetivos conduziram à criação do agora Centro Português de Ressonância Magnética Nuclear?
JR – O primeiro equipamento que nós tivemos em Aveiro data de 1977, mas era uma máquina muito rudimentar, mesmo para o seu tempo. Só começámos a ter equipamentos de nível internacional em 1992, com fundos europeus. Portugal tinha aderido à CEE um pouco antes e houve um programa especial para a comunidade científica em Portugal comprar equipamentos. Foi um programa extremamente importante, chamado CIENCIA. Nessa altura, o departamento de química teve dinheiro para comprar dois espectrómetros, portanto os primeiros equipamentos, verdadeiramente, só chegaram a Aveiro em 1992. Portanto, estamos a falar de 32 anos. Daí para cá, não só se reforçou toda a parte do equipamento, com fundos da Universidade de Aveiro, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, da região Centro, enfim, uma panóplia de fundos nacionais de uma forma ou de outra, mas, por outro lado, e igualmente importante, houve uma formação de investigadores nesta área, porque isto são técnicas sofisticadas que exigem um conhecimento que não é trivial. Por exemplo, eu fui para Cambridge, em Inglaterra, fazer um doutoramento, houve uma outra colega minha (Ana Gil) que também fez um doutoramento em Inglaterra, e o meu colega Artur Silva também estagiou no estrangeiro (referência, ainda, aos colegas Brian Goodfellow, Luís Mafra e Iola Duarte). Eu voltei em 1991, quase coincidente com a aquisição daqueles equipamentos. A partir daí, formámos todo um conjunto de pessoas que são hoje a base da investigação que nós fazemos utilizando este equipamento. Portanto, não surgiu do pé para a mão. Foram trinta anos a formar pessoas, a adquirir equipamento, a modernizar esse equipamento, etc.
Agora deram-se dois saltos significativos. Um foi a compra do tal equipamento único na Península Ibérica; o outro é que temos finalmente um edifício que aloja a maior parte dos equipamentos: neste edifício estão seis espetrómetros (há mais dois). Isto é fundamental porque são equipamentos que exigem determinadas condições ambientais, de ar, temperatura, vibrações, etc.; tem tudo que ser muito controlado para poderem funcionar como deve ser, e antes estavam dispersos, em várias salas do departamento de química, que não teriam as condições perfeitas. Isto também facilita o trabalho porque às vezes um investigador pode estar a trabalhar simultaneamente em dois equipamentos. E, por outro lado, não podemos evidentemente deixar de considerar que desta forma, com tudo concentrado num edifício, a visibilidade do Centro é muito maior. Nós já tínhamos, pela nossa investigação que é de nível mundial, visibilidade, mas agora é diferente, para melhor.
HN – Envolve uma parceria com várias instituições de ensino portuguesas e integra uma rede com sete centros europeus e um americano e ainda duas empresas? Qual é a importância de este centro estar envolvido nestas redes e parcerias tanto a nível nacional como mundial?
JR – Em relação à Rede Nacional de Ressonância Magnética Nuclear, trata-se de uma rede de praticamente todos os centros portugueses que têm equipamentos deste tipo, uns 14. Nas várias universidades do país, há laboratórios de ressonância magnética nuclear, portanto já há mais de uma década que se formou uma rede destes centros. Esta rede tem objetivos variados: a troca de experiências e conhecimento entre os profissionais da área; franquear acesso, porque os equipamentos têm diferenças e, portanto, pode ser interessante eu ir à Universidade do Porto fazer qualquer coisa que, eventualmente, no detalhe, eu não possa fazer aqui; e até coisas utilitárias como comprar equipamentos em conjunto, o que permite fazer um melhor negócio.
A rede europeia que referiu é completamente distinta. Trata-se de uma rede que reúne centros semelhantes, sobretudo na Europa, que trabalham nesta área e que foi fruto de um concurso a fundos europeus. É um selo de excelência, se quiser, porque não está nesta rede quem quer, está nesta rede quem foi convidado para a integrar e concorrer e depois ganhar. Esta rede visa fazer um pouco a mesma coisa que a rede a nível nacional, troca de experiências, receber alunos e investigadores, interatuar com industriais.
No nosso laboratório em particular, temos muitos projetos com empresas, e isso é fundamental. O CICECO tem mais de 6 milhões de euros por ano em projetos com empresas. Nem todos os projetos, evidentemente, usam estes equipamentos, mas são realmente números muito consideráveis. Exemplos de dois projetos diretos em que esta técnica foi muito importante, temos aquele de que falei há pouco do tal material para captura de potássio, um projeto de cerca de 200 mil euros, e tivemos um outro projeto com a BP America de cerca de meio milhão de euros. Utilizaram estes equipamentos para compreensão da estrutura dos materiais, que determinava a maneira como eles funcionavam.
HN – Enquanto coordenador, quais pensa que serão os maiores desafios?
JR – O maior desafio é a sustentabilidade do centro. Nós conseguimos viver 30 anos, mas estes equipamentos são muito dispendiosos, quer na sua manutenção, quer na sua operação e, até, na renovação que vai ter de ser necessária. Nós estamos a falar, neste momento, de 8/9 milhões de euros de equipamento que está no Centro Português de Ressonância Magnética Nuclear. O funcionamento normal custa-nos, por ano, muitas dezenas de milhares de euros. Nós vamos conseguindo pagar as contas a partir de dinheiro que os dois laboratórios associados têm e de projetos que vamos tendo, mas as despesas têm aumentado muito, até porque certos consumíveis aumentaram cerca de três vezes desde a pandemia. Isto quer dizer que temos muita dificuldade em assegurar esta manutenção, e tem havido um desinvestimento muito significativo em ciência no país ao longo de vários governos, e, portanto, isto é um problema. Nós gostaríamos muito que este centro pudesse ser considerado o centro nacional de ressonância magnética nuclear, com financiamento pelo menos parcial das despesas de funcionamento, e que obviamente teria como contrapartida uma coisa que na prática já vai acontecendo, mas que se poderia generalizar, que é termos as portas abertas à comunidade científica e à comunidade industrial.
O segundo desafio não é menos importante, mas é um desafio de outra ordem. Apesar de já termos visibilidade internacional pela investigação que fazemos, queremos aumentá-la. Queremos tornar-nos ainda mais competitivos na atração de alunos de doutoramento, na atração de investigadores, na atração de colaboradores de alto nível com quem possamos colaborar na investigação que fazemos; portanto, afirmar ainda mais este centro ao nível mundial. O resto são coisas que vêm por acréscimo. É evidente que para este último é preciso que o primeiro esteja assegurado porque não é possível competirmos ao nível internacional e estarmos preocupados todos os dias com pagar as contas, ou seja, o funcionamento basal do Centro. Centros de excelência como este não podem funcionar com base num projeto ou noutro projeto. A infraestrutura base tem de existir, não pode estar dependente apenas da obtenção de projetos. Em analogia, o país tem de ter uma rede ferroviária operacional, não podemos estar dependentes de os comboios funcionarem só porque em alguns dias há clientes que pagam bilhete. Os negócios que se passam em Lisboa ou que se passam no Porto, as famílias que se visitam num lado e noutro dependem de existência de uma infraestrutura, não dependem de existir dinheiro naquele momento para fazer aquela viagem.
HN – Quer deixar uma mensagem final?
JR – Apenas gostaria de salientar que é necessário investir em ciência no país para que se possa desenvolver investigação de nível internacional. Que esse investimento em ciência aconteça, porque não está a acontecer como devia. Obviamente há investimento em ciência, mas, por critérios europeus e mundiais, é muito pequeno para o potencial que nós já temos, as pessoas que temos formadas, os laboratórios que existem e a capacidade que temos de apoiar também o funcionamento das empresas e do setor produtivo, dos hospitais, etc. O CICECO, por exemplo, tem protocolos com hospitais para fazer trabalho de investigação. Portanto, é fundamental que haja realmente um investimento significativo, e não está a acontecer. Isto, para mim, é a mensagem fundamental, que eu transmiti ao senhor primeiro-ministro na inauguração do Centro. Não estamos a pedir que seja ao nível da França, nem da Alemanha, nem dos outros países mais desenvolvidos, mas que seja, pelo menos, por exemplo ao nível da Grécia, que neste momento já investe bastante mais dinheiro do Orçamento de Estado por cidadão: quase o dobro de Portugal. Tem de ser uma prioridade porque sem essa prioridade o país não será competitivo no mundo moderno. Não é possível ter empresas ou hospitais desenvolvidos se não tivermos uma base forte na infraestrutura científica.
Entrevista de Rita Antunes
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