HealthNews (HN) – No dia 4 de abril, o Governo português anunciou a adoção do sistema Nutri-Score. Uma medida aplaudida pela principal organização portuguesa de defesa do consumidor, a DECO-Proteste. No início deste mês revogou-a. Como é que vê este recuo?

Michele Carruba (MC) – Assinei pessoalmente uma carta dirigida aos Ministros da Agricultura e da Saúde, instando-os a reconsiderar a decisão do governo cessante de adotar o sistema de rotulagem Nutri-Score, que, na minha opinião, foi implementado de forma pouco transparente pelo anterior Governo.

Por conseguinte, a decisão do Ministro de inverter esta opção é muito bem-vinda, especialmente porque põe em evidência todas as limitações dos sistemas de semáforos da frente da embalagem. Embora estes possam ser populares entre os consumidores quando apresentados em inquéritos artificiais, não conseguem produzir resultados tangíveis; as taxas de obesidade continuam a aumentar à medida que a compreensão pública do que consumimos diminui. O Ministro tomou uma decisão sensata. Precisamos de combater a obesidade com políticas mais abrangentes que abordem o estilo de vida, a nutrição e muitos outros aspetos das nossas vidas.

HN – Pode explicar mais pormenorizadamente as principais críticas científicas ao Nutri-Score?

MC – Em primeiro lugar, o sistema Nutri-Score serve principalmente como uma ferramenta interpretativa e não educativa, oferecendo pouco para aumentar o conhecimento do consumidor ou a consciência nutricional. Os seus princípios de pontuação, muitas vezes ininteligíveis e opacos, exigem uma aceitação não crítica por parte dos consumidores.

Também não orienta a composição global de uma dieta ou facilita a combinação de diferentes alimentos.

Em segundo lugar, o Nutri-Score enfatiza desproporcionadamente os nutrientes com impactos negativos, atribuindo até 40 pontos negativos em comparação com um máximo de 15 pontos positivos para nutrientes benéficos. Este desequilíbrio sugere um enfoque mais no desencorajamento de certos alimentos do que na promoção de opções saudáveis.

Em terceiro lugar, o Nutri-Score avalia os alimentos com base numa porção de 100 gramas e não no tamanho real das porções, o que pode induzir em erro. Por exemplo, uma pizza de vegetais pode ter uma boa pontuação por 100 gramas, mas é normalmente consumida em porções muito maiores, distorcendo potencialmente a orientação dietética. Da mesma forma, o azeite, embora denso em calorias, é normalmente consumido em quantidades menores do que a avaliação de 100 gramas do Nutri-Score, distorcendo o seu impacto percebido. Para além disso, a classificação rígida dos nutrientes como “favoráveis” ou “desfavoráveis “do Nutri-Score simplifica demasiado as complexidades da alimentação, entrando em conflito com a abordagem holística amplamente aprovada pela comunidade científica, como é o caso da dieta mediterrânica. Em vez de isolar alimentos individuais, é preferível uma estratégia alimentar abrangente, centrada numa seleção e combinação equilibradas de alimentos, para gerir problemas de saúde como a obesidade ou as doenças não transmissíveis.

Por fim, o Nutri-Score carece da especificidade necessária para ajudar indivíduos com necessidades dietéticas particulares. Não destaca os fatores primários que influenciam as suas classificações, nem oferece informações específicas sobre o conteúdo energético, gorduras saturadas, sódio ou açúcares – informações essenciais para as pessoas que controlam doenças como a obesidade, colesterol elevado, hipertensão ou diabetes.

HN – Porque é que em alguns países, como a França, há um maior apoio ao Nutri-Score em comparação com outros países como a Itália e os Países Baixos?

MC – Há várias razões para este facto. O sistema foi desenvolvido em França, onde existe evidentemente uma crença cultural profundamente enraizada de que a obesidade pode ser combatida com um rótulo nos produtos alimentares. Historicamente, a França tem favorecido uma abordagem de cima para baixo, em que o Estado dita o que é bom ou mau com base num algoritmo desenvolvido por cientistas, que se presume serem infalíveis. No entanto, a ciência é falível e não cabe ao Estado determinar o que é bom ou mau. Além disso, a um nível mais pragmático, parece haver interesses comerciais em França que beneficiariam muito com a adoção do Nutri-Score.

HN – O processo de revisão e atualização do algoritmo Nutri-Score tem sido criticado por falta de transparência. Como vê este processo e que alterações sugeriria?

MC – Parece credível propor a alteração de um algoritmo apenas para apaziguar aqueles que se queixam da má classificação dos seus produtos? Isto sugere que se trata mais de um instrumento comercial do que de um instrumento de saúde pública. Estamos a falar de geopolítica alimentar.

HN – Na sua opinião, qual seria o papel ideal de uma autoridade científica independente, como a EFSA, na avaliação e validação do Nutri-Score?

MC – Apoio muito a ideia de que o Nutri-Score deve ser avaliado pela Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (AESA), uma vez que será avaliado estritamente com base em fundamentos científicos.

HN – Foi relatado um viés significativo nos estudos que apoiam o Nutri-Score. Qual o impacto que este viés tem na fiabilidade dos resultados apresentados?

MC – Não foram apresentadas provas convincentes que demonstrem um efeito preventivo sobre a obesidade. De facto, a julgar pelos dados epidemiológicos, não há diferença na prevalência da obesidade nos países antes e depois da adoção do Nutri-Score, ou entre os que o aprovaram e os que não o fizeram.

HN – Como avalia a influência dos criadores do Nutri-Score no processo de revisão pelos pares e na publicação de estudos sobre rotulagem nutricional?

MC – Um processo importante para a saúde pública não pode ser gerido por um indivíduo mas, isso sim, deve ser supervisionado e orientado por instituições públicas. Estas instituições devem basear-se nos pareceres de um grande número de cientistas, representados não por indivíduos isolados, mas por sociedades científicas acreditadas.

HN – Se o Nutri-Score não for a resposta, que outras medidas sugeriria para combater a obesidade e melhorar a nutrição pública?

MC – Em primeiro lugar, todos os países devem reconhecer que a obesidade é uma doença sistémica crónica e recorrente e organizar os seus sistemas nacionais de saúde para prevenir e tratar esta doença. Uma componente importante é a educação nutricional a nível escolar, que se tem revelado eficaz na redução da prevalência da doença. Defendemos a dieta mediterrânica, não apenas como um regime alimentar, mas como um método para um estilo de vida equilibrado. As causas da obesidade são numerosas e variam de indivíduo para indivíduo. Para alcançar soluções personalizadas, é urgente envolver os cidadãos para que façam escolhas conscientes e informadas, o que significa fornecer-lhes os conhecimentos necessários. Precisamos de capacitar os indivíduos com conhecimentos e não com escolhas pré-definidas.

HN – Como podemos garantir que as intervenções propostas para combater a obesidade, como a alteração do ambiente alimentar ou a tributação das bebidas açucaradas, se baseiam em provas científicas sólidas?

MC – As provas científicas não apoiam a eficácia da tributação de elementos alimentares individuais, como os açúcares, e muito menos de um único produto dentro de uma classe de produtos, como as bebidas açucaradas. A única abordagem cientificamente válida consiste em informar e educar, dando aos consumidores a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas informadas.

HN – Tendo em conta que a Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) manifestou reservas relativamente ao Nutri-Score, como considera que Portugal deve proceder na regulamentação da rotulagem nutricional?

MC – Sugiro outras propostas destinadas a educar os cidadãos num contexto de abundância calórica e de redução do gasto energético. É preferível não usar nada do que usar algo incorreto, que pode resultar em inúmeros prejuízos. Devemos evitar a pressa em encontrar soluções aparentemente fáceis que permitam aos cientistas e políticos aliviarem as suas consciências sem verdadeiramente abordarem o problema, como é o caso do Nutri-Score. A obesidade é um problema complexo e multifatorial que requer soluções abrangentes. A abundância calórica é uma novidade a que a humanidade não está habituada. Durante milhões de anos, os seres humanos enfrentaram a fome. Precisamos de reprogramar o nosso modo de vida, adotando um estilo de vida equilibrado para melhorar a longevidade e o bem-estar.

HN – Qual o modelo de rotulagem nutricional que considera mais adequado para os produtos alimentares portugueses?

MC – A Bateria Nutrinform, proposta pelo governo italiano, baseia-se nos princípios universalmente aceites da GDA (Guideline Daily Amounts), reconhecidos em todo o mundo.

Não dita o que é bom ou mau, mas fornece informações aos consumidores para que possam fazer escolhas livres e informadas, compreendendo a composição e a quantidade do que consomem. Ao fazê-lo, as pessoas podem planear melhor o seu estilo de vida em conformidade.

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